Foi isto que se descobriu na comissão da TAP: indemnizações milionárias, reuniões secretas, diretores-fantasma, cartas de desconforto, computadores roubados (e mais, muito mais)

17 jun 2023, 10:00
Pedro Nuno Santos ouvido na CPI à gestão da TAP (Miguel A. Lopes/Lusa)

Tudo tem um fim. E a comissão parlamentar de inquérito não foi exceção. Dentro de um mês, chegarão as conclusões. Mas foi isto que, nos últimos meses, chocou o país. Este é o resumo que importa, após maratonas de audições

Alexandra Reis saiu por vontade de Christine. E não foi a única com indemnização

Uma coisa parece clara: Alexandra Reis saiu da TAP não por ser incompetente, mas por chocar com a então CEO Christine Ourmières-Widener. Com a mudança da estrutura acionista, e saída dos privados, Alexandra Reis contactou Pedro Nuno Santos a mostrar disponibilidade para sair. Só que, como não havia motivos para afastá-la, não teve resposta. Ela assegurava que se tivesse tido resposta, tinha saído da administração a custo zero. Pouco depois, a 4 de janeiro, Christine informava Pedro Nuno Santos que queria mudanças na comissão executiva, recebendo a autorização do ministro. Para que ela tivesse uma equipa “coerente” e em que se “revisse”, explicou o antigo governante.

A negociação passou então para a TAP, mediada entre advogados, e foi sendo acompanhada pelo secretário de Estado Hugo Santos Mendes. Pedro Nuno Santos só teria interferência na fase final: primeiro para considerar o valor alto, depois para aprovar os 500 mil euros quando recebeu indicação de que não era possível descer mais. Fê-lo por mensagem, embora num primeiro momento tenha dito que não sabia da indemnização. Depois, ao pesquisar no telemóvel, encontrou-a. E porque não a procurou logo? “Não senti necessidade.”

Mas Alexandra Reis demitiu-se ou foi demitida? Nem uma nem outra. Foi uma “renúncia após acordo”. Para Christine, ela “não tinha o perfil necessário” e estava “desajustada”. Mas vários episódios mostram que Alexandra Reis era um obstáculo a muitos planos da nova presidente. A renúncia foi enviada à CMVM. E o resto é o que se sabe: a CMVM está a investigar se existiu ilegalidade nesta comunicação, já que um acordo foi anunciado como uma renúncia.

Quem não sabia da indemnização até ela ter sido tornado pública foi o Ministério das Finanças. As Infraestruturas confiavam na TAP para fazer essa comunicação. E a TAP não o fez.

Mas, só numa fase final, viria a perceber-se que Alexandra Reis não é caso único: segundo a documentação confidencial que está na posse dos deputados, revelada pela Iniciativa Liberal, houve outros 13 antigos administradores que saíram da TAP entre 2019 e 2022. Ao todo, foram 8,5 milhões.

Alexandra Reis (António Cotrim / Lusa)

Christine teve reuniões “secretas”. E Frederico Pinheiro tirou notas em ambas

A revelação deixou os deputados em choque: Christine Ourmières-Widener esteve reunida com deputados socialistas e assessores das Infraestruturas na véspera de ir ao Parlamento dar explicações sobre a indemnização a Alexandra Reis. Carlos Pereira, coordenador do PS na comissão parlamentar de inquérito, estava nessa reunião – e acabou por abandonar o cargo.

A reunião de 17 de janeiro ficou conhecida como reunião “secreta”. Christine garantiu que não serviu para combinar respostas. E Galamba sentiu necessidade de explicar que foi a própria CEO a pedir para participar.

Isto porque se tinha reunido com o ministro da Infraestruturas na véspera, a 16 de junho, com a gestora para falar do estado da TAP. À tarde, Christine enviou uma mensagem a Frederico Pinheiro a pedir para participar na reunião do dia seguinte. E Galamba autorizou.

Em ambos os encontros, Frederico Pinheiro tirou notas. Mas só as de dia 17 chegaram aos deputados. E porquê? Segundo Galamba, porque foram essas que os deputados pediram. Garantiu mesmo que o ex-assessor lhe confirmou que não havia notas. “Nunca omiti uma informação sobre a qual não fui perguntado”, disse.

