Já foi uma prisão política, agora é um museu - mas "não é um choradinho": "A conquista da liberdade é talvez a coisa mais linda que se pode viver"
População concentrada junto à Fortaleza de Peniche, aguardando a libertação dos presos políticos a 26 de abril de 1974 (DR: Foto de Luís Correia Peixoto/Museu Municipal de Peniche)

Já foi uma prisão política, agora é um museu - mas "não é um choradinho": "A conquista da liberdade é talvez a coisa mais linda que se pode viver"

🌹 50 ANOS DO 25 DE ABRIL

TEXTO 🌹
Maria João Caetano

Domingos Abrantes, comunista e resistente antifascista, passou quase dez anos na Cadeia do Forte de Peniche, para onde a PIDE enviava os presos políticos a fim de lhes "quebrar o espírito". Este sábado, 50 anos depois da libertação dos presos de Peniche, será ali inaugurado o Museu Nacional Resistência e Liberdade. Uma homenagem a todos os que resistiram à ditadura, sofreram torturas ou até deram a vida por este combate. "Não é um choradinho. É um apelo a que as pessoas que têm a liberdade sintam que a devem defender. E que têm o dever moral, nem é político, é um dever moral, para que tantas vidas sacrificadas não tenham sido em vão."

Durante o Estado Novo, Domingos Abrantes passou perto de dez anos preso na Cadeia do Forte de Peniche. "Foi muito tempo. A certa altura era a terra onde mais tinha vivido sem nunca conhecer a terra. Pior ainda: estive quase nove anos e meio numa cela de 2 metros por 1 metro. Na melhor das hipóteses, se não estivesse castigado, e fui muitas vezes castigado, eram 21 horas por dia fechado. Sozinho." Nesses castigos, que podiam durar um mês, era necessário ter uma força mental ainda maior. "Não se pode passar a vida a olhar para as paredes. A gente tem de recriar a vida exterior. Tem de pensar que cá fora a luta continua, pensar na nossa esperança de liberdade. Pensar na família, na companheira. Pensar na vida. A cabeça tem de trabalhar. Mal dos camaradas que caíam naquela pasmaceira. E é curioso que houve camaradas que sucumbiram, não por causa das torturas físicas - e às vezes sofreram torturas brutais - sucumbiram por causa do isolamento."

Este sábado - 50 anos depois do dia em que foram libertados os presos políticos de Peniche, após a Revolução - o militante comunista e resistente antifascista, atualmente com 88 anos, vai estar na inauguração do Museu Nacional Resistência e Liberdade, instalado no Forte de Peniche, de cuja comissão instaladora fez parte nos últimos sete anos. "Faço-o com muito gosto, com muita paixão. Posso ser exagerado, mas sinceramente acho que a inauguração deste museu é dos maiores eventos dos cinquenta anos do 25 de Abril", afirma Domingos Abrantes.

Esta é mais do que uma prisão tornada museu, diz a sua diretora, Aida Rochena. "O museu existe porque existia aqui uma cadeia de alta segurança para presos políticos, mas tem um âmbito muito mais alargado, pretende homenagear todos aqueles que resistiram ao regime fascista, não só a nível nacional mas também nos territórios colonizados", explica. Por isso é um museu nacional e por isso se chama "Resistência e Liberdade". E mesmo que o percurso até à inauguração tenha sido atribulado, o importante é que se tenha finalmente concretizado: "É muito importante, antes de mais, preservar o sítio. Os locais das memórias do sofrimento. Quando desaparecerem os protagonistas da história, quem fala por eles são os sítios", sublinha a diretora. "Neste caso, ainda temos protagonistas vivos e temos muitos testemunhos, esse registo é essencial." Mas, acima de tudo, Aida Rochena quer que este museu tenha uma mensagem para o futuro: "Não é só um museu de memória, a memória é importante para mostrar como a liberdade deu muito trabalho a ser conquistada e dá muito trabalho a manter - essa é a mensagem principal."

