"Os padres são educados como seres assexuais e se calhar temos de repensar isso." Sónia Simões escreveu "Em Nome do Pai" para não deixar esquecer os abusos sexuais na Igreja

16 jun 2023, 22:00

A jornalista publicou em 2019 uma grande investigação sobre os abusos sexuais na igreja e, na altura, houve pessoas a exigir que fosse despedida. "Isto não é um ataque à igreja", reafirma. O livro "Em Nome do Pai" acaba de chegar às livrarias

Mariana tinha 12 anos quando recebeu a primeira mensagem do padre, que ela conhecia bem, porque frequentava as atividades da igreja e porque o padre era considerado um amigo da família. Também ela o considerava um amigo, alguém com quem podia falar e que se foi tornando cada vez mais próximo. O primeiro contacto físico aconteceu quando Mariana tinha 14 anos. Uns beijos. O padre era 20 anos mais velho. Ela apaixonou-se. A relação, mantida em segredo, prolongou-se até engravidar. O caso acabou por chegar à Polícia Judiciária mas, como já tinha 24 anos, não havia nada a fazer. Porém, saber que tinha sido vítima de vários crimes sexuais revelou-se um fardo demasiado pesado. Mariana acabou por ser internada para receber tratamento psiquiátrico. "Hoje, sente-se mais forte, mas não curada."

O seu caso foi revelado pela reportagem "Em Silêncio", publicada no Observador. Depois, Mariana contou a sua história à Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa. "Passaram 20 anos, mas o tempo para uma vítima de abuso sexual é inútil. Não apaga e dificilmente cura. Há momentos em que parece que a memória tomou conta do trauma, que o arrumou, mas, quando menos se espera, ele reaparece como uma visita inesperada", escreve Sónia Simões no livro "Em Nome do Pai - Abusos Sexuais na Igreja Católica", que acaba de chegar às livrarias.

Licenciada em Jornalismo e pós-graduada em Criminologia, Sónia Smões, então jornalista do Observador, começou a trabalhar neste tema no final de 2018, em parceria com o colega João Francisco Gomes Dias. Ele era especialista em assuntos religiosos, ela em jornalismo de justiça. Naquela altura, era um assunto ainda pouco abordado em Portugal. Ninguém queria falar. "Tentei falar com uma vítima que só me respondeu em 2023 - isso mostra a abertura que se foi cultivando nestes quatro anos", conta a autora. "As vítimas de abusos sexuais são pessoas muito fragilizadas, também porque ninguém acreditou nelas. Foi preciso explicar a importância de falar, de trazer à luz o que aconteceu, porque se está escondido ninguém faz nada. As paredes da igreja foram de facto muito difíceis de transpor. Tivemos mesmo que cavar, pela via judicial, procurando as denúncias que já tinham sido feitas e os poucos processos judiciais que havia."

"O dia zero: finalmente as pessoas entenderam o que se passa"

"Abrimos um canal de denúncias, mas muitas delas não pudemos tratar jornalisticamente, porque não havia processo em tribunal ou não era possível identificar o agressor." Mesmo assim, as mensagens que iam chegando reforçavam a ideia de que este era um problema sobre o qual era urgente falar. Não havia como ignorar. "Houve pessoas que nos ligaram a dizer: eu só quero contar isto a alguém, mesmo que não possa escrever", recorda Sónia Simões. "Perguntava-me: O que é que eu faço com isto? Continuo com aquele 'excel' guardado."  

Entrevistar as vítimas foi difícil. "Somos jornalistas, estamos habituados a ouvir muitas histórias complicadas. Mas era difícil não nos envolvermos. São pessoas que estão num sofrimento profundo, algumas continuam com medo. Foi preciso ganhar a sua confiança. Foi um processo longo. Para mim, foi um trabalho muito difícil de fazer. Continuo a falar com algumas vítimas nestes quatro anos. Não podemos desligar de um momento para o outro."

Em 2019, o Papa Francisco reuniu os bispos do mundo inteiro para decidir como combater o problema dos abusos sexuais cometidos por membros do clero. No entanto, só dois anos depois é que a igreja portuguesa decidiu apurar a dimensão dos crimes no nosso país. A investigação foi entregue a uma Comissão Independente, tal como já tinha acontecido noutros países.

