Abusos sexuais: provas expurgadas, esquemas para proteger abusadores e ocultação sistemática. A estratégia da Igreja para evitar escândalos

14 fev 2023, 07:00
Igreja, padres, religião, crucifixo, cruz. Foto: AP Photo/Gerald Herbert

A ida aos arquivos secretos permitiu perceber como a Igreja lidou e escondeu os casos de abusos de menores nas últimos 70 anos. E os testemunhos das vítimas mostram como muita gente sabia e nunca se fez nada

“Fugiste agora, mas não escapas de outra vez. Tenho de apalpar-te os marmelos". O aviso foi dado por um padre a uma menor dentro da igreja, que ali estava a ajudar a irmã do pároco. E consta de um documento que se encontrava fechado à chave e guardado no arquivo secreto de uma diocese portuguesa. Nele se relata a história do padre E – que foi alvo de queixas sem fim, abusou sexualmente de crianças e jovens, foi transferido sucessivamente de paróquia pelo bispo e mesmo depois de uma inquirição diocesana que o deu como culpado foi apenas enviado cinco semanas para um retiro espiritual. Quando regressou, o bispo nomeou-o pároco numa freguesia da mesma diocese e poucos meses depois até lhe concedeu uma autorização para ter o diploma de professor particular dos ensinos liceal e técnico e, no ano seguinte, autorizou-o a lecionar num externato. Mais tarde viria a ter autorização do Ministério da Educação para ser diretor e professor. Pelo meio, há relatos de abusos seus a menores. Já morreu e nunca aconteceu nada.  

Foi na ida aos arquivos confidenciais que os investigadores - que integram a equipa que elaborou o relatório sobre abusos na Igreja apresentado esta segunda-feira – se depararam com histórias como esta que demostram, dizem, a proteção que ao longo das décadas foi dada aos padres abusadores, o “modo operandi” da hierarquia para evitar escândalos e a estratégia de ocultação. 

“O caso do Padre E. mostra exemplarmente como a opção das hierarquias diocesanas pelo apaziguamento da revolta da população através da transferência do padre a par de esforços de contenção e abafamento dos escândalos se traduziram, na prática, na proteção efetiva ao padre, que pôde não só reincidir nos abusos sexuais nas paróquias para onde era transferido, como também obter posições de poder no contacto privilegiado com crianças e adolescentes”, dizem no relatório os elementos da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, que fazem questão de dar mais uma nota sobre este caso: “A autorização do Ministério da Educação dificilmente teria sido concedida se os bispos tivessem dado a conhecer às autoridades civis a inquirição diocesana, as queixas no externato e o caso da adolescente” Por isso, concluem que “a proteção, o silêncio e o encobrimento das hierarquias possibilitaram a reincidência dos abusos sexuais e a desproteção e humilhação das vítimas”.

“Negligência, manipulação ou expurgo do arquivo”

Foi também nos arquivos secretos a investigar um caso de abusos sexuais, do Padre B e das crianças que frequentavam a catequese numa paróquia portuguesa, que a comissão encontra um outro sinal preocupante de ocultação: “O caso sinaliza a possibilidade de negligência, manipulação ou expurgo do arquivo”, referem, garantindo que não “existe rasto no arquivo diocesano da primeira carta do paroquiano ao bispo (na qual descreve o abuso sexual da filha), nem da correspondência e dos eventuais despachos referentes ao afastamento inicial do padre nem das diligências com vista à audiência do bispo às famílias descontentes”.  

Segundo se conclui “essa documentação pode nunca ter sido arquivada, devido aos esforços do bispo de então para tratar o assunto de maneira sigilosa, ou pode ter sido expurgada posteriormente”, avisam. No entanto, os investigadores que integram a comissão esclarecem que se foram destruídas as provas, tal não foi feito pelo atual bispo.

Aliás, logo na página 38 deste relatório, os elementos da comissão dão o que chamam “uma advertência”: “Os dados apurados nos arquivos eclesiásticos relativamente à incidência dos abusos sexuais devem ser entendidos como a ‘ponta do iceberg’”. E explicam a razão. “Muitas das queixas terão sido tratadas informalmente, não deixando qualquer rasto documental; com algum grau de probabilidade, a eventual prática de expurgos dos arquivos sem respeitar as normas impostas pela legislação canónica terá sido praticada (convicção partilhada com muitos clérigos contactados)”. 