Museu Nacional Resistência e Liberdade,  Peniche (DR: Arlindo Homem)

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Ser comunista, "uma questão de dever moral"

Domingos Abrantes nasceu em Vila Franca de Xira, em 1936, mas mudou-se "pequenito" para um bairro operário na zona oriental de Lisboa, onde havia "fábricas porta sim, porta sim". "A minha mãe era operária da tabaqueira e eu cresci num meio onde o partido tinha muita influência", recorda. Tinha uns sete anos quando assistiu a uma cena que o impressionou: "Marcou-me toda a vida, nunca mais esqueci. Era um período muito difícil, de fome, de plena guerra, de carências enormes. E, então, assisti a uma greve de mulheres tabaqueiras. Foram presas pela GNR , que as encurralou junto à parede com os cavalos e com as espadas, e conduziu-as para o Campo Pequeno. Para os miúdos só seriam presos os malandros, não é? E eu conhecia-as, elas cumprimentavam-me, 'olá, Domingos', pessoas que tinha por gente de bem iam presas. Mas elas, com coragem inaudita, não havia espadas nem cavalos que as intimidassem, e gritavam com um grito que saía das entranhas, e só diziam uma coisa: 'Temos fome, queremos pão'. Só gritavam isto. 'Temos fome, queremos pão'. E isso marcou-me muito. Sobretudo a coragem de enfrentar as autoridades."

Aos 11 anos foi trabalhar para uma fábrica, como torneiro na manutenção militar. "Naquela altura os miúdos saíam da escola e iam trabalhar, chegar à quarta classe era uma grande audácia familiar. O salário dos miúdos era pouco, mas dava jeito. Às vezes até era quase só o que existia", conta. Era uma fábrica grande. "Geralmente os chamados oficiais descarregavam sobre os miúdos as suas frustrações, as iras dos patrões. Ou descarregavam nas mulheres em casa, ou descarregavam nos aprendizes." Percebeu cedo quão dura era a vida dos trabalhadores. Aos 17, desafiado por um colega operário, entrou para o MUD Juvenil e foi aí que se iniciou a sua vida política. Nessa altura já tinha experiência de fugir da polícia por andar a colar cartazes ou a pintar as paredes. "Não havia Facebooks nem nada disso, as paredes eram, digamos, as redes sociais. Portanto, a gente pintava as paredes com 'abaixo o fascismo', e 'liberdade para os presos políticos', essas coisas. Mas apanhávamos uns sustos."

Repressão de um protesto durante o Estado Novo (DR/PCP)

Pouco depois, ingressou no PCP. "Uma vez perguntaram-me se eu me tinha tornado comunista por ser pobre. Uma pergunta curiosa. Infelizmente, se os pobres se tornassem comunistas isto só havia comunistas por todo o lado, ganhávamos as eleições todas", ri-se, "Não. Eu não me tornei comunista por ser pobre. Ajudou, mas não foi isso. Isto é uma questão de dever moral. É preciso ter um pensamento perverso para achar que esta sociedade de miséria, de exploração, possa ser aceitável. Pessoas que moram na rua, pessoas que trabalham uma vida inteira e vivem na miséria, que são despejadas, que não têm horizontes... Portanto, tornei-me comunista porque não me revejo nesta sociedade. A diferença é que há uns que acham que não é boa, outros acham que ela deve mudar. E a diferença não é pequena."

Em 1956, Domingos Abrantes entrou na clandestinidade. "Era uma coisa duríssima. Deixava-se de ter vida normal, passavam-se anos e anos e não se via a família. Nem se sabia se estavam vivos ou mortos, ou vice-versa. Sempre a pensar que a qualquer momento se podia ser preso. A nossa própria identidade desaparecia. Chamei-me Sérgio, José Augusto, David... Tinha-se documentos falsos, carta de condução falsa, uma identidade falsa. E o grande problema era, às vezes, as pessoas enganarem-se no nome. Isso era um desastre completo."

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A prisão. "Há uma coisa que é obrigatória: estar preparado para não falar"

Claro que, sendo comunista, sabia que podia ser preso a qualquer momento. "Tínhamos de saber. Aliás, vi muitos companheiros que foram presos. Sabíamos que esse era o risco." Aconteceu-lhe, pela primeira vez, em 1959. Foi preso na rua, na Amadora. "Eles nem sabiam quem eu era, sabiam só que eu era clandestino. A primeira coisa que me perguntaram foi o nome. Da minha boca nunca ouviram nem bom dia nem boa tarde, nem o nome. Zero. Da minha boca, zero. Aquele primeiro embate decide muito. Se se entra na polícia e não se diz o nome, nunca mais se pode dizer o nome. Porque era uma fraqueza. E a certa altura já sabiam quem eu era, mas continuavam a perguntar-me o nome, só para ver se eu fraquejava. E eu nada."