Mas Frederico Pinheiro tem outra versão: diz que houve pressão de Galamba para apagar as notas e que a chefe de gabinete lhe pediu que não fosse revelada essa primeira reunião com a CEO da TAP.

Christine teve muitas decisões de gestão que deixaram a desejar

Christine Ourmiéres-Widener teve uma reunião com Fernando Medina na véspera de ser demitida. Segundo a francesa, o ministro ter-lhe-á dito que era “a única via devido à pressão política” e sugeriu que ela apresentasse a própria demissão. Esta última parte, também Medina confirma, acrescentando que a avisou dos “danos reputacionais”. Christine não cedeu.

A decisão da saída dos presidentes da TAP foi de Fernando Medina e João Galamba, assentes no parecer da IGF. Christine viria a descobrir que tinha sido demitida “por justa causa” pelas televisões.

Estes dois ministros, ao despedir-me por justa causa, arruinaram a minha reputação. E eu tenho de limpar a minha honra. E fá-lo-ei”, garantiu na audição do Parlamento.

Mas há outras decisões da gestora que colocam o seu profissionalismo em xeque: a antiga CEO terá tentado demitir um motorista por não estar vacinado contra a covid-19, profissional que revelou que ela estaria a usar a frota da TAP para transportes de familiares.

“Perdi a paciência”, reconheceu o presidente do conselho de administração Manuel Beja sobre estes episódios.

Mas segundo Alexandra Reis havia mais: os planos da CEO poderiam penalizar as frágeis contas da TAP, como a vontade de mudar a sede para o Parque das Nações ou as contratações de estrangeiros que “não escondiam a proximidade à CEO” e “ficaram mais caros”.

Christine Ourmières-Widener (António Cotrim / Lusa)

Pressões políticas houve muitas (incluindo para mudar voos e chumbar orçamentos)

Pedro Nuno Santos veio defender que as audições da comissão parlamentar de inquérito vieram revelar que não existiam pressões políticas sobre a TAP. Mas, quando se recupera a linha do tempo dos últimos meses, percebe-se que não é bem assim. Há várias confissões de pressões, para os mais variados gostos.

O presidente do conselho de administração Manuel Beja falou em “ingerência” do governo na TAP, considerando que a tutela “perdeu o norte”. Já Lacerda Machado reconheceu que o ex-secretário de Estado Souto de Miranda o pressionou a chumbar o orçamento de 2020.

Christine Ourmières-Widener foi categórica a dizer que “não estava ciente da pressão política” quando chegou à TAP. E nem o antigo acionista David Neeleman poupou críticas nesta matéria, falando em “ingerências e pressões inaceitáveis” do poder político.

Mas os exemplos mais marcantes vêm do ex-secretário de Estado das Infraestruturas Hugo Santos Mendes: pediu à TAP para mudar um voo de Marcelo Rebelo de Sousa vindo de Moçambique e ajudou a TAP a responder a um esclarecimento pedido pelo próprio Governo.

Em nenhum dos casos, Pedro Nuno Santos sabia da atuação do seu governante. Na audição, Hugo Santos Mendes lamentou o sucedido com o voo de Marcelo – “penalizo-me pelo comentário” – e negou a existência de uma “fachada” na resposta pedida à companhia aérea.

Hugo Santos Mendes ( Manuel de Almeida/Lusa)

Privatização de 2015: as cartas de conforto que deixaram todos desconfortáveis

Com o aproximar do fim da comissão parlamentar de inquérito, a privatização da TAP em 2015 alimentou longas horas. Foi, literalmente, uma batalha política, com PS e PSD a tecerem versões bem diferentes sobre a mesma realidade.

O ex-ministro das Infraestruturas Pedro Marques veio alertar que as cartas de conforto, de novembro de 2015, que desbloqueavam a privatização, colocavam o “risco” todo do lado do Estado. Ou seja, se os privados falhassem um pagamento, o Estado tinha de assegurar esses valores, mesmo com a TAP “espatifada”.

