Há casos de quem tenha sido abusado várias vezes por mais do que uma pessoa e em diferentes locais. São relatos que mostram um problema sistémico na Igreja Católica portuguesa - padres que foram abusados quando eram menores tornaram-se abusadores na vida adulta ESTE ARTIGO CONTÉM CONTEÚDO EXPLÍCITO QUE PODE CHOCAR OS LEITORES
"Acordava com o pénis dele entre as minhas pernas e todo sujo": trata-se do excerto de um relato de um homem nascido na década de 1950 que foi abusado por várias vezes e por vários sacerdotes da Igreja Católica portuguesa. É um dos testemunhos de abusos ocorridos em seminários ou espaços de retiro e que agora são divulgados pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica.
Hoje um adulto, na altura uma criança, esta vítima foi abusada por pelo menos dois homens diferentes quando frequentava instituições da Igreja Católica. Vindo de uma família pobre, como conta no email enviado à comissão, conta que um padre "engraçou" com ele mal chegou ao seminário.
"Ia à minha cama com a lanterna e apalpava-me, perguntava-me se eu já pecara", escreveu no email enviado, em que conta que ia buscar "rebuçados" ao padre "de cada vez que tivesse maus pensamentos". Nessas alturas era vítima de abusos: "Apalpava-me todo e metia a língua toda".
Numa Páscoa acabou por ser expulso por maus "pensamentos" e "companhias". Pensou estar livre de um cenário de abusos mas não: seguiu para Leiria para um refúgio de infância onde estavam outros 20 rapazes órfãos e era lá que estava o "Frei W", "bem pior" que o primeiro padre porque era "sádico, porco, muito mau".
"Um dia fui com ele a casa de um bem feitor e durante a noite disse para dormir com ele. Ia rodando entre os rapazes. Deitava-se e adormecia. Acordava com o pénis dele entre as minhas pernas e todo sujo", conta.
Desamparado e com uma vida de pobreza em que muitas vezes não tinha o que comer, nem em casa sentia a segurança para contar a sua experiência: "Só contei isto à mãe das minhas filhas e depois a um amigo ou outro, aos meus pais contei num almoço, já com 21 anos. Tive dúvidas se iriam acreditar".
Este homem abandonou a sacristia na década de 1960 quando tinha entre os 15 e 16 anos, mas não se livrou de uma adolescência "complicada e revoltada". Ainda hoje se lembra de como sofreu bullying e a vergonha que de si tomava conta de cada vez que se lembrava. Hoje sabe que essa vivência estará sempre presente mas consegue falar. "Sinto alívio quando falo".
"Toque nos genitais e sexo oral"
Outro caso: um homem nascido na década de 60 foi pela primeira vez alvo de abusos numa camarata com 20 camas alinhadas e teve relações íntimas com um padre até ao primeiro ou segundo ano da universidade.
Aquele padre era a "estrela da companhia", a vítima gostava dele, era afetuoso, cuidadoso e até tocava guitarra. Numa noite de ronda pela tal camarata, em que os menores como ele tinham menos privacidade que os grandes, esse mesmo padre começou a beijá-lo - este homem nascido na década de 60 diz que sentiu "estranheza". Dali saiu para se confessar, achava que tinha pecado.
Daí em diante passou a ir várias vezes ao quarto do padre, onde ambos trocavam beijos e carícias. Nunca foi violado, mas sabia que aquela era uma situação ambígua, sobretudo quando havia "toque nos genitais e sexo oral".
Mas um outro episódio, o qual foi confessado pelo próprio padre, tinha ficado para trás. O menor, então no quinto ano, acordou na cama do sacerdote sem saber como. Foi o alegado abusador que lhe revelou isto numa carta escrita mais tarde e na qual pediu desculpa pelo episódio.
Os dois voltariam a encontrar-se sexualmente muitas outras vezes, até porque a vítima diz que acabou por se "descobrir" como homossexual. Contou os vários episódios a três sacerdotes, ficando com a sensação de que tinham acreditado nele, mas não houve quaisquer consequências.
Vítima de um padre e de freiras
Mais um caso: nascida na década de 1970 no seio de uma família pobre, esta mulher foi abusada por várias vezes e de diferentes formas. Com uma infância "muito triste", contou à comissão, através de inquérito e depois por zoom, que a primeira vez em que foi abusada tinha apenas cinco anos. Aconteceu num orfanato e o abusador era um padre com 40/50 anos, "gordinho".
Da sua história lembra-se de masturbação, beijos ou mesmo sexo anal, além de visionamento de pornografia. Tudo no quarto do padre ou na sacristia, "ao longo de anos" e com a "conivência das freiras", às quais fez queixa, ficando três dias sem comer como castigo.
Decidiu contar à mãe mas a mãe disse que a filha é que era culpada de aquilo ter acontecido. De resto, também em casa havia maus-tratos e abusos sexuais, nomeadamente por parte do companheiro da progenitora, que abusou desta vítima aos 13 anos.
"Um dia peguei numa faca e estive quase a cometer um crime. Senti-me ferida, dorida e aos 15 anos a minha mãe disse para eu ir embora", relembra, explicando como era utilizada para realizar as tarefas domésticas porque era uma menina.
Muitas destas vítimas tinham famílias disfuncionais, eram maltratadas em casa e viviam em condição de pobreza. Na Igreja procuravam o refúgio de uma vida digna, mas encontraram um problema sistémico, reconhecido pela comissão, que as impediu de serem felizes durante a infância.
Relatos que não se cingem apenas à relação entre padres ou outros sacerdotes e crianças. Outros há que dão conta de que crianças mais velhas tinham os mesmos hábitos para com crianças mais novas, abusando delas de várias formas, muitas vezes sexualmente. Numa outra situação é ainda dada conta de que poderia haver uma normalização: um dos padres abusadores contou à vítima que era mesmo assim, que também tinha sido abusado ao frequentar o seminário no seu tempo.