A não ser chamar-lhes nomes, claro. "E acontecia uma coisa curiosa: se lhes chamasse ladrões, porque eles eram ladrões - roubaram-nos, ficaram com a roupa, as panelas, os livros, tudo, tudo, tudo, tudo foi roubado, tudo confiscado, ficámos, a minha mulher e eu, só com a roupa que tínhamos o corpo -, batiam-me. Batiam forte e bem. Se lhes chamasse assassinos nem me tocavam. E mais, e tinham orgulho nisso, diziam sim, matamos. Tinham orgulho em ser assassinos."

Domingos Abrantes esteve preso em Caxias, no Aljube e em Peniche. No total, passou 11 anos intercalados na cadeia. Foi interrogado e torturado. Sofreu tortura do sono e isolamento. "A tortura é uma luta, não se pode mostrar a mais pequena hesitação", recorda. "Uma vez tiraram-me a cadeira, para eu ficar de pé. E eu deitei-me no chão. Vieram com cassetetes. Mas eu dali já não podia levantar-me." E, depois, isto: "Há uma coisa que é obrigatória: estar preparado para não falar, é um dever."

Domingos Abrantes quando foi presos em Caxias, em 1959 (DR/ PCP)

A última vez que esteve a ser torturado foram 16 dias e 16 noites consecutivos. É difícil imaginar. "Não me deixavam dormir. E espancamentos. Sempre com um trabalho psicológico. E vais morrer, e vais morrer, e vais morrer... E o partido não merece esse sacrifício. E estás perto da morte. Portanto, sempre a incutirem o medo da morte." Domingos estava no chão, já não se aguentava de pé, mas lembra-se que ainda era capaz de sorrir. "Eu sabia que aquilo, no fundo, era porque eles estavam raivosos de eu não dizer nada. E posso-lhe dizer que é uma alegria imensa mostrar que as nossas convicções são mais fortes que a violência. Porque eles podiam matar-me e estiveram muito próximo disso, mas eu tinha uma coisa que eles não iam ter. Sair da mão da polícia sem falar é uma alegria imensa. Mostra que somos capazes de nos superar a nós mesmos."

Costuma dizer que esteve enterrado vivo. "Estive no sentido figurado, claro, mas estive mesmo, literalmente." Aconteceu depois da famosa fuga de Caxias, em 1961, com outros companheiros. Quando foi novamente apanhado, além de condenado pela atividade política, também tinha de pagar por ter fugido, por ter destruído um carro, partido um portão, tinha de pagar pelos prejuízos à fazenda pública. "Saí diretamente da tortura do sono para Caxias. E tinha um staff à minha espera: o diretor da prisão, o inspetor da PIDE, o chefe de guarda, a elite toda para me dar um responso: 'Um bom filho à casa torna'." Como castigo, foi dez dias para o "segredo".

O segredo "era um sítio horrível", diz Domingos Abrantes. "Era um buraco subterrâneo. Não havia a mais pequena fresta por onde entrasse luz. Completamente escuro. Não se ouvia o som de uma mosca. O silêncio absoluto. Dormia no chão de terra e a sanita era aquela sanita romana, um buraco no chão. Tinha de ir às apalpadelas, com as mãos na parede. E ali estive dez dias", recorda.

Ele era "um bocado reguila", confessa. Quando ia a entrar para o "segredo", o guarda avisou-o: "Não pode cantar". Domingos não gostava de cantar, "era uma cana rachada". "Mas no momento em que me disseram que não podia cantar, eu tinha de cantar. Então cantei A Internacional. Era a única coisa que sabia. Aquilo não me aliviava nada, era só porque me disseram que não podia fazer."

