O Psicólogo Responde: A dor pode ser psicológica?
Dor

O Psicólogo Responde: A dor pode ser psicológica?

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David Guedes
Psicólogo e membro da direção da Delegação Regional Sul da Ordem dos Psicólogos Portugueses

A criança que tem medo de agulhas chega ao consultório médico para receber uma vacina. O cheiro a antisséptico, igual ao de todos os consultórios onde já esteve, é suficiente para trazer à memória um passado de encontros desagradáveis com enfermeiros ou, mais concretamente, com aquele objeto angustiante e muito aguçado. “Longe da vista…” – pensou, desviando o olhar para as paredes do consultório na busca de qualquer coisa que a fizesse distrair da dor. Em menos de nada, a sensação aguda da picada faz arrepiar. Ainda falta muito? – perguntou. Sim, falta. A agulha não havia sequer entrado.

O episódio que aqui se descreve diz-nos qualquer coisa sobre a natureza da dor. Ainda antes de qualquer mudança física, a expetativa da criança em relação ao que lhe vai acontecer traz uma sensação desagradável e dolorosa, como se já sentisse a presença da agulha. Num certo sentido, esta estória parece sugerir que a dor pode ter um quê de psicológica. No entanto, é necessário esclarecer os vários sentidos que a expressão “psicológica” pode assumir neste contexto.

Em primeiro lugar, a dor pode, sim, ser considerada psicológica no sentido em que a psicologia abrange tudo o que diz respeito à atividade mental. Por exemplo, se inadvertidamente pegar numa chávena escaldante, há um conjunto de células sensoriais (nociceptores) que irão enviar sinais através dos nervos e até ao cérebro, que resultará na consciência da dor. É, portanto, uma experiência com uma componente mental. Contudo, há que referir que ainda antes do cérebro interpretar esta informação, já o organismo organizou uma resposta reflexa que levou os músculos da mão a contraírem e largarem essa mal-intencionada chávena de chá. Este é um exemplo em que a dor age para fazer o bem e alerta o organismo para agir e proteger a sua integridade.

Outro sentido segundo o qual se pode considerar que a dor é psicológica tem a ver com a natureza multifatorial da dor. De acordo com a International Association for the Study of Pain (IASP), a dor, seja ela aguda ou crónica, é uma condição que é influenciada por aspetos biológicos, psicológicos e sociais. Por esse motivo, a experiência da dor é profundamente individual, o que significa que não se pode − nem se deve − julgar a experiência de dor de outra pessoa com base na nossa. Talvez o aspeto mais consensual da experiência da dor é que esta é, na sua essência, desagradável. Daí decorre que a dor tem implicações emocionais, mesmo que a sua origem seja física. Este aspeto é particularmente relevante no caso da dor crónica, que se pode fazer acompanhar de sentimentos de ansiedade, tristeza, medo, zanga ou desesperança. Em alguns casos, os aspetos emocionais, como o stress, podem contribuir para exacerbar a intensidade da dor, o que faz com que atualmente a intervenção psicológica faça parte das linhas de ação preferenciais para a gestão da dor crónica.

Há ainda a considerar aspetos relativos às expetativas, pensamento e atenção. Alguns estudos mostram que as expetativas mais favoráveis relativamente à recuperação de uma lesão podem reduzir em vários dias o período de recobro necessário para um regresso à vida ativa. Há igualmente evidência de que a esperança numa recompensa pode levar a uma maior tolerância à dor (pense-se, por exemplo, no atleta que tolera o desconforto para lá do razoável a bem da competição). Habitualmente, a dor sequestra a nossa atenção porque o seu papel é, na essência, o de alertar para o que de errado se passa com o organismo. Nesse sentido, a distração da atenção para outras sensações (como sons ou imagens) pode também influenciar a intensidade com que a dor é percebida.

Estes são apenas alguns exemplos de fatores psicológicos envolvidos na perceção da dor. Mas há ainda uma terceira razão para se considerar que a dor pode ser psicológica e esta é a de que nem toda a dor tem origem no corpo. O sofrimento emocional, como a tristeza, ansiedade ou depressão, podem ter manifestações mentais dolorosas, como a angústia ou a inquietude, mas também consequências físicas muito concretas: aperto no peito, nó na garganta, borboletas no estômago, náuseas, vómitos, palpitações ou outras complicações somáticas mais complexas.

Por fim, há um sentido segundo o qual a dor não é psicológica: sempre que se pretende sugerir a alguém em sofrimento que a sua dor é menos real porque não é visível (algo que está “apenas” na cabeça). De facto, a dor não tem contornos. Nunca foi nem pode ser fotografada nem retratada naquilo que tem de mais importante: a experiência pessoal. Ver a própria dor menosprezada ou atribuída a fraqueza, hipersensibilidade, lamúria ou a excesso de zelo ou preocupação pode ser uma forte invalidação da experiência dos outros.

A dor deve ser levada a sério. Atualmente, a dor crónica é a principal causa de incapacidade a nível mundial. As estatísticas são diversas, mas estima-se que globalmente 1 em cada 5 pessoas possa viver com dor. As consequências pessoais são diversas também, mas podem abranger incapacidade laboral, isolamento, disrupção das relações sociais, dependência de medicação, stress, depressão, ou ideação suicida. É um problema de saúde pública com significativas implicações para indivíduos e para a sociedade.

Sugestões

  1. Se conhecer alguém com dor, procure empatizar com o sofrimento ou as limitações que dela decorrem. Não meça a importância ou seriedade da dor dos outros com base na sua experiência, lembrando que a experiência da dor pode variar de pessoa para pessoa ou até para a mesma pessoa em diferentes momentos no tempo.
     
  2. Evite fazer juízos de valor e procure ser recetivo às necessidades demonstradas por outras pessoas. Por exemplo, as enxaquecas podem ser episódios relativamente comuns e de intensidade e duração limitadas para alguns (e.g., na sequência de uma noite mal dormida), mas severamente incapacitantes para outros. Socialmente, é importante normalizar a necessidade de cancelar planos ou reorganizar rotinas de trabalho para conseguir gerir episódios de dor aguda.
     
  3. Considerando a natureza multifatorial da dor, é necessário tomar atenção aos seus aspetos biológicos, psicológicos e sociais. A gestão da dor não dispensa por isso a adoção de comportamentos saudáveis, tais como, padrões de sono e alimentação equilibrados, prática de exercício físico, assim como de comportamentos de redução de stress e promoção do bem-estar ou a manutenção de relações sociais satisfatórias.
     
  4. A eficácia da intervenção psicológica é cada vez mais reconhecida no contexto da gestão da dor crónica. Um/a psicólogo/a pode ajudar a compreender e gerir de forma mais eficaz os comportamentos, pensamentos e emoções associados à dor, apoiando na implementação de mudanças de estilo de vida promotores de maior bem-estar físico e psicológico.

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