Uso de dinheiros públicos, abusos sexuais, exploração de reclusos: as críticas à Igreja vão fazer-se ouvir numa manifestação em plena Jornada da Juventude

28 jul 2023, 10:22
Instalação de Bordalo II na JMJ (Facebook)

Um "uso vergonhoso do erário", com milhões gastos na JMJ em vez de utilizados para melhorar as condições de vida de quem vive na cidade, está entre as principais críticas ao evento. No dia 4 de agosto há uma manifestação "Sem Papas na Língua" no Martim Moniz

Os elevados gastos públicos, seja por parte do Estado central, seja pelas autarquias, sobretudo tratando-se de um acontecimento religioso, têm sido o principal alvo das críticas dirigidas à Jornada Mundial da Juventude (JMJ). Mas não só. Os abusos sexuais perpetrados por membros da Igreja Católica ao longo de séculos, as posições conservadoras no que toca à sexualidade e até o facto de terem sido contratados reclusos para a construção dos confessionários que vão estar em Belém também fazem parte do rol de críticas, difundidas através das redes sociais. Para sexta-feira, dia 4 de agosto, às 19:00, na praça do Martim Moniz, está marcada uma manifestação "Sem Papas na Língua", que se apresenta contra a realização da JMJ e contra a Igreja Católica.

Contactada pela CNN Portugal, a organização explica que se trata de "um grupo de pessoas e coletivos autónomos, onde as decisões são tomadas em coletivo", remetendo mais esclarecimentos para as várias publicações nas redes sociais.

"Apesar do esforço de todos os espaços - políticos e mediáticos - para criar um discurso único sobre a receção da Jornada Mundial da Juventude - como se fosse meramente uma celebração religiosa. Não esquecemos que o objetivo deste evento é político, e que é através da ocupação do espaço público que a igreja continua a reafirmar o seu domínio", dizem os organizadores no seu manifesto.

Igreja é contra a liberdade sexual, mas protege os abusos a menores

O manifesto continua: "A igreja católica continua vinculada à construção de poder e, através da intrusão de valores e normas, continua a exercer um controlo social e cultural na nossa sociedade. Os dogmas da religião interferem na construção do poder popular e no poder de decisão das comunidades marginalizadas - ao quererem privar-nos da liberdade e autonomia dos nossos corpos. Com a imposição das suas hierarquias exigem-nos submissão. Mas nós não esquecemos - nós somos a insubmissão."

 "Revoltamo-nos contra a tradição histórica de abusos sexuais a menores por parte de elementos da igreja. Nas últimas sete décadas, mais de 4.800 crianças foram abusadas sexualmente no seio da igreja católica em Portugal. Essas práticas, que a doutrina cristã aparentemente condena e que seriam punidas dentro e fora da igreja, e que são comprovadamente factuais, envolvem todo um secretismo quase impossível de penetrar. Estas crianças e pessoas vítimas foram e são continuamente silenciadas pela cultura secretista presente na igreja e por superiores hierárquicos", acusam.

O tema ressurgiu na opinião pública, a propósito da JMJ. No Twitter decorreu nos últimos dias uma recolha de fundos com o objetivo de produzir um outdoor que lembrasse os abusos sexuais dentro da igreja católica. Tendo sido conseguidos os 950 euros necessários para produzir uma primeira tela, que, segundo os organizadores, deverá ser colocada na Segunda Circular, existe agora uma angariação de fundos para um segundo outdoor.

Também numa publicação no Instagram, as artistas Fado Bicha acusaram a igreja de promover "a cisheteronormatividade branca, o evangelismo colonialista, a subserviência, a pobreza e a morte. A morte de pessoas empurradas para abortos em condições insalubres; a morte de pessoas com sida sem acesso a preservativos; a morte de pessoas e epistemologias dissidentes de género e orientação sexual; a morte de vítimas de violência sexual, de género e doméstica". Lembraram ainda os abusos sexuais de menores: "Foi há poucos meses mas parece já completamente sanado e pacífico. Acusações feitas, pedidos de desculpa desonestos, uma mão lava a outra. Preferiríamos todos viver num mundo em que não acontece violência sexual, não era? Pois esse mundo não existe. As vítimas da violência sexual católica (assim mesmo, como adjetivo) não esqueceram, não desculparam nem estão sanadas, bem pelo contrário."

Os milhões gastos pelo Estado - que é laico

Um dos grandes motivos dos protestos passa pelo dinheiro - público - que o Estado, através de organizações centrais ou das autarquias, está a gastar com o evento. Argumenta-se que é muito dinheiro (embora ainda não se saiba exatamente quanto, será um valor seguramente acima dos 90 milhões); gasto com um evento religioso e organizado por uma entidade privada; dinheiro esse que faz falta em áreas como a saúde, a educação, a habitação, os transportes e o urbanismo e que poderia estar a ser utilizado em benefício dos cidadãos; sem se saber muito bem que tipo de retorno económico haverá.

