Calor, multidão, canções e orações. Foi bonito de ver - e de sentir

6 ago 2023, 20:37

ANÁLISE || Na Jornada Mundial da Juventude todos os números são elevados: de participantes, de trabalhadores, de dinheiro gasto. Durante seis dias, Lisboa quase parou para acolher o Papa Francisco. Dos mais de 300 mil inscritos chegámos a 1,5 milhões de pessoas na missa no Parque Tejo. Estivemos na rua, andámos a pé, ouvimos os discursos do Papa e as queixas dos jovens. Entre as orações emocionadas e o divertimento dos jovens, foi assim que tudo se passou. Trouxeram bandeiras, terços, telemóveis. E depois partiram apressadamente, cansados mas felizes

Músicas e canções: nesta última semana, foi quase impossível andar por Lisboa sem ouvir grupos de jovens a cantar. Nas ruas, nas carruagens do metro a abarrotar, nas sombras dos jardins, nos autocarros, a qualquer hora do dia ou da noite. Canções religiosas, mas não só. A alegria contagiante da juventude espalhou-se pela cidade numa diversidade de línguas, mas, sobretudo em português e em castelhano. Com as acreditações penduradas ao peito, os jovens sentiam-se parte de uma enorme comunidade. "¿De onde és?", repetiam. Cumprimentavam-se, estendiam-se as mãos, fotografaram-se juntos, fizeram amigos. Como se, pelo menos durante a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), fossem todos iguais e não houvesse barreiras. É uma ilusão, mas foi bonito de ver. E de sentir.

"Esta é a juventude do Papa"", foi o grito que mais se ouviu. Que juventude é esta? Cerca de 360 mil jovens de 50 países inscreveram-se na JMJ. 30 mil voluntariaram-se para trabalhar durante o evento, nas semanas ou mesmo nos meses que o antecederam. A eles juntaram-se milhares de outros que quiseram estar aqui e acompanhar de perto os encontros com o Papa Francisco.

Peregrinos passeiam em Lisboa no primeiro dia da JMJ (José Sena Goulão/LUSA)

É fácil dizer que, para muitos deles, esta viagem é como qualquer outra viagem de amigos, uma oportunidade para estar fora de casa (e em liberdade) durante uma ou duas semanas, para conhecer um país de praias e sol, para se divertirem. Tudo isso é verdade. Depois das cerimónias religiosas, os jovens continuaram a festa nas ruas, cantaram e dançaram. Terão bebido, fumado, alguns ter-se-ão apaixonado, para sempre ou só até à hora do autocarro que os levará de volta a casa.

Mas não se pode dizer que tenham tido uma vida fácil. Nestes seis dias, os jovens dormiram ao molho em pavilhões desportivos, tomaram banhos de água fria, ficaram em filas para comer em restaurantes de 'fast food' e andaram a pé. Andaram muito a pé, o que faz parte da essência de ser peregrino, claro, mas é também extremamente cansativo. No sábado, fizeram quilómetros com as mochilas às costas, suportaram horas de um calor horrível, praticamente sem sombras, no Parque Tejo, sobreviveram a casas-de-banho nem sempre nas melhores condições e dormiram no chão e ao relento. Tiveram sorte (há quem diga que não é sorte, é a providência divina): a noite junto ao rio teve temperaturas amenas e não demasiado vento. Acordaram com a melhor vista sobre o Tejo. 

A juventude do Papa está disponível para discutir o aborto e a contracepção, talvez não tenha uma opinião tão definida em relação à eutanásia mas não hesita na condenação aos abusos sexuais. Fala de saúde mental, da guerra, da catástrofe ambiental (embora, como se viu esta semana, nem sempre consiga passar das palavras aos atos), da incerteza em relação ao futuro. Todos estes temas estiveram presentes nos encontros e nas cerimónias com o Papa. Nesta JMJ, os jovens LGBTQI+ tiveram uma palavra a dizer e reclamaram para si as palavras de Francisco, que garantiu que na Igreja há espaço para "todos, todos, todos". A intolerância também esteve presente, infelizmente. Num dos episódios mais graves, um grupo de jovens católicos ultra-conservadores invadiu uma eucarista organizada pela comunidade LGBTQI+ e a polícia teve que intervir. Talvez devessem dar mais atenção às palavras do Papa.

