O Psicólogo Responde: Como lidar com o medo obsessivo de doenças?
O medo causa mudanças de comportamento

O Psicólogo Responde: Como lidar com o medo obsessivo de doenças?

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Miguel Ricou
Psicólogo e presidente do CE de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos Portugueses

O ser humano é o único animal que, por experiência, sabe que vai morrer. Mas aquilo que o protege é viver cego à morte. Se assim não fosse, o medo de morrer seria potencialmente avassalador, inibindo o foco da pessoa em qualquer outra coisa que não fosse tentar proteger-se da morte, afinal o medo último da maioria das pessoas. O medo de ficar doente não deixa de assumir a mesma dimensão, mas de uma forma mais subtil, já que as doenças podem ter cura e, mais do que isso, quando a pessoa tem medo de estar doente pode, afinal, não o estar, pelo que o medo não deixa de ser alimentado pela esperança de ser aliviado pela descoberta de que afinal a pessoa está saudável. Na verdade, se o medo de morrer aumenta cada vez que a pessoa se confronta com a morte ou com a “quase” morte de alguém, o medo de ficar doente tem igualmente ganho uma nova dimensão com o advento de um fluxo constante de informação médica e de saúde, tantas vezes construída para chamar a atenção das pessoas através da dramatização da mesma.

Mas, antes de aqui voltarmos, importa tentar compreender alguns dos conceitos que se podem relacionar com o “medo obsessivo de doenças”, mas que se distinguem entre si. Não sendo o objetivo deste texto aprofundar o conhecimento de psicopatologia por parte do leitor, importará distinguir as diversas variações de problemas a este nível.

Existem situações em que a pessoa sente ansiedade e a atribui ao medo de, por exemplo, ser infetada ou contagiada, pelo que pode desenvolver comportamentos de evitamento e de proteção em relação a essa possibilidade. Contudo, nestes casos, o medo não é o de estar ou ficar doente, mas sim o de não conseguir deixar de se sentir ansiosa se não se proteger em relação à possibilidade de ficar infetada e/ou doente.

Outras situações há, em que a pessoa, por ter um conjunto de dificuldades de nível psicológico que não consegue lidar e resolver, acaba por converter essas dificuldades em sintomas somáticos. Na maior parte das vezes são dores musculares, problemas gastrointestinais ou sintomas neurológicos que a pessoa de facto sente e que a fazem incorrer em sofrimento. Nestes casos, poderia dizer-se que a pessoa não está preocupada com a doença que poderá ter, mas sim em descobri-la como forma de poder resolver os sintomas que a afligem. Pode dizer-se que a descoberta da doença seria a sua libertação, uma vez que poderia finalmente tratar-se e, desse modo, todos os seus problemas e dificuldades na vida teriam uma justificação: o facto de ter uma doença que ninguém descobria e que lhe provocava a infelicidade em que vivia.

Existem ainda situações em que a pessoa tem medo de ter uma doença em específico, muitas vezes associada à sua história de vida, com uma perda traumática de alguém próximo com essa mesma doença. Nestes casos, não se poderá afirmar que a pessoa tem “um medo obsessivo de doenças”, mas sim que tem um medo fóbico em relação a uma doença específica e apenas a essa, que assume uma dimensão traumática.

A ansiedade de doença, ou hipocondria, é de facto a perturbação que mais poderá corresponder à imagem de uma pessoa com um medo forte e persistente de ficar doente. Nestes casos, a pessoa refere sintomas físicos, muitas vezes vagos, subtis ou ambíguos (e

agravados pelo foco de atenção que lhe despertam), mas que a levam a acreditar firmemente que podem corresponder a uma doença grave. Estas preocupações são pouco atenuadas pelos resultados obtidos nos inúmeros exames que faz e/ou pela opinião dos clínicos. Em alturas menos boas da vida, estes ciclos tendem a agravar-se, sendo que a pessoa pode ficar mais alarmada sempre que ouve falar em alguém que ficou doente, ou quando lê alguma coisa sobre determinada doença, o que faz frequentemente.