Celas da cadeia de Peniche - Museu Nacional Resistência e Liberdade (DR: Arlindo Homem)

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Peniche, uma prisão altamente vigiada, onde se "quebravam os espíritos"

O Forte de Peniche tem quase cinco séculos e durante grande parte desse tempo foi usado como "depósito" de presos ou de refugiados, como então se dizia. Só em 1953 passou a ser Cadeia do Forte de Peniche, uma prisão de alta segurança, gerida pela PIDE, que recebia homens detidos por motivos políticos. "Eram aqueles que, na ótica do regime, eram os presos mais perigosos", explica Aida Rochena. "Era uma prisão altamente vigiada. Havia os guardas prisionais, havia os guardas da GNR no exterior e ainda havia os agentes da PIDE, que estavam na comunidade, porque sabiam que havia sempre pessoas a tentar entrar em contacto com os presos e a organizar fugas. Além disso, Peniche era uma localidade muralhada e ainda hoje as pessoas se lembram que à noite os portões eram fechados. Para os detidos era uma dupla prisão." Apesar disso, houve várias fugas - algumas falhadas, mas outras bem sucedidas, como a célebre fuga protagonizada por Álvaro Cunhal e outros detidos, em janeiro de 1960.

Prisão de Peniche, antes do 25 de Abril de 1974 (DR/ Museu Nacional Resistência e Liberdade)

Um mês depois, Domingos Abrantes chegou pela primeira vez à prisão de Peniche. "Aquilo era um ambiente de cortar à faca. Era de uma violência enorme, uma raiva. Descarregavam em nós a frustração, a derrota, por não terem conseguido evitar a fuga. Foi talvez o período mais tenebroso do regime. Aquilo era uma coisa descabelada, de arbitrariedade, de mesquinhez", relembra o antigo prisioneiro. Apesar de tudo, preferia estar numa cela do que numa sala. "Eu suportava bem o isolamento. Sinceramente. Não gostava, ninguém pode gostar, mas preferia o isolamento às salas. A vida prisional é difícil. Cada pessoa tem a sua forma de ser, mas todos os presos têm dramas. Um pai que está preso, que a mulher chega e diz que não tem forma de pagar a renda da casa, que o senhorio ameaça pô-la na rua, que o filho não quer estudar. E depois a impotência desse pai que não pode ajudar a família. Começa a interiorizar que é responsável pela tragédia. Isso cria às vezes estados depressivos. De angústia mesmo. Isso contamina os outros."

A vida na prisão era, portanto, muito solitária. Se tudo corresse bem, os presos saíam da cela três vezes por dia. Ao almoço e ao jantar, que decorriam sempre em silêncio. "Comíamos juntos mas era proibido falar. Se falasse acabava logo a refeição. Mas o facto de nos encontrarmos já era uma coisa importante", conta Domingos Abrantes. E, depois, se não chovesse, havia o recreio, que era uma hora de ar livre. "Não podia haver ajuntamentos. A gente fazia reuniões à grego, andávamos de um lado para o outro. Tinha de se falar, de forma a que os carcereiros não ouvissem as conversas. Mas era um momento mais salutar, porque conversávamos e combinávamos a nossa vida coletiva." Em Peniche eram todos presos políticos. "Só havia presos comuns que faziam o almoço, o jantar, faziam a limpeza. De resto, éramos todos presos políticos, por isso havia sempre uma cumplicidade, uma solidariedade. Havia uma luta comum, isso era muito importante."

Aida Rochena explica que em Peniche não havia tortura física, mas havia um regime celular, de isolamento, que podia ser agravado pelos castigos. "Era o que o regime chamava 'quebrar os espíritos'. Era um regime muito duro. Os presos eram condenados por um determinado período, mas sabiam que a sua pena podia ser prolongada, sem qualquer justificação. As visitas só podiam acontecer quando os guardas permitiam, podiam ser retiradas e interrompidas a qualquer momento. Havia uma constante manipulação mental dos presos", sublinha a diretora do museu. "Nas visitas não podia haver toque. Os presos não podiam sequer pegar nos seus filhos ao colo. Para alguns isso era uma verdadeira tortura."

