O Psicólogo Responde: Um relacionamento tóxico pode ter um impacto significativo na saúde mental de uma pessoa?
Relacionamento tóxico. Freepik

O Psicólogo Responde: Um relacionamento tóxico pode ter um impacto significativo na saúde mental de uma pessoa?

O Psicólogo Responde é uma rubrica sobre saúde mental para ler todas as semanas. Tem comentários ou sugestões? Escreva para opsicologoresponde@cnnportugal.pt

 

 

 

 


 

Magda Cunha
Psicóloga e membro da Direção da Delegação Regional da Madeira da Ordem dos Psicólogos Portugueses

A palavra "tóxico" é definida como “venenoso” ou que “causa efeitos nocivos”. São apresentados como seus sinónimos expressões como droga, maléfico, prejudicial, mau, e comummente associamos outras palavras como sejam perigo, danos, e nesse sentido a resposta parece clara. Sim, um relacionamento tóxico terá impacto na saúde mental da pessoa que o vivência. Mas as interações pessoais são esquemas intrincados, complexos e importa pensar sobre o que significa “relacionamento tóxico”.  A sua dinâmica é frequentemente caracterizada por comportamentos abusivos, manipuladores, controladores ou prejudiciais por parte de um ou ambos os parceiros. O clima de tensão e conflito, mais ou menos acentuado, pode ter um efeito perturbador no bem-estar psicológico do indivíduo, sendo que a este nível salientamos:

  • Baixa autoestima e autoconfiança: o comportamento abusivo de um parceiro pode abalar a autoestima e sentido de autoconfiança, potenciando sentimentos de inadequação, alimentando a descrença ou a dúvida, seja nas suas capacidades, como potencial ou valor. Esta dúvida, se persistente e continuada, pode cristalizar uma imagem negativa de si mesmo, com impacto negativo na vida pessoal, familiar, profissional e social.
     
  • Ansiedade e depressão: o stress constante e a incerteza, alimentados pelo parceiro e pelo clima relacional, podem desencadear sintomas de ansiedade, enquanto a manipulação e o abuso emocional podem impulsionar sintomatologia depressiva. Ambas provocam sofrimento psicológico, que pode ser internalizado ou externalizado num agir que não promove segurança, reforçando sentimentos de inadequação e desvalor.

Por outro lado, observa-se nestes relacionamentos uma tendência para o Isolamento social. Seja pela vontade expressa do parceiro, que, na salvaguarda de uma pseudo estabilidade ou de uma tranquilidade ilusória, não se contraria, seja em resultado do controlado ou manipulação do parceiro, é comum o afastamento de família e amigos, sendo o mapa relacional limitado ao "permitido" pelo outro. O afastamento de pessoas de referência, significativas, consolida a dependência do parceiro, que em casos limites pode surgir como a única pessoa num mapa feito de duas pessoas.

Em casos mais extremos, a exposição continuada a um relacionamento desta natureza, tóxico porque abusivo, pode contribuir para a emergência de um quadro traumático. À semelhança da exposição a outras experiências traumáticas, como as associadas a vivências de crise ou experiências de perda, os efeitos do trauma podem persistir mesmo após o término do relacionamento, sendo fundamental para a reorganização da sua imagem e história pessoal o envolvimento num processo terapêutico, que permitirá (RE)conquistar o controlo e poder sobre a sua vida, (RE)estabelecer vínculos e (RE)organizar o mapa relacional.

A ajuda terapêutica é também relevante para auxiliar na redefinição do funcionamento do indivíduo na relação com o outro. De facto, não raramente, o envolvimento em relacionamentos tóxicos pode contribuir para que o indivíduo desenvolva padrões de relacionamento prejudiciais, podendo ter dificuldade em estabelecer e manter relacionamentos saudáveis no futuro. A baixa estima, o sentimento de inadequação, de não ser "suficientemente boa/bom, competente, digna/o ou capaz" alimentado durante o relacionamento pode consolidar crenças de fracasso ou abandono, e uma atitude de submissão ou apatia, em que o "eu" se anula, as necessidades não são comunicadas nem as emoções expressas.