Curiosamente, apesar da grande importância atribuída por estas pessoas à sua saúde física, não têm grandes comportamentos saudáveis, para além de serem grandes consumidores de consultas e exames médicos. Aliás, os seus comportamentos, por vezes, pouco saudáveis, são também justificação para as suas preocupações, acabando por desenvolver dificuldades relacionais com as pessoas próximas, uma vez que estão demasiado centradas no seu próprio bem-estar.

Na verdade, o núcleo deste problema não se encontra numa legítima preocupação com a saúde, mas sim numa ruminação contínua, muitas vezes entrelaçada com outros quadros de ansiedade, potenciando um ciclo vicioso de vigilância exacerbada e de interpretação catastrófica de sintomas que para a maioria das pessoas passam despercebidos e que são benignos. Esta é uma forma de preocupação que não deixa de camuflar outras dificuldades na vida, sendo muitas vezes acompanhada por outro tipo de sintomas e dificuldades emocionais.

Este é um problema multifatorial, na maioria das vezes complexo, com a agravante de chegar tarde às intervenções em saúde mental. Estas pessoas consultam médicos de várias especialidades, com frustrações frequentes, o que vai deteriorando a sua confiança nos profissionais, dado acreditarem não estar a ser bem tratadas. Oferecem grande resistência às intervenções psicológicas que consideram constituir uma desvalorização dos seus problemas e dificuldades. Todo este processo leva a que as intervenções mais precoces sejam raras, dificultando as recuperações.

Se, por um lado, o acesso fácil e indiscriminado a informação de saúde de qualidade duvidosa pode ser considerado um fator de risco, uma vez que potencia o acesso a informações que a pessoa pode catastrofizar, a literacia em saúde emerge como um pilar fundamental na prevenção e gestão desta ansiedade de doença. A capacitação dos indivíduos para que possam avaliar criticamente informações relacionadas com a sua saúde, discernindo entre fontes confiáveis e especulativas, pode ser uma ferramenta valiosa na mitigação deste problema. No mais, o acompanhamento psicológico destas pessoas com vista à identificação e intervenção das suas dificuldades promotoras e consequentes deste problema, associado a um reforço contínuo da promoção da confiança nos profissionais de saúde que o seguem, constituem a tríade essencial para gerir e ajudar estas pessoas a lidar com o sofrimento que este tipo de perturbação acarreta. No mais, é essencial ajudar a pessoa a compreender quando deve parar de procurar explicações para os seus sintomas que apenas têm o resultado de a focar cada vez mais nos mesmos, agravando o ciclo. É importante que a pessoa desenvolva a capacidade de identificar o medo e de não o tentar mitigar com a procura de informação ou com o recurso a exames ou consultas médicas, mas sim através de estratégias que sejam distrativas e coloquem a pessoa a observar e a interagir com o mundo e não a olhar para dentro, para o seu corpo e para os seus medos.

Sugestões

  1.  O medo de doenças é complexo, alimentado por uma mistura de medo e de esperança - esperança de que a doença pode ser curada ou de que talvez não exista.
  2. O fluxo constante de informações médicas e de saúde, muitas vezes dramatizado e de qualidade duvidosa, pode amplificar o medo de doenças.
  3. O medo de doenças caracteriza-se por uma preocupação persistente e muitas vezes infundada com doenças graves, resistente à reafirmação por exames médicos ou opiniões clínicas, pelo que, a pessoa deve procurar resistir à tentativa de mitigação do medo dessa forma.
  4. Indivíduos com ansiedade de doença não praticam, com frequência, comportamentos saudáveis, apesar da preocupação excessiva com a sua saúde.
  5. A ruminação sobre a saúde pode mascarar outras dificuldades emocionais e psicológicas, criando um ciclo de vigilância e de interpretação catastrófica de sintomas benignos.
  6. A intervenção psicológica é muitas vezes tardia em virtude de ser, muitas vezes, considerada como uma desvalorização das queixas e dificuldades da pessoa.
  7. A educação em saúde é central para ajudar as pessoas a avaliar criticamente as informações de saúde e a melhor gerir a ansiedade em relação a doenças.
  8. A intervenção psicológica, a promoção da confiança nos profissionais de saúde e a promoção de estratégias para lidar com a ansiedade de doença são essenciais para uma intervenção eficaz.
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