Para Pedro Marques, as cartas de conforto eram um “flagrante auxílio de Estado”, algo que o secretário de Estado das Infraestruturas Sérgio Monteiro, do governo PSD/CDS-PP de Passos Coelho, veio rejeitar.

Num outro momento, já após a pandemia, ficou a saber-se que os privados não mostraram disponibilidade para capitalizar a empresa, porque não tinham os mil milhões necessários, o que obrigou à intervenção pública. E que Bruxelas não exigiu a venda da TAP nem cortes no pessoal e nos salários para o processo de reestruturação.

Pedro Marques (Miguel A. Lopes / Lusa)

Brasil: o “melhor negócio” ou um buraco?

Um dos temas que mais vezes visitou a comissão de inquérito foi o do investimento da TAP no negócio da manutenção no Brasil, através da VEM/Varig – que acabou por representar um buraco na ordem dos mil milhões de euros nas contas da TAP. A ideia de fazer esse negócio foi do então presidente Fernando Pinto.

As críticas vieram de todos os lados, inclusive dos sindicatos, que revelaram que houve aviões que foram ao Brasil para serem arranjados, mas que voltavam a Lisboa com necessidade de intervenções adicionais. Houve até referências a faturas de serviços, pagos acima do mercado, para garantir que continuava a entrar dinheiro da TAP neste negócio no Brasil.

E, no meio das críticas, um defensor acérrimo desta aposta: Lacerda Machado considerou-o “o melhor investimento nos últimos 50 anos”, lembrando que foi esta aposta que permitiu à TAP desenvolver as suas rotas para o Brasil, das mais rentáveis para a empresa.

Diogo Lacerda Machado (José Sena Goulão / Lusa)

Uma “diretora-fantasma” que, afinal, “vai todos os dias à empresa”

Karolina Machura Tiba foi contratada pela TAP como diretora para negociar com os tripulantes. Mas, além de uma circular a informar da contratação, os trabalhadores revelaram que nunca mais souberam dela nem a viram. Os tripulantes garantiram mesmo que nunca falaram com esta responsável.

A polaca, que ganha 12 mil euros por mês, ganhou o cognome de “diretora-fantasma”, que estava “missing in combat”. E teve de ser o administrador Ramiro Sequeira a deixar tudo em pratos limpos.

Afinal, Karolina Tiba “vai à empresa todos os dias”. Tem é uma postura “discreta”: “já fez vários voos de observação para perceber a realidade dos tripulantes. Talvez tenha sido uma aproximação discreta, mas não menos válida e profissional”.

Ramiro Sequeira (Miguel A. Lopes / Lusa)

Consultoria milionária de Pinto: 1,6 milhões para dar conselhos

Uma das revelações desta comissão de inquérito foi o contrato de 1,6 milhões de euros assinado por Fernando Pinto. Quando deixou a presidência da empresa, passou a dar conselhos a quem lá ficou. Como? Foi uma das questões que os deputados fizeram durante semanas.

Até que Diogo Lacerda Machado, administrador, conhecido como o melhor amigo de António Costa, foi à comissão. Foi ele um dos que mais recorreu aos conselhos de Fernando Pinto. “Foi pouco” face à importância do ex-presidente executivo da companhia aérea, disse.

Papelada concreta sobre o trabalho prestado por Pinto não existe, até porque muito dessa consultoria era feita de forma informal.

Na fase final das audições, o PCP haveria de revelar ainda que Fernando Pinto trabalhou para os privados da Atlantic Gateway antes de a privatização ser fechada. Algo que foi apresentado como um “erro administrativo”, mas que levou vários meses a ser corrigido.

Fundos Airbus: a TAP a pagar a privatização e 55 milhões para Neeleman não levar mais

Fundos Airbus. Falou-se tanto deles nos últimos meses. Resumo: Neeleman exerceu a sua influência junto da Airbus para cancelar uma encomenda em que a TAP estava em risco de incumprimento, prometeu uma encomenda de 53 outros aviões após a privatização e conseguiu um financiamento de 224 milhões para aplicar na TAP.

Parecia tudo bem, até que a TAP percebeu que estava a pagar aviões acima do preço dos concorrentes e fez uma auditoria. Conclusão: a TAP estava a pagar a sua própria privatização.

