O Psicólogo Responde: O uso exagerado do mundo digital pode ter impacto na saúde mental?
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O Psicólogo Responde: O uso exagerado do mundo digital pode ter impacto na saúde mental?

O Psicólogo Responde é uma rubrica sobre saúde mental para ler todas as semanas. Tem comentários ou sugestões? Escreva para opsicologoresponde@cnnportugal.pt

João Nuno Faria
Psicólogo clínico e membro da Ordem dos Psicólogos Portugueses

Escrevo um artigo no meu computador enquanto assisto às notícias na televisão, consulto as horas para me manter a par do tempo livre que tenho até à próxima consulta e, no meu smartphone, recebo uma notificação de que a comida que encomendei está a chegar. São tantos os ecrãs que temos disponíveis no nosso dia-a-dia, todos eles ao serviço das nossas principais necessidades psicológicas.

Faltaria, decerto, acrescentar as mensagens que trocamos com os nossos mais significativos, os ecrãs onde registamos as informações dos nossos pacientes, as receitas que procuramos na internet ou a informação sobre um determinado medicamento que pesquisamos num browser. Os ecrãs estão implementados no nosso quotidiano de uma forma que se pode questionar se realmente ainda se enquadram na categoria de “acessórios” se aparentemente são tão fundamentais.

Acredito que esta nossa necessidade de estarmos tão frequentemente conectados esteja intimamente ligada à evolução social a que assistimos neste momento. A vida tornou-se mais rápida, mais acessível e mais imediata. Esperar parece tornar-se uma tarefa cada vez mais difícil de tolerar, veja-se como tão facilmente pegamos no nosso smartphone para consultar alguma coisa “importante” assim que nos deparamos com uma fila.

Mas continuamos a precisar de esperar por muitas coisas na nossa vida, em experiências de vida que necessariamente necessitam de tempo para que sucedam: aprender, melhorar as nossas capacidades e habilidades, desenvolver. O choque entre o “aqui e o agora” e o “para quem esperar, tudo vem a tempo” parece inevitável e por vezes inconciliável. Veja-se o dilema com que muitas escolas se têm debatido sobre a permissão vs interdição de dispositivos móveis durante o horário letivo.

Contudo, as vantagens da utilização dos ecrãs parecem inquestionáveis e, como tal, o mundo digital pode ter um impacto positivo na saúde mental: nunca tantas pessoas tiveram tanto acesso a tanta informação; em nenhum outro tempo da história da Humanidade houve tanto acesso a tanta diversidade cultural; nunca foi tão fácil aprender uma nova língua; dificilmente ficamos perdidos graças à tecnologia GPS; a melhoria do humor de quem utiliza os ecrãs para diversas fontes de entretenimento e, com o advento da tecnologia da realidade virtual e aumentada, fazer exercício a partir de casa torna-se uma experiência divertida e possível em qualquer momento do dia. Estas são algumas das vantagens que os ecrãs podem trazer ao dia-a-dia de qualquer indivíduo.

No entanto, nem todas as experiências com ecrãs são positivas e, como tal, o mundo digital pode ter um impacto negativo na saúde mental. A investigação científica tem contribuído para a compreensão do fenómeno dos ecrãs nas suas mais diversas modalidades, identificando um conjunto de consequências menos positivas derivadas de experiências negativas. Estas podem ser de vária ordem:

  • Quando os ecrãs se transformam numa obrigação, quando o indivíduo necessita de cada vez mais tempo para se sentir saciado da sua experiência e quando reage de forma muito negativa à privação do ecrã, com explosões de raiva ou tristeza, durante um videojogo, isso pode significar que tem uma adição de gaming;
     
  • Se os gastos com jogos a dinheiro online se tornam frequentes e se verifica uma clara dificuldade em gerir gastos, isso pode significar que tem uma adição de gambling;
     
  • Se a experiência das redes sociais é vivida com demasiada intensidade e sente que não pode perder nada do que se passa na internet, provavelmente sofre da condição de Fear of Missing Out (FOMO);
     
  • Se aproximar-se de um ecrã o deixa extremamente ansioso pelo receio que antecipa do que pode encontrar quando se voltar a conectar, provavelmente estará a ser vítima de cyberbullying.

Estes são alguns dos indicadores das principais perturbações relacionadas com a internet que até hoje estão identificadas. O mais provável é que no futuro se venham a desvendar mais formas de como uma utilização desadequada destes dispositivos pode condicionar o bem-estar humano. Como principais consequências de uma má utilização, sabe-se que as experiências extremas podem conduzir a problemas com o sono, ao sedentarismo e problemas associados, às alterações significativas do humor - nomeadamente ansiedade e depressão -, à deterioração ou perda de relações significativas com familiares e amigos, a gastos excessivos, a quebras de produtividade em contexto escolar ou laboral e ao desinvestimento de outros interesses e atividades.

De modo a desenvolver uma relação saudável com os dispositivos de acesso à internet, é sugerido um conjunto de condições que promovem a utilização regulada e não proibitiva da mesma. Aqui ficam algumas:

  • Seguir as recomendações da Organização Mundial de Saúde no que respeita ao tempo de utilização dos ecrãs (impedir a interação por crianças com menos de 2 anos; limitar a 30 minutos entre os 2 e os 6 anos na companhia de um adulto; entre os 6 e os 10 anos o limite sugerido é de 1h com maior autonomia e a partir dos 12 anos um máximo de 2 horas de utilização com autonomia total);
     
  • Ter plena consciência de que algumas das experiências com ecrãs têm um potencial aditivo, nomeadamente a prática de videojogos (gaming) e o jogo a dinheiro (gambling). Tal não significa que todas as pessoas que jogam se tornam dependentes, mas sim que alguns indivíduos, com determinadas vulnerabilidades, podem tornar-se dependentes deste tipo de experiências;
     
  • Impedir que a experiência com ecrãs se torne a única fonte de satisfação de necessidades psicológicas, nomeadamente do ponto de vista social, do sentido de competência e da autonomia;
     
  • Relacionado com a anterior, envolver-se noutro tipo de atividades que confiram prazer e possibilidade de desenvolvimento de competências, de forma a que os momentos lúdicos e de aprendizagem e desenvolvimento possam ser feitos através de experiências offline;
     
  • Os adultos mais importantes das vidas das crianças continuam a ser os primeiros modelos nos quais elas se baseiam para fazer aprendizagens por observação. Neste sentido, os adultos devem estar conscientes de que o seu comportamento face à utilização dos ecrãs poderá ser interpretado pelas crianças como a forma adequada de o fazer, seguindo a máxima de children see, children do;
     
  • Estar atento a indicadores que apontem para situações de perturbação associada à utilização desadequada dos ecrãs, uma vez que, frequentemente, as pessoas que desenvolvem problemas com estas tecnologias não estão cientes do seu próprio problema, necessitando da ajuda dos que a rodeiam para identificá-lo, sendo aconselhável que estas situações sejam tratadas com uma abordagem psicoterapêutica.

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