Também havia muitos castigos. Um dos castigos era proibirem os livros. "Sem livros a vida era muito mais difícil, era das poucas coisas com que nos podíamos entreter", lembra Domingos Abrantes. Ou era privação de recreio. De comer no refeitório. Era o isolamento no "segredo". Outro dos castigos era proibirem a correspondência ou as visitas da família. "O que criou muitos dramas. Havia famílias que iam ali uma vez por ano, porque era muito difícil, não tinham dinheiro para viajar. E chegavam lá, não tinham visita porque o preso estava de castigo." Domingos Abrantes esteve cinco anos sem ver a sua companheira, Conceição Matos, e sem sequer poderem trocar correspondência. 

Domingos Abrantes, quando foi preso em Peniche, em 1965 (DR/PCP)

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Um casamento na prisão e um noivo que não aparece nas fotografias

Domingos e Conceição tinham-se conhecido quando ele estava preso em Caxias. "O irmão dela também estava preso. A minha mãe foi-me visitar e coincidiu com uma visita dela e da mãe ao irmão. Estavam num compartimento mesmo ao lado. A Conceição era uma mulher muito bonita, é daqueles rostos que... enche o olho. Aquilo foi uma coisa fugaz. Passei anos e nunca mais vi a Conceição. Nem nunca pensei que ela viria a ser minha companheira. Depois da fuga, fui parar ao Barreiro. E ela estava organizada no Barreiro, era do partido e tinha passado à clandestinidade como eu. E entendemo-nos. Até hoje, já levamos 60 e tal anos juntos."

Na verdade, não conseguiram ficar logo juntos porque, entretanto, Domingos Abrantes foi novamente detido. Casaram em outubro de 1969, na prisão de Peniche. "Primeiro, demoraram anos e anos para me deixar casar. Depois, foi uma odisseia porque rejeitavam todas as testemunhas de casamento. Uns porque eram presos, outros porque eram suspeitos, porque tinham ideias contrárias ao regime, porque não tinham idoneidade moral. Uma coisa mesmo absurda. Lá autorizaram o irmão dela a ser nossa testemunha. E, por fim, o casamento foi lá numa sala de Peniche. A família entrou por um lado, eu entrei por outro, sempre acompanhados pelos guardas. O notário da vila leu aquilo, aceita casar, aceito, foram uns minutos. Assinar os papéis e já está. E no final só autorizaram fotografias da família, portanto nas fotografias do casamento nunca aparece o noivo", conta Domingos Abrantes, entre risos. "Uma originalidade." No final, os familiares foram almoçar juntos a um restaurante, e ele foi almoçar com os outros presos no refeitório, em silêncio. 

Conceição Matos, presa em 1968 (DR)

A verdadeira vida em casal só começou quando ele saiu da prisão, em março de 1973. "Éramos um casal mas nunca tínhamos vivido juntos. É preciso um enorme compromisso", diz. "O nosso casamento não era só afetivo. Tínhamos ideias iguais, tínhamos projetos iguais. Nem poderia ser de outra maneira." E vai ainda mais longe na explicação: "Eu não sou o grande adepto do termo paixão. A paixão tem algo de doentio, de absorvente, a paixão é egoísta. Na vida em conjunto não entram só a afetividade e a atração física, aprendi isto com o Lenine. Existe a racionalidade. E não há uma ligação duradoura se não for na base da racionalidade. A atração física é uma parte da vida, mas a partir de determinada altura o que nos mantém é o interesse mútuo, o respeito um pelo outro, o querer ver a felicidade do outro. Caminhamos lado a lado pelo mesmo ideal. Isso tudo dá uma grande solidez às nossas vidas. Agora já vivemos há 51 anos seguidos juntos", assume, sem esconder a felicidade.

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"A conquista da liberdade é talvez a coisa mais linda que se pode viver"

Depois de sair da prisão, Domingos Abrantes esteve a trabalhar num sindicato, no período da formação da CGTP, mas a 6 de fevereiro de 1974 ele e a mulher entraram novamente na clandestinidade. "As perspetivas eram: ou éramos novamente presos, e era sempre a dobrar, em vez de 12 passavam a ser 20 anos; ou éramos mortos, como muitos outros camaradas; ou então, estávamos na clandestinidade até vir a liberdade. Mas não achávamos que ia acontecer tão cedo", recorda. "Quando vamos para a clandestinidade é como se fôssemos para uma longa viagem. Por isso, demos tudo aos camaradas. Porque para nós era inútil. Fomos só com uma maleta. Felizmente, quando voltámos, os camaradas não tinham ido buscar nada, estava lá tudo intacto."

