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Recordo-me de um episódio durante o período pandémico que me chamou a atenção. Passava pela rua, quando observei um adulto com máscara, junto de uma criança pequena, abrir muito os olhos e ralhar com ela. A criança, assustada, chorou. Já nem me recordo bem do motivo, pelo que desconfio que seria de importância relativa. Descrito assim parece um episódio banal, com o qual qualquer pessoa já se deparou e que, infelizmente, facilmente normalizamos. Mas, havia algo exagerado e obsessivamente invasivo e penetrante no olhar desse adulto, que me deixou sobressaltada e inquieta. Lembro-me de mais tarde ter pensado se a sensação que tive, não teria sido consequência de parte daquele rosto desconhecido permanecer ocultado pela máscara, tornando-o ainda mais ameaçador.
A principal preocupação durante a pandemia COVID19 foi evitar a propagação da doença. A necessidade de conter o número de infeções e de tratar das pessoas infetadas monopolizou a atenção dos governos que, com alívio, viram que o vírus parecia não afetar, em grande medida, as crianças. Ou assim pensaram. Só mais tarde se começou a debater os efeitos pandémicos a curto, médio e longo prazo, no normal e harmonioso desenvolvimento das crianças, em especial nas competências de aprendizagem, comunicativas e linguísticas, sociais, emocionais e motoras.
Durante a pandemia, de acordo com dados divulgados pela UNICEF, pelo menos 40 milhões de crianças em todo o mundo perderam o período crítico prévio à escolarização, habitualmente passado em jardins de infância. O uso de máscaras e o isolamento vieram dificultar o desenvolvimento comunicativo e social das crianças, ao condicionar e limitar fortemente o processamento da comunicação não verbal.
E qual é a importância da comunicação não verbal? Já lhe aconteceu estar na presença de alguém cuja partilha verbal de emoções foi antagónica relativamente à expressão não verbal? Quando tal aconteceu o que lhe pareceu mais credível, o que a pessoa disse ou o que exprimiu não verbalmente?
Conhecemos a importância da comunicação não verbal e que ela tende a prevalecer em termos de autenticidade das emoções que sentimos e partilhamos com os outros, relativamente à comunicação verbal. O motivo é que, apesar de podermos estar conscientes deste tipo de comunicação, ele está frequentemente para além do nosso controlo consciente, sendo involuntária e espontânea. Assim, os sinais não verbais mostram-nos frequentemente mais acerca do estado emocional de uma pessoa do que as palavras que os acompanham.
O que aconteceu durante a pandemia, no que respeita à comunicação não verbal, foi uma restrição do olhar das crianças ao do adulto. E, ao fazê-lo, as crianças mais novas não observaram as diferentes expressões faciais e os movimentos articulatórios para pronunciar os sons da fala, fazendo disparar drasticamente as dificuldades evidenciadas em termos comunicativos e linguísticos, as quais provocaram interferências nas interações sociais e, mais tarde também, na aprendizagem da leitura e da escrita. Também há relatos de mais problemas na interação social e em estabelecer e manter relações de confiança, de forma generalizada.
Acresce que o impacto não foi igual para todas as crianças, independentemente da sua idade, tendo agravado desigualdades já existentes. Observamos que as mais vulneráveis apresentam limitações e repercussões ainda mais significativas. Falamos das que se encontram em situação de pobreza e exclusão, das que apresentam um atraso no neurodesenvolvimento ou das que beneficiaram de menos tempo de educação precoce.
E o que dizer das crianças que passaram mais tempo mergulhadas nos ecrãs, assimilando de forma acrítica e como verdades universais tudo o que lhes é apresentado? Que impacto terá este fenómeno nas interações e coesão social? É um dano menos visível, como quem vai descontando pó em vez de areia na ampulheta do tempo de lazer e convívio. E são tantas crianças, e também adultos, a fazê-lo.
O que fazer para atenuar o impacto negativo da pandemia nas competências sociais das crianças?
- Conversar com as crianças é o melhor remédio! Assumir que sabe o que pensam e sentem sem conversar, procurar inferir nas entrelinhas do que foi ou não dito e feito ou fiar-se na bola de cristal poderão não ser as melhores soluções. Procure conhecer o que as preocupam, que angústias transportam, o que as deixam felizes e os sonhos que têm para amanhã. Ajudá-las nessa partilha, também é um auxílio à promoção do estabelecimento e manutenção de relações saudáveis com os outros.
- Privilegie o planeamento de atividades que possam ser realizadas pelas crianças em espaços ao ar livre. Além do contributo para um ambiente mais saudável associado ao contacto com a natureza, também são habitualmente apreciadas pelas crianças.
- Promova atividades familiares, de amizade, de vizinhança e/ou comunitárias, em que as crianças tenham oportunidade de brincar e aprender com os pares.
- Limite o tempo diário de exposição aos ecrãs. Crianças com menos de 2 anos não deverão estar expostas aos ecrãs. Crianças entre 2 e 5 anos devem ter um tempo de exposição não superior a uma hora diária, com supervisão, devendo essa duração ser inferior a 2 horas em crianças entre os 6 e os 10 anos.
- Lembre-se de servir o mais possível como modelo, ainda que cada um de nós o seja, naturalmente imperfeito. As crianças não se preocupam com o quanto os adultos sabem, até saberem o quanto eles se preocupam!
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