Os participantes da JMJ trouxeram bandeiras dos seus países, paróquias, movimentos. Trouxeram terços e crucifixos. E todos eles trouxeram um telemóvel. Com ele acediam aos menus de alimentação, consultavam a agenda, descobriam os melhores caminhos a percorrer, os transportes a apanhar. Usaram aplicações de tradução simultânea para perceber os discursos e acompanharam as cerimónias nas transmissões em direto. Na mais tecnológica de todas as jornadas mundiais da juventude, o essencial era ter dados móveis e bateria. Mas, também é preciso dizê-lo, durante as cerimónias quase não se viram aparelhos ligados nem gente a fazer gravações.

É que se, para parte destes jovens, a JMJ foi quase como uma ida ao Festival Sudoeste, a grande maioria esteve aqui comprometida. A servir, disseram muitos. A encontrar-se com Deus, disseram outros. Os jovens começavam os dias, longe das câmaras da televisão, com orações e catequeses, com os seus grupos. E durante as cerimónias maiores rezaram, emocionaram-se e ouviram com atenção as palavras de Francisco. Que todos eles levem consigo um pouco da sua mensagem é o que se espera. 

Peregrinos durante a vigília no Parque Tejo (Lusa/ José Sena Goulão)

Francisco, de cadeira rodas, a quebrar o protocolo

Com 86 anos, o Papa Francisco parece nunca perder a energia. Na preparação da viagem, a única condição do Vaticano foi para se ter atenção à mobilidade do Papa, que se desloca numa cadeira de rodas. Tirando isso, a agenda não fez concessões. O Papa teve compromissos de manhã cedo, outros já de tarde, tendo geralmente um tempo para descansar (mas não muito) antes dos grandes eventos ao final do dia, onde aparecia novamente sorridente, acenando às milhares de pessoas que o esperavam.

O cansaço às vezes levou a melhor. Por duas vezes, desistiu de ler o discurso que tinha preparado. Mas o mais comum era mesmo afastar-se das palavras escritas por vontade de se dirigir pessoalmente aos seus interlocutores, improvisos a que todos já se habituaram num Papa que gosta de quebrar o protocolo, de interromper o percurso para falar com quem o esperou durante horas na rua. "Francisco! Francisco!" Percebendo que o Papa estava disponível, apesar de todas as medidas de segurança, os fiéis chamavam por ele, pedindo-lhe um pouco de atenção. Francisco benzeu bebés de colo, trazidos pelos pais em busca de uma graça divina, teve gestos de carinho para crianças que o abordaram, sorriu e escutou.

Quem teve oportunidade de com ele ter um momento mais privado repete esta ideia: o Papa estava aqui para deixar a sua mensagem, mas também para ouvir. Para ouvir as angústias dos dez jovens, de diferentes nacionalidades, que recebeu durante um almoço; e os estudantes universitários que lhes revelaram as suas preocupações com o futuro; para ouvir as pessoas que sofreram abusos sexuais por parte de membros da Igreja Católica em Portugal e que, durante tantos anos, sofreram caladas e traumatizadas; para ouvir os três jovens que lhe confessaram os seus pecados e lhe pediram perdão; para ouvir as lamentações do cónego Crespo, do Centro Social da Serafina, sobre as dificuldades do seu trabalho com os mais desvaforecidos e a falta de verbas para fazer melhor; para ouvir os jovens que encontraram na Scholas Occurrentes um porto seguro e que se questionam sobre o seu lugar na sociedade. 