Foram para França. No dia 25 de Abril de 1974, Conceição Matos estava em Paris e Domingos Abrantes tinha ido a Bruxelas para uma reunião com representantes dos movimentos de libertação das várias colónias. "Estivemos a discutir a cooperação do Partido Comunista com os movimentos de libertação, e nenhum de nós sabia que estava a acontecer o 25 de Abril. Despedimos-nos, marcámos um novo encontro para Paris e tudo. Meto-me no comboio e quando chego à gare do Austerlitz está a Conceição e diz: caiu o Marcello."

Álvaro Cunhal na chegada a Lisboa a 30 de Abril de 1974 (Arquivo AP)

Regressaram a Portugal a 30 de Abril, no "Avião da Liberdade", onde vinham Álvaro Cunhal e muitos outros exilados políticos. "Tudo a cantar no caminho, uma alegria esfuziante. No dia seguinte era 1.º de Maio", recorda Domingos Abrantes. "Chegámos ao aeroporto, foi uma coisa coisa inolvidável. Aquilo era uma multidão gigantesca, íamos sendo esmagados. Toda a gente a querer abraçar, sobretudo o Álvaro, uma figura mítica. A vidraça do aeroporto partiu-se com a pressão das pessoas, não sei como é que ele não morreu ali. Chegámos cá fora, bandeiras vermelhas por todo o lado, nós nunca tínhamos visto nada assim. Tudo a gritar 'Viva o Álvaro Cunhal', 'Viva o partido comunista'. Aquilo era um mundo novo. Nunca mais a gente se esquece. De um povo que viveu sempre oprimido, sempre fugido, sempre escondido, sempre a conter as palavras, aquilo saía das entranhas, as pessoas abraçavam-se, como se fossem irmãos. A conquista da liberdade é talvez a coisa mais linda que se pode viver."

Domingos Abrantes tinha vivido toda a sua vida oprimido e grande parte dela na cadeia ou escondido. "Quem nasceu em liberdade, para quem a liberdade é tão natural como respirar, talvez não entenda como o 25 de Abril foi importante. Esta liberdade que temos, com todos os seus defeitos, custou imenso a conquistar."

  • População concentrada junto à Fortaleza de Peniche, aguardando a libertação dos presos políticos a 26 de abril de 1974 (DR/ Museu Nacional Resistência e Liberdade)
    População concentrada junto à Fortaleza de Peniche, aguardando a libertação dos presos políticos a 26 de abril de 1974 (DR/ Museu Nacional Resistência e Liberdade)
  • População concentrada junto à Fortaleza de Peniche, aguardando a libertação dos presos políticos a 26 de abril de 1974 (DR: Foto de Luís Correia Peixoto/Museu Municipal de Peniche)
    População concentrada junto à Fortaleza de Peniche, aguardando a libertação dos presos políticos a 26 de abril de 1974 (DR: Foto de Luís Correia Peixoto/Museu Municipal de Peniche)
  • Elementos do MFA com a população concentrada junto à Fortaleza de Peniche, aguardando a libertação dos presos políticos a 26 de abril de 1974 (DR: MFA/ Museu Nacional Resistência e Liberdade)
    Elementos do MFA com a população concentrada junto à Fortaleza de Peniche, aguardando a libertação dos presos políticos a 26 de abril de 1974 (DR: MFA/ Museu Nacional Resistência e Liberdade)
  • População concentrada junto à Fortaleza de Peniche, aguardando a libertação dos presos políticos a 26 de abril de 1974 (DR: Foto de Luís Correia Peixoto/Museu Municipal de Peniche)
    População concentrada junto à Fortaleza de Peniche, aguardando a libertação dos presos políticos a 26 de abril de 1974 (DR: Foto de Luís Correia Peixoto/Museu Municipal de Peniche)
  • Dinis Miranda, primeiro preso político libertado da prisão de Peniche na madrugada de 27 de abril de 1974 (DR: foto de António Alves Seara/ Museu Municipal de Peniche)
    Dinis Miranda, primeiro preso político libertado da prisão de Peniche na madrugada de 27 de abril de 1974 (DR: foto de António Alves Seara/ Museu Municipal de Peniche)