A par disso, na documentação encontrada estão registadas “transferências internas ou mesmo de país sem explicitar a razão, ou simplesmente referindo de maneira vaga a necessidade de evitar escândalo público”, adiantam os membros da comissão, dando conta da estratégia que a igreja usou para lidar com o tema ao longo dos últimos 70 anos, em que se estima mais de 4.800 vítimas de abuso, em seminários, colégios, sacristias, confessionário, entre outros. 
Uma das formas de atuação da igreja foi tratar dos assuntos oralmente, sem deixar grande rasto escrito. Havia, detetou a comissão, uma “frequente gestão oral das denúncias”.

A história que envolve um clérico formador de um seminário e suspeitas da existência de “casos de pedofilia” que “foram abafados e esquecidos” e que foi também, agora, encontrada nos arquivos da Igreja é reveladora. 

Já depois do Papa Francisco ser eleito e, por isso, seguindo as suas diretrizes mais rígidas, o bispo pediu explicações por escrito ao responsável do seminário na época a que diz respeito a denúncia.  Seis semanas depois chegou a resposta. “Disse que se tratava de um agressor, que identificou como sendo o padre O, e” e contou “ que as vítimas eram vários adolescentes”, mas admitiu que “não sabia precisar idades (13-15 anos?)”.  Sobre as medidas que foram tomadas após a denúncia da família, esse responsável respondeu: “Aconselhei-me com o meu diretor espiritual, fui falar com o pároco e fui dizer ao padre em causa que teria de deixar a responsabilidade direta dos alunos e assim foi feito”.  Quanto “a eficácia das medidas”, afirmou: “As diligências foram feitas para resolver o problema de vez. Mas, a esta distância, não posso assegurar que tenha acabado tudo de imediato”. Quanto às vítimas admitiu que não fazia ideia se tinha “sofrido especiais traumas psicológicos ao longo das suas vidas”. Uma resposta, que mostra outra das formas habituais de como a igreja tem tratado o assunto: “Domina um entendimento da Igreja Católica como entidade lesada pela divulgação dos casos, o que conduz à hostilização de quem não aceita o silêncio. O sofrimento da vítima não está no centro das medidas adotadas”, refere a equipa liderada por Pedro Strech, salientando porém, que “nas investigações dos últimos anos 38 parece haver uma inversão”.

Ocultação sistemática

Ao longo das 480 páginas, surge muitas vezes a palavra ocultação. É esta uma das certezas que saem deste relatório que ouviu centenas de testemunhas e validou 512 testemunhos de abusos sexuais de menores na igreja.  Lembrando que “o carácter sistémico dos abusos não pode, porém, generalizar-se a toda a Igreja, pois diz respeito a uma minoria percentual da totalidade dos seus membros”, os membros da comissão dizem não ter dúvida de que “sistémica foi a ocultação desde logo ditada pelos próprios, bem como dos superiormente colocados na hierarquia que deles tiveram conhecimento”. 

Aliás ao longo dos meses que estiveram a ouvir testemunhos de elementos da igreja, uma das situações que os membros das comissão dizem ter sentido  como “impactante” foi a “inépcia ou negação por parte de membros da hierarquia da Igreja”. Por um lado, os elementos da comissão admitem que lhes parece “evidente que a Igreja, durante as décadas não só conviveu com a prática, no seu interior, de inúmeros crimes de abuso sexual sobre crianças, como primou pela sua ocultação”. E o silêncio instalou-se.

Os números do silêncio 

Os números dão conta desse mesmo silêncio. Depois de denunciados, em 68,5% dos casos não foi tomada nenhuma medida para afastar o abusador e em 10,2% as vítimas falaram com um padre sobre o sucedido. 

Além disso, muitos dos casos repetiam-se, sinal da impunidade. “No que diz respeito à frequência dos abusos, em cerca de um terço dos casos os mesmos ocorreram uma vez, sendo que em 28,9% dos casos tiveram lugar «de vez em quando» e em 31,8% dos casos prolongaram-se no tempo e tinham alguma regularidade”, indica o relatório, detalhando que “5,1% de pessoas relatam abusos repetidos ao longo de semanas, 11,9% durante meses, 7,8% prolongaram- -se por cerca de um ano, em 27,5% o abuso estendeu-se por um período superior a um ano, “Uma percentagem muito significativa”, confessam os autores do trabalho.

Também os testemunhos das vítimas dão conta da ocultação. Um homem relatou aos elementos da comissão que depois de ser abusado contou “a três sacerdotes, fora da confissão”. