Cruzámo-nos na rua com quem ainda é "do tempo em que vinham brigadas obrigar as pessoas a fechar as lojas todas no Dia do Trabalhador". Mas também com quem não vai marchar neste 1.º de Maio por causa das artroses, "as artroses já não permitem essas andanças e eu também nunca gostei de apertos": "Mas nada contra. Antes do 25 de Abril, o 1.º de Maio era só o Dia dos Tipógrafos, não havia cá Dia do Trabalhador. Acho bem que festejem!" É 1 de Maio, uns festejam a descansar, outros a marchar e outros a fazer o que fazem nos dias todos - a trabalhar. Porque tem de ser, não é?, perguntam eles. É retórico - e explicam porquê. Reportagem de Joana Azevedo Viana
Kumar tem 65 anos e vive em Portugal desde 1982. Quando chegou de Moçambique foi viver para “o prédio do Champalimaud”, na praça do Forno do Tijolo, freguesia dos Anjos, em Lisboa. “Vivíamos umas 14 pessoas em três quartos. Aquilo era um prédio para os retornados [das ex-colónias], eu não era retornado, mas havia lá uma família que nos deu guarida durante uns meses até arranjarmos casa.” Anos depois, em 1993, Kumar abriu uma mercearia na mesma freguesia – a funcionar até hoje, está sempre aberta no 1.º de Maio. “Só fechamos no 25 de dezembro e no 1 de janeiro.” Quando lhe perguntamos porquê, responde prontamente: “Porque as pessoas que vivem aqui precisam de nós”.
O prédio onde o moçambicano de ascendência indiana foi acolhido há mais de 40 anos está hoje ao abandono, emparedado. Ao longo de décadas, viu a freguesia transformar-se e passar de um bairro estritamente habitacional, com todo o tipo de famílias e “gente mais complicada” do Intendente e arredores a viver em pensões, para uma mescla de habitação, pensões de poucas estrelas, Airbnbs e hotéis de alta gama - e ainda comércio tradicional paredes meias com lojas de conveniência e com cafés e restaurantes da moda onde um ‘latte’ (vulgo galão) chega a custar 4 euros, frequentados sobretudo por turistas e nómadas digitais.
Enquanto conversamos, a mulher de Kumar aparece com uma criança de três anos pela mão, ainda de pijama vestido, que pediu para ir “passear com a Mita” quando esta lhe apareceu à porta de casa, no prédio do lado, para entregar as compras do dia. “O bairro mudou, temos muitos turistas que só vêm comprar um garrafão de água e duas ou três cebolas, coisa pouca para os poucos dias que cá ficam. Mas continuamos a ter muitos clientes habituais que fazem compras todos os dias, alguns a quem vamos levar as compras a casa. Aqui têm pão bom, não é como aquele que se vende agora nos supermercados… Veja, já nem temos mais pão para vender hoje.” São 10:00 e vão fechar por volta das 14:00, a única diferença em relação aos dias normais, em que fecham a mercearia às 19:00.
Umas ruas abaixo, também a papelaria Fonsecas está de portas abertas. Como Kumar, Lúcia Fonseca, 51 anos, nunca fecha o negócio no Dia do Trabalhador. “É preciso pagar as contas”, sorri - com melancolia. “Trabalhamos todos os dias, incluindo domingos e feriados, as únicas exceções são no 25 de dezembro, 1 de janeiro e no domingo de Páscoa. Na sexta-feira santa também estamos abertos.”
Lúcia assumiu o negócio em 1992, quando ainda funcionava do outro lado da rua. “Depois, em 2017, tivemos de nos mudar para este espaço porque no outro iam construir um hotel. Lembro-me do ano porque sou da zona de Pedrógão Grande e foi quando houve aqueles incêndios.” Durante décadas, esta mesma loja pertencia a uma grande marca de roupa portuguesa e foi lá que Kumar comprou o fato que usou para se casar com Mita durante umas férias em Diu (antiga Índia portuguesa), onde os pais de ambos nasceram.
Lúcia Fonseca larga um suspiro quando explica a exigência de gerir uma papelaria que funciona 362 dias por ano. Quando lhe perguntamos se compensa manter o negócio aberto neste feriado, uma mãe e uma filha adolescente entram em missão de urgência em busca de uma calculadora científica, que encontram, por cerca de 12 euros. A mãe paga com um suspiro de alívio, enquanto dá um sermão à filha sobre “cuidar das nossas coisas”. No 1.º de Maio, a única diferença é que a papelaria Fonsecas fecha às 19:00 e não às 20:00. “Mas até é engraçado trabalhar neste dia”, diz Lúcia, “dá para ver ali a marcha do Dia do Trabalhador”.