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"Não é um choradinho. É um apelo a que as pessoas que têm liberdade sintam que a devem defender"

No dia 25 de Abril de 1974 a prisão da Fortaleza de Peniche foi cercada por uma força militar do MFA proveniente de Leiria, mas os elementos da Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) só se renderam na manhã do dia seguinte. A concentração de populares junto à Fortaleza, a ação dos militares do MFA e a decisão tomada pelos presos de que ou “saíam todos, ou nenhum” impulsionaram a libertação dos presos concretizada, finalmente, na madrugada do dia 27 de abril.

50 anos depois, a prisão dá lugar ao Museu Nacional Resistência e Liberdade. A sessão solene de inauguração acontece de manhã, à tarde as portas abrem-se para toda a população e a entrada é gratuita. 

"Nomeai um a um todos os nomes. Lutaram e resistiram. A liberdade guarda a sua memória nas muralhas desta fortaleza": à entrada do museu está um memorial com os nomes do 2626 presos que por ali passaram durante o Estado Novo. "O direito à nomeação é muito importante e este memorial tem uma grande força porque são muitos nomes", esclarece Aida Rochena: "Estes são só os que temos registos escritos, suspeito que tenham sido mais, continuamos a fazer essa investigação."

População concentrada junto à Fortaleza de Peniche, aguardando a libertação dos presos políticos a 26 de abril de 1974 (DR: Foto de Luís Correia Peixoto/Museu Municipal de Peniche)

"Ao contrário do que as pessoas pensam, o trabalho dos museus não fica pronto com a inauguração", diz Aida Rochena. "O trabalho vai continuar, de investigação, de recolha de testemunhos, de preservação da memória, de passar a mensagem."

Entre os espaços visitáveis estão as celas, "praticamente intactas", o parlatório, que era o local onde os presos recebiam as visitas, a capela, o pátio e o "segredo", a tal cela para onde iam cumprir os castigos. Na exposição "Resistência e Liberdade" procura-se "caracterizar o regime, o papel da PIDE, a violência da guerra colonial e do colonialismo, as várias cadeias existentes, sem esquecer o Tarrafal, em Cabo Verde, a resistência em todas as frentes - os militantes, os operários, os estudantes, as mulheres, o mundo rural, os artistas". A visita termina com a evocação do 25 de Abril de 1974, a libertação dos presos e as manifestações do 1 de Maio.

Domingos Abrantes voltou já várias vezes à cadeia de Peniche. "Tenho camaradas que ainda hoje não conseguem transpor aquelas portas. E percebe-se. Até a minha mulher diz que lhe custa falar de certas coisas, só fala porque sente que tem esse dever. Mas eu superei isso. Vou ver a minha cela, onde passei anos e anos e anos, sem o mais pequeno sobressalto." 

"Se perdermos a memória, não temos futuro. E ali está a memória, dos sofrimentos, da luta, do regime, da barbaridade", explica Domingos Abrantes. "Mas, sobretudo, não é um museu passadista. É um museu para quem ali entrar se tornar um lutador pela liberdade. Há um memorial com 122 nomes de pessoas que foram assassinadas por resistirem à ditadura. Não é pouco. E não são todos. Porque ainda hoje andamos à procura de saber onde é que foram enterrados e o que é que lhes aconteceu. E é um dever de continuar à procura. Pessoas foram torturadas até à morte. Pessoas que foram enterradas sem nunca a família saber onde foram enterradas. Ainda agora, quase o museu a abrir, é que descobrimos a identificação de cinco pessoas que tinham sido enterradas numa vala comum. É disto que estamos a falar. E, portanto, aquilo não é um choradinho. É um apelo a que as pessoas que têm liberdade sintam que a devem defender. E que têm o dever moral, nem é político, é um dever moral, para que tantas vidas sacrificadas não tenham sido em vão."

Museu Nacional Resistência e Liberdade, Peniche (DR: Arlindo Homem)
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