É fundamental reconhecer os sinais de um relacionamento tóxico e procurar ajuda especializada, seja terapia individual ou de casal. A adesão a um processo terapêutico pode contribuir para desenvolver estratégias de coping, mecanismos que ajudem a lidar com os efeitos psicológicos desse tipo de relacionamento e competências que promovam uma comunicação assertiva, saudável e positiva. Aprender a ouvir o outro , mas também saber fazer-se ouvir, é fundamental na dinâmica de uma relação interpessoal, estejamos a falar de relacionamentos de intimidade ou profissionais, por exemplo

Serão fáceis de identificar? Estes relacionamentos podem manifestar-se de diferentes formas, mais ou menos explícitas, e por isso podem ser difíceis de reconhecer numa fase inicial, sendo por vezes os primeiros sinais, negados, classificados como "erros de avaliação", "mal entendidos" ou simplesmente como "tempestades num copo de água".

Alguns sinais comuns que podem ser observados nestes relacionamentos incluem o comportamento controlador, em que um parceiro tenta controlar as ações, decisões e interações do outro, muitas vezes limitando a sua liberdade e independência. Lembro um jovem adulto que, sentado ao lado da namorada, também ela jovem, dizia "eu faço o controlo básico", para prontamente adiantar, seguro de si, "com quem está, onde foi, (..) como se veste".  Outro sinal traduz-se na manipulação emocional de um parceiro pelo outro. Aqui falamos de controlo emocional, de manipulação de sentimentos e das emoções do outro, com o claro objetivo de exercer poder e controlar a relação.

Do que foi referido, é fácil de inferir outro dos sinais indicadores destes relacionamentos. O abuso verbal ou emocional, que inclui insultos, humilhação, críticas constantes, menosprezo ou ameaças. A linguagem que desqualifica e a persistente crítica são expressões de uma violência emocional que pode ter um impacto tão prejudicial quanto o abuso físico. As palavras e as mensagens ditas têm um impacto demolidor e profundo na vida emocional e na saúde psicológica de quem as ouve. Tornam se como "tatuagens" impressas no corpo e na mente. Outros sinais são a falta de apoio emocional, quando o parceiro minimiza ou ignora os sentimentos do outro. O ciume excessivo e irracional, que associado a uma desconfiança constante, se manifesta em acusações infundadas e comportamento possessivo. Todos estes sinais podem surgir associados a comportamentos violentos ou agressivos, de confronto directo, incluindo a violência física, a destruição de propriedade ou qualquer forma de comportamento ameaçador e de intimidação.

Outro sinal é o isolamento social, a que já fizemos referência. Isolar o outro, tornar-se a si mesmo o único interlocutor, a única presença na vida do parceiro, torna mais fácil a obtenção da atitude desejada de submissão. O isolamento social conduz à inevitável dependência exclusiva daquela relação.

Transversal a todos estes sinais que já identificamos, podemos nomear o desrespeito pelos limites pessoais. Quando um dos parceiros procura controlar e exercer poder sobre o outro está a assumir uma atitude autocentrada, em que as suas necessidades são as únicas a considerar, a única prioridade. As necessidades do outro não são consideradas, nem os desejos e limites do outro reconhecidos.

Pensando ainda nos relacionamentos de intimidade, mas mais além do que o casal: podemos falar de impacto dos relacionamentos tóxicos na saúde mental dos filhos?

Sim, à semelhança do que acontece na exposição de crianças a dinâmicas de violência e conflito intraparental. Um relacionamento tóxico entre os pais traduz-se num clima familiar de tensão, prejudicial para o desenvolvimento saudável das crianças. Alguns dos efeitos adversos que os filhos podem enfrentar incluem:

  • Ansiedade e stress: crianças expostas a conflitos e hostilidade constantes entre os pais podem experimentar altos níveis de ansiedade e stress, o que pode afetar negativamente seu desenvolvimento e estabilidade emocional.
     
