O Psicólogo Responde: Os videojogos em excesso podem causar problemas de saúde mental?
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O Psicólogo Responde: Os videojogos em excesso podem causar problemas de saúde mental?

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João Nuno Faria
Psicólogo clínico e membro da Ordem dos Psicólogos Portugueses

Costumo contar nas formações que dou a jovens, a pais e a professores que comecei a ler antes de entrar na escola graças aos videojogos. Quando eu era criança, nos anos 80, eu e o meu irmão recebemos uma prenda incrível: um ZX Spectrum 48K que trazia aos lares a possibilidade de jogar os primeiros videojogos caseiros. Muitas são as pessoas que guardaram memórias, sobretudo visuais e auditivas, dessas primeiras experiências informáticas: o código que era necessário inserir para arrancar os jogos (LOAD””), o som do carregamento dos jogos, e a necessidade de interromper o leitor de cassetes para ler as instruções do jogo que se tinha escolhido… e era neste momento que eu, com quatro anos de idade, perto dos cinco, tinha que recorrer à minha mãe para fazer a leitura e explicação do jogo. Não podia estar sempre a incomodar a minha mãe e, como tal, a aprendizagem da leitura tornou-se uma necessidade fundamental.

São várias as vantagens para o ser humano que resultam da prática adequada dos videojogos. No campo intelectual, estão documentados ganhos ao nível da criatividade, da aprendizagem, da atenção deslocada e da rotação espacial entre outras. Do ponto de vista emocional, são documentadas evidências do aumento de emoções sentidas como gratificantes, do relaxamento, do alívio sintomático e da experiência do prazer. Do ponto de vista comportamental, algumas plataformas, mais do que outras, apostam no exercício físico como forma de entretenimento, utilizando para tal dispositivos dedicados. E, do ponto de vista social, a possibilidade de criar uma rede de amigos que extrapola os limites físicos, unindo pessoas com interesses em comum de diferentes zonas do planeta.

Apesar dos benefícios devidamente documentados associados aos videojogos, a sua utilização pode nem sempre ser benéfica para os indivíduos. Desde os finais dos anos 90, sobretudo, que tem vindo a assistir-se a uma crescente acumulação de evidência em torno dos efeitos negativos face à exposição excessiva dos videojogos. A primeira vez de que se falou sobre o potencial efeito negativo que estes poderiam ter data do princípio dos anos 80, onde um artigo faz referência a “obsessão por ‘Space Invaders’”, um videojogo muito famoso na altura. Desde então, foram-se acumulando evidências ao longo dos anos que apontam para um comportamento típico adotado por indivíduos que têm uma interação negativa com os videojogos. Apesar de vários termos terem sido empregues ao longo dos anos, todos parecem confluir para uma experiência que é identificada por muitos como Perturbação dos Videojogos (gaming disorder). Cunhada inicialmente pela Associação Americana de Psiquiatria em 2013 ao ser sugerida como possível categoria de perturbação psicológica (Internet Gaming Disorder), foi em 2018 que a Organização Mundial de Saúde definiu o diagnóstico de “Gaming Disorder”, consensualmente reconhecido em Portugal como “Adição aos Videojogos”.

Porquê adição e não outra manifestação de desajustamento? Porque precisamente os indivíduos que manifestam este padrão negativo partilham de um conjunto de manifestações tipicamente associadas aos comportamentos aditivos com substância. Inclusivamente, as mesmas trajetórias neuronais analisadas através de imagens cerebrais estão presentes nas adições com substância (ex. álcool, drogas) e nas adições de processo (videojogos, jogo a dinheiro). Estas características traduzem-se por comportamentos explícitos de forte intensidade quando se joga videojogos (saliência), reações negativas intensas quando privados da prática de videojogos (abstinência), uma necessidade de cada vez mais tempo investido a jogar para se sentirem saciados (tolerância), uma alteração significativa do humor durante a experiência, os videojogos serem o foco de conflitos entre vários elementos do agregado familiar e a recaída após períodos de recuperação.

Deste modo, são já conhecidos os sinais a que devemos estar atentos em indivíduos com uma adição aos videojogos. Acredita-se que a presença de 5 dos 9 sinais seguintes são indicadores de uma perturbação:

  • Interesse exclusivo e obsessivo em torno dos videojogos;
     
  • Forte reação de raiva ou tristeza quando não está a jogar;
     
  • Necessidade de cada vez mais tempo a jogar para se sentir satisfeito;
     
  • Não conseguir mudar o comportamento apesar de tentar;
     
  • Perda de outros interesses;
     
  • Manter o comportamento mesmo com o aumento de problemas derivados dele;
     
  • Mentir em relação ao tempo que esteve a jogar;
     
  • Usar o videojogo como fuga a emoções;
     
  • Ter conflitos com figuras significativas, ao ponto de poderem existir ruturas.

São também já conhecidas as consequências mais frequentes de uma utilização excessiva de videojogos: aborrecimento; aumento ou diminuição significativa do tempo de sono; exaustão; desidratação; atrofia muscular; isolamento social; ansiedade; depressão; ideação suicida; gastos excessivos; quebra de produtividade; conflitos interpessoais.

De modo a prevenir que uma prática com tantos benefícios como a de jogar videojogos se transforme numa causa de problemas de saúde mental, é importante ter em consideração:

  • Antes do comportamento de videojogo se tornar uma adição, constituiu-se como um hábito e esse hábito resultou da acumulação de várias horas acumuladas em dias repetidos. Uma das maiores formas de prevenir uma adição é nunca deixar que chegue a tornar-se um hábito pelo que a atividade de videojogo nunca deve ser algo exclusivo;
     
  • De modo a prevenir que os videojogos se tornem a única fonte de gratificação para quem os joga, é fundamental manter, para além deste comportamento, um conjunto de outras atividades diversificadas e ricas em experiências e sensações de modo a que o indivíduo consiga satisfazer as suas necessidades fisiológicas através de múltiplas fontes;
     
  • Os momentos de maior conflito em torno dos videojogos é quando estes se sobrepõem às rotinas diárias. Escolher a melhor altura para quando começar um jogo é importante, saber quando terminá-lo é ainda mais importante. Sendo a maior parte dos jogos hoje em dia jogados online, é importante ter em consideração que a desconexão destas experiências de forma súbita traz consequências negativas para os jogadores;
     
  • Sendo uma experiência tão absorvente e imersiva para aquelas que a praticam intensamente, é muito importante ter como mecanismo de apoio um relógio despertador que, pontualmente toque e que faça “despertar” o jogador da sua imersão e contemple se já terá alcançado o limite de tempo;
     
  • Diferentes videojogos devem ser jogados por diferentes jogadores de diferentes idades. Todos os videojogos são rotulados com um sistema de classificação etário denominado PEGI (Pan European Game Information), que dá indicação sobre os tipos de conteúdos apresentados durante a experiência. Estes poderão ir dos mais pedagógicos aos mais violentos. Adequar o jogo ao jogador aumenta os benefícios trazidos pela experiência.

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