Estes fundos estavam à vista de todos, mas ninguém parecia vê-los: o parceiro Humberto Pedrosa desconhecia, o governo PSD-CDS/PP só teve conhecimento deles após fechada a venda aos privados em 2015, a informação não foi passada ao governo que se seguiu, Pedro Nuno Santos só soube deles em 2022 após a auditoria da TAP.

Mas são estes 224 milhões que acabam por ditar outro valor: os 55 milhões pagos a Neeleman, já depois da pandemia, para sair da TAP. Porque, sem acordo, e se o empresário fosse para a justiça, o Estado arriscava-se a ter de desembolsar bem mais: estes 224 milhões de prestações acessórias

Houve quem, como Lacerda Machado, defendesse que o evento “excecional” da pandemia fazia cair o acordo parassocial de 2017 e esse pagamento. Mas Pedro Nuno Santos e o Governo queriam desbloquear os apoios públicos para salvar a TAP. “Não havia tempo” para disputas em tribunal, justificou o ex-ministro.

Até hoje, disse-se à esquerda e à direita, não há dados que confirmem que a operação com os fundos Airbus seja ilegal ou comprovativos de que a TAP está, efetivamente, a pagar mais do que devia pelos aviões. O Ministério Público está a investigar.

Humberto Pedrosa (José Sena Goulão / Lusa)

Um computador roubado, secretas em ação: quando Galamba rasgou a boa relação Marcelo-Costa

Se a comissão parlamentar de inquérito sobre a TAP fosse um filme, a polémica sobre a intervenção do SIS na recuperação do computador do ex-assessor de João Galamba seria o spin-off. Mas daqueles spin-offs que acabam por tirar protagonismo ao original.

É que na noite de 26 de abril, quando o caos se instalou no Ministério das Infraestruturas, já a comissão tinha apurado muita coisa. Só que computadores alegadamente roubados, os serviços secretos chamados para recuperá-lo, agressões e gente fechada na casa de banho pareciam elementos muito mais interessantes para explorar. E assim foi.

Galamba, chamado de urgência, procurou recuperar a fita do tempo, numa noite em que houve chamadas a muita gente. Mas dele, garantiu, nenhuma foi para o SIS. Foi a chefe de gabinete que, por sua iniciativa, tomou essa decisão.

Contactado por Galamba, o secretário de Estado António Mendonça Mendes até chegou a sugerir essa opção. Mas, à hora da chamada, já a chefe de gabinete tinha contactado as secretas. Disto, António Costa lavou sempre as mãos.

As relações entre Belém e São Bento acabaram abaladas, com Marcelo a querer forçar a saída de Galamba e Costa a segurá-lo.

Houve, de Galamba, direito a acusações de espionagem a Frederico Pinheiro, que ia ao ministério à noite para tirar fotocópias. Pedro Nuno Santos acabou a garantir que ele não era o destinatário. E a dizer que “no meu tempo” o plano de reestruturação da TAP não estava apenas no computador do ex-assessor.

João Galamba (Miguel A. Lopes / Lusa)
Frederico Pinheiro (José Sena Goulão / Lusa)

Uma comissão onde o importante parece ter acontecido fora

Enquanto os trabalhos da comissão de inquérito decorriam, muitos deputados aproveitavam para comentar o que se passava com a TAP no exterior. Houve momentos (e não foram poucos) em que as revelações que se esperavam da comissão de inquérito acabaram reveladas fora de portas. E houve muitos puxões de orelha a este nível.

E, apesar de haver uma sala secreta para consulta de documentos confidenciais, houve mesmo uma fuga de informação, relativa à sustentação jurídica para a demissão dos presidentes da TAP. O caso foi investigado.

A vida da própria comissão não foi fácil, com múltiplas críticas à forma como o PS estava a limitar o acesso a documentação e depoentes. Num dos momentos, chegou-se a discutir durante mais de uma hora que grelha seria aplicada nas audições.

O então presidente da comissão, Jorge Seguro Sanches, depois de várias vezes a ver a sua autoridade colocada em causa, decidiu que aquela era a gota de água. Apresentou a demissão e foi substituído por Lacerda Sales.

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