  • Baixa autoestima: a presença de relacionamentos tóxicos pode afetar a autoestima das crianças, levando a sentimentos de inadequação e falta de confiança em si mesmas, com impato no relacionamento com os outros. De facto, outro dos potenciais efeitos adversos da exposição das crianças a um ambiente de relacionamento tóxico são as dificuldades em estabelecer relacionamentos saudáveis no futuro, pois podem reproduzir padrões tóxicos que testemunharam nas suas próprias vidas.
     
  • Problemas de comportamento: a exposição à tensão familiar pode traduzir-se em problemas de comportamento, como agressão, rebeldia, ou isolamento social. Estas manifestações podem surgir em contexto escolar, na relação com pares e adultos, numa externalização de mal-estar e de angustia, que o ambiente familiar não permite expor. Incapaz de conter e de gerir as emoções, a criança extravasa sobre o mundo exterior, através de acessos de cólera ou passagens ao ato ou, em oposição, internaliza, aumentando o risco de problemas de saúde mental, como depressão, ansiedade e transtornos de stress pós-traumático.

O reconhecimento do impacto que o ambiente e o clima relacional têm nas crianças é crucial, na medida em que as experiências precoces têm um papel determinante no desenvolvimento emocional das crianças. Experiências de abandono, rejeição ou abuso, a exposição a ambientes que não oferecem segurança e a dinâmicas tóxicas não promovem o estabelecimento de vínculos seguros e positivos. A procura de ajuda especializada é mais uma vez fundamental, e o envolvimento dos pais nesse processo psicoterapêutico imprescindível.

Voltando ao início - Um relacionamento tóxico pode ter um impacto significativo na saúde mental de uma pessoa?  Sim.

Mas, podemos falar de relacionamentos tóxicos fora da esfera afectiva e de intimidade? Sim, estes relacionamentos podem surgir em ambientes profissionais, amizades, relações familiares e em outras interações sociais. A título de exemplo, nas relações profissionais pode traduzir-se em comportamenos de manipulação, numa crítica constante e destrutiva, numa sabotagem do crescimento e o progresso de outras pessoas no ambiente de trabalho. Se um dos pilares do bem estar no local de trabalho é a conexão, o sentirmo-nos ligados e vinculados ao grupo, é evidente como a exposição a um ambiente com estas características terá impacto na saúde mental e no bem estar individual do colaborador.

Por outro lado, as amizades podem-se tornar tóxicas quando há falta de apoio mútuo, ciúmes excessivos, competição constante, ou quando um amigo exerce controle ou manipulação sobre o outro.

Na esfera familiar, as relações tóxicas podem ser marcadas por dinâmicas abusivas, falta de apoio emocional, falta de respeito pelos limites pessoais, ou conflitos constantes que afetam negativamente o bem-estar de todos os envolvidos. No plano mais abrangente, as relações sociais e comunitárias podem incluir interações com vizinhos, membros de comunidades ou grupos sociais nos quais há comportamentos de exclusão, difamação, bullying ou outras atitudes de discriminação. E numa sociedade em que os vínculos e ligações se esboçam e constroem também em contexto online, os relacionamentos tóxicos também podem desenvolver-se em ambientes virtuais, manifestando-se em comportamentos de cyberbullying, trolling, stalking ou assédio.

Enquanto seres sociais, crescemos e desenvolvemo-nos na interação com os outros e o mundo. Procuramos a relação com o outro, o contacto, estabelecemos vínculos e laços, essenciais na nossa história pessoal. Importa, por isso, reconhecer os sinais que imprimem toxicidade aos relacionamentos, e dessa forma procurar o apoio necessário para garantir a saúde psicológica e  o bem estar pessoal.

Scroll top