Daqui a algumas horas, a avenida Almirante Reis vai encher-se de gente para a costumeira manifestação que acontece neste dia, todos os dias, há 50 anos, desde a queda do Estado Novo no 25 de Abril de 1974. Mas para já o trânsito está cortado por outro motivo, não menos costumeiro: a corrida do 1.º de Maio, que vai na sua 41.ª edição, e cuja segurança é feita por dezenas de agentes da polícia de trânsito, como o agente Simões. “Olhe, estou a trabalhar porque a polícia não tira folgas”, sorri enquanto orienta carros, bicicletas, trotinetas e tuk-tuks para que não entrem em ruas cortadas ao trânsito nem causem distúrbios na corrida – “é um evento privado, ao contrário da marcha logo à tarde, em que é o Estado que paga a segurança pública”. E também vai estar aqui às 15:00 a trabalhar na manifestação? Não vai mas também não vai para casa descansar, tem “outro serviço às 13:00, também privado”.
Enquanto conversamos, um talhante anda para trás e para a frente, rua acima, rua abaixo, de um lado e do outro da Almirante Reis, numa azáfama a entregar encomendas. Para o negócio, este é um dia de muita procura. Dentro do talho, a funcionar na rua dos Anjos há mais de 50 anos, três homens trabalham freneticamente a cortar e a embalar carne, a atender telefonemas, a entregar encomendas a um estafeta que os ajuda na distribuição.
“Fechar no 1.º de Maio?”, pergunta um deles a rir. “Você também não está a trabalhar? Alguém tem de trabalhar”, responde outro com uma gargalhada sonora. Entre o atendimento aos fregueses que vão entrando para comprar carne, enchidos e queijinhos “da terra”, Pedro, que gere a equipa, explica que não podem mesmo fechar no Dia do Trabalhador, como aliás em quase todos os outros feriados do ano. “Já viu como era? Se nós fechássemos, os restaurantes e cafés também tinham de fechar…”
É o caso da pastelaria Capri – segundo o sr. José, a servir clientes atrás do balcão, um “café centenário” da Almirante Reis – que, ao final desta manhã, continua cheio de gente, com as “diárias” prontas a sair. No menu constam os típicos bitoques, pregos e bifanas com a carne do talho do sr. Pedro. “Nós não fechamos no 1.º de Maio. Há despesas para pagar e também já viu bem: se não formos nós a servir as pessoas aqui na Almirante Reis, quem é que o vai fazer?”
Ali perto, entre uma pastelaria de uma grande cadeia que também não fecha no 1.º de Maio e uma loja de souvenirs gerida por imigrantes do Bangladesh, igualmente de portas abertas, um rapaz brasileiro a conduzir um tuk-tuk aguarda por uma abébia do agente Simões para poder levar uma família de turistas até à Graça, quando é interpelado por uma senhora curvada pela idade.
“Sabe porque é que a rua está fechada?”, pergunta-lhe. “Olhe, porque é o 1.º de Maio e vai haver marcha à tarde”, responde ela. “Eu ainda sou do tempo em que vinham brigadas obrigar as pessoas a fechar as lojas todas no Dia do Trabalhador, ainda há bocado disse ali a uns indianos que têm uma loja ao pé da minha casa que deviam fechar, porque senão ainda lhes aparecem uns homens com pedras para os obrigar a fechar.” Em que altura é que isso acontecia? “A seguir ao 25 de Abril”, responde-nos. “Mas também antes, com o Salazar, não havia cá 1.º de Maio, ainda havia às vezes uns grupos que se juntavam na rua mas tinham sempre ali os PIDE à volta para verem o que é que eles estavam a dizer…”
A assistir à conversa está o senhor Carlos, ardina de 73 anos que vende jornais, revistas e tabaco neste troço da Almirante Reis há mais de 40. “Não estive sempre neste quiosque porque dantes não havia quiosques, havia aí atrás de si uma pedra de calçada e era aí que trabalhava, era assim que era, os ardinas sempre trabalharam nas ruas...” Antes de arranjar este “part-time de reformado”, como lhe chama, Carlos trabalhava no quiosque com horário completo; agora abre só das 7:00 às 12:00 e o 1.º de Maio não é exceção.
“Antes disto fui soldado, estava em Chaves quando foi a revolução. Fiz o meu serviço militar entre 1973 e 1975 mas nunca combati no Ultramar. Com o 25 de Abril, reduziram o meu serviço de 36 para 30 meses, acabei a 7 de março de 1975. Trabalho aqui desde então.” E não fecha nunca? “Fecho no 25 de dezembro e no 1 de janeiro mas é porque não há jornais para vender”, responde a sorrir. “Tenho de ter este part-time porque só a reforma não chega”, justifica. E à tarde, planeia juntar-se à marcha? “Não vou, não, que as artroses já não permitem essas andanças e eu também nunca gostei de apertos [risos]. Mas nada contra. Antes do 25 de Abril, o 1.º de Maio era só o dia dos tipógrafos, não havia cá Dia do Trabalhador. Acho bem que festejem!”