Papa Francisco a chegar ao Parque Eduardo VII, em Lisboa - Jornada Mundial da Juventude (LUSA/ José Sena Goulão)

E já que falamos de escuta, é bom lembrar também os muitos artistas que atuaram para o Papa, entre os muitos do coro e orquestra, o Ensemble23 constituído por jovens de 22 países, as fadistas Cuca Roseta, Mariza e Carminho, a cantora Mimi Froes, Tiago Bettencourt, Héber Marques, Buba Espinho e os cantadores da Aldeia Nova de São Bento.

Contas por fazer, críticas e queixas (porque também as houve)

A organização da JMJ gerou várias controvérsias. Sendo um evento católico, acabou por ser um acontecimento de escala nacional, afetando de forma direta ou indireta a vida de pessoas que não tinham nem queriam ter nada a ver com isto.

Não surprendeu, por isso, que houvesse quem questionasse afinal o que é isto da laicidade do Estado e se é legítimo o envolvimento de avultados meios públicos numa iniciativa da Igreja Católica.

Além das críticas nas redes sociais e na imprensa, na sexta-feira, um grupo de pessoas manifestou-se no Martim Moniz - contra os gastos públicos, sobretudo num momento em que tantas pessoas em Portugal vivem com dificuldades devido à inflação, ao aumento dos juros, aos preços da habitação; contra uma Igreja que, apesar das palavras bonitas, tem uma história ligada à intolerância em vários países, encobriu, durante décadas, milhares de casos de abuso sexual de menores e continua sem punir exemplarmente os seus responsáveis, continua a discriminar as mulheres e os crentes devido à sua orientação sexual. 

Antes da JMJ começar, o artista Bordalo II "invadiu" o palco do Parque Tejo e instalou uma passadeira feita de enormes notas de 500 euros numa alusão aos gastos público com o evento. No dia da chegada do Papa, três cartazes foram colocados em Lisboa a lembrar as vítimas de abuso sexual.

Ainda precisaremos de algum tempo para fazer as contas dos muitos milhões - cerca de 80, numa estimativa que estará certamente desatualizada - gastos com o evento, pelo Estado central e pelas várias autarquias, sobretudo de Lisboa, Oeiras e Loures. Gastos com obras, infraestruturas, acolhimento, segurança, manutenção. Funcionários tiveram de alterar as suas férias, foram requisitados para fazer horas extraordinárias, foram deslocados para Lisboa. 

A operação de logística levantou dúvidas - seria Portugal capaz de organizar um evento desta dimensão? Concluída a JMJ, a resposta é clara. Mas nem tudo correu bem. Para quem teve que trabalhar em Lisboa, esta semana, a vida foi complicada. Ruas estiveram fechadas e os transportes caóticos. O encerramento de estações de metro e comboio e a aposta na mobilidade rodoviária foi várias vezes questionada. No Parque Tejo, registaram-se filas enormes que, nos horários de pico chegaram a ter mais de cinco horas, para entrar no recinto. Muita gente ficou de fora. A falta de sombras e o acesso à água foram as queixas mais frequentes. No entanto, no final, perguntando a quem veio de longe e a quem veio de perto, a quem veio participar e a quem doou o seu trabalho, se isto valeu a pena, a resposta é quase sempre a mesma: estão cansados, mas felizes.

Saída de peregrinos do Parque Tejo (Lusa)

Apesar de todas as dificuldades, 1,5 milhões de pessoas terá participado na missa deste domingo. Não se consegue ficar indiferente às imagens aéreas que mostravam a imensidão de pessoas junto ao rio. O recinto tinha 100 hectares. A maioria das pessoas não conseguia sequer vislumbrar o altar-palco, que tanta polémica causou, teve que seguir a cerimónia pelos muitos ecrãs gigantes. A pergunta que faz que não crê, perante eventos como este, é: porque vieram? O que fez estas pessoas todas - algumas já não tão jovens assim - levantarem-se às 6:00 da manhã, ou antes, e ficarem horas ao sol? O que as faz correr para verem o Papa o mais perto possível? Porque não ficaram a ver tudo através da televisão, no conforto das suas casas e dos ares-condicionados? Porque, enfim, tantos se emocionam até às lágrimas? Mistérios da fé.

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