Alguns dos casos que os jornalistas foram conhecendo durante a sua investigação acabariam também por chegar à comissão independente. Apesar de tudo, quando ouviu os testemunhos lidos pelos membros da comissão, a jornalista sentiu-se chocada como se fosse a primeira vez. Pensou no quanto deve ter sido difícil para aquelas pessoas reviverem as suas histórias traumáticas. "Custou-me muito ouvir, tal como sei que custou a muitas outras pessoas. Mas se não tivesse sido feito assim, a sociedade continuaria a achar que não tinha acontecido nada. Para nós, foi como o dia zero: finalmente as pessoas entenderam o que se passa."

A autora Sónia Simões autografando o livro "Em Nome do Pai" na Feira do Livro (DR)

"Fiquei surpreendida com a dimensão do problema", reconhece. E também ficou surpreendida ao perceber como este problema - tão antigo - foi silenciado pela Igreja. "A própria igreja também foi mudando o seu comportamento. Primeiro, dizia-se que não havia necessidade de uma comissão porque não tinha acontecido nada. Depois, lá reconheceram que havia alguns casos, houve um pedido de perdão. Mas o facto de, ao início, os padres não terem sido suspensos foi outra machadada para as vítimas. Como se mais uma vez, e depois de tudo, não acreditassem nas suas palavras", explica a autora.

"Chamemos as coisas pelo nome: crime"

"Este assunto divide muito a própria igreja. Uma parte, mais progressista, percebe que isto implica uma reestruturação profunda, incluindo na formação dos padres. Outra parte acha que não há nada a mudar, isto seria abalar toda a instituição da igreja. Esta divisão reflete-se na opinião pública e entre os fieis. É um tema muito sensível. Na altura em que publicámos os nossos trabalhos, houve pessoas a dizer que devíamos ser despedidos, que iam deixar de assinar o Observador." Como se, por não se falar neles, os crimes não tivessem acontecido. "Isto não é nenhum ataque à Igreja", reafirma.

Na sua opinião, "este é um problema que mexe com a estrutura da igreja, com todo o seu funcionamento, com a formação dos padres, com tudo. É muito mais profundo e não se resolve só ao afastar das crianças os padres suspeitos de abusos." Sónia Simões considera que as medidas tomadas pela Igreja portuguesa são claramente insuficientes. "Seria necessário ir mais fundo, pensar numa reestruturação da própria Igreja. Por exemplo, os padres são educados como seres assexuais, sem afeto nem amor, e se calhar temos de repensar isso." No livro agora publicado, procurou complementar um pouco o trabalho da comissão, muito centrada nas vítimas, e fazer um perfil do padre abusador. "Tentei aflorar esse lado, com a contribuição de processos que tinha consultado e relatórios internacionais. Desde o momento da entrada do seminário, as  limitações que sofrem, tudo isto devia ser estudado porque essas conclusões podem abrir alguns caminhos."

“Deixemos de falar de ‘abusos’. Chamemos as coisas pelo nome: ‘agressão sexual, crime’. A nossa linguagem está cheia de palavras mais adequadas para nomear este flagelo”, escreve no prefácio o padre José Manuel Pereira de Almeida, vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa. "Para mim isto sempre foi um trabalho na área da justiça", diz também Sónia Simões. "Os abusos sexuais são crimes. Entrei neste trabalho com a ideia que estava a tratar um caso de justiça no seio de uma instituição que tem uma importância enorme não só nosso país mas também no mundo e que tem características especiais por ser uma instituição religiosa."

É pelas vítimas - do passado, do presente e do futuro - que Sónia Simões diz que "este assunto não pode morrer", mesmo que entretanto tenha deixado o jornalismo e trabalhe atualmente como consultora, dedicando-se à comunicação de crise. Foi também por isso que decidiu escrever o livro, no qual reúne parte da investigação feita no Observador, faz um enquadramento histórico dos casos de abuso sexual dentro da Igreja Católica em todo o mundo e do modo como a instituição tratou o tema, juntando-lhe as conclusões da comissão independente e as reações que estas provocaram em Portugal.

"Achei que era importante reunir toda a investigação e oferecer um instrumento às vítimas e a todos os que queiram estudar esta questão", explica. Porque este é um problema demasiado importante para que possa ser esquecido. "Ainda há muita coisa por fazer", diz.

É sobre isso que se vai falar no lançamento do livro, na próxima terça-feira, 20 de junho, às 18:30, na livraria Leya na Buchholz, em Lisboa. Mais do que um lançamento, Sónia Simões quer que se faça um debate. A moderação será do jornalista João Francisco Gomes e contará, entre outros, com a presença do diretor nacional adjunto da Polícia Judiciária, Carlos Farinha, e de António Grosso, fundador da Associação de Apoio às vítimas de Abuso Sexual na igreja.

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