Isso mesmo ficou claro na intervenção artística de Bordalo II, que colocou uma passadeira feita de gigantes notas de 500 euros no altar-palco do Parque Tejo. Chama-lhe “Walk of Shame” ou, em português, “Passeio da Vergonha” e explica, na legenda da publicação nas redes sociais: "Num estado laico, num momento em que muitas pessoas lutam para manter as suas casas, o seu trabalho e a sua dignidade, decide investir-se milhões do dinheiro público para patrocinar a tour da multinacional italiana". 

No manifesto "Sem Papas na Língua", os organizadores da manifestação de 4 de agosto acusam: "Não esquecemos a ocupação do espaço público por parte da igreja, com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa com pelo menos 40,2 milhões de euros. Enquanto isto acontece, as pessoas continuam sem habitação digna e os pobres continuam pobres, a dormir nas ruas - mais ou menos escondidos do público. Num espaço de dias, as portas do metro irão abrir-se durante a noite nas JMJ, para servirem de abrigo aos peregrinos, mas não para quem diariamente pede apoio social e habitação digna ao Estado - ou à igreja", lê-se no manifesto. A igreja "diz-se amiga dos pobres, mas age historicamente como aliada dos ricos".

Uma outra página, intitulada Boycott JMJ 2023, provavelmente tendo por trás os mesmos responsáveis, publica mensagens em português e em inglês com o objetivo de "denunciar a hipocrisia" da JMJ. Numa das publicações, apelam às pessoas que se queiram juntar ao protesto que escrevam ao presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, mostrando como se sentem desconfortáveis por ver os seus impostos "a serem usados para financiar transportes e alojamento para turistas quando o mesmo não é feito de forma consistente e cuidada durante o resto do ano para todos os outros aqui vivem e moram em Lisboa. Como podemos financiar um palco que custa quase o mesmo que os apoios para pessoas sem-abrigos para todo o 2023? Ou esbanjar dinheiro em transportes para os peregrinos quando os moradores demoram horas a chegar aos seus empregos, em carreiras mal coordenadas e pouco frequentes?"

"É ainda mais chocante a forma como a cidade foi e será condicionada para que este evento aconteça. As cidades são das pessoas que lá vivem, não uma marca para estrangeiros consumirem – ruas e estações fechadas, impossibilidade de alugar bicicletas em certas zonas, e o ativo esforço do estado para que as pessoas não venham a Lisboa durante estes dias. Para quem governam vocês?", perguntam os autores do manifesto "Sem Papas Na Língua", exigindo ainda saber "quanto dinheiro ao certo está a ser gasto pela CML nas JMJ, quanto dinheiro será efetivamente lucrado e o que tencionam fazer para ressarcir os cidadãos pelos incómodos criados por este evento".

As críticas aos gastos de dinheiro público com a JMJ e à sua legitimidade não são recentes. Entre outras pessoas e entidades que se manifestaram publicamente, encontra-se ainda a Associação República e Laicidade, que já enviou cartas aos presidentes das câmaras de Cascais e Oeiras e tem feito várias publicações destinadas ao presidente da autarquia lisboeta. Carlos Moedas "tem todo o direito de ter uma religião, mas o município a que preside não tem religião nenhuma", diz esta associação. "Não compete a um Estado laico construir um 'altar' (...)  e aquela cruz significa que o palco não é para servir os lisboetas, mas sim a religião cristã. É um uso vergonhoso do erário."

O assunto tem sido também abordado pelo apresentador e influencer Diogo Faro, que já em abril questionava o dinheiro gasto com o evento e que, recentemente, tem feito outras publicações bastante críticas: "Deus perdoa e o contribuinte paga. Se não estamos indignados, frustrados e revoltados com tudo isto, é porque andamos a dormir", diz.

A exploração dos reclusos

Numa declaração recente, o presidente da Fundação JMJ, Américo Aguiar, considerou "particularmente simbólico que os confessionários que vão ser usados numa cerimónia de reconciliação, que significa libertação, tenham sido produzidos por homens que estão temporariamente da sua liberdade" e que, através deste trabalho, talvez se tenham aproximado um pouco mais da sociedade. 

Mas a associação Vozes de Dentro, de familiares de reclusos, que se associou à manifestação do Martim Moniz, denuncia um regime de "trabalho escravo", uma vez que os reclusos dos estabelecimentos prisionais de Coimbra, Porto e Paços de Ferreira que fabricaram os confessionários receberam apenas dois ou três euros por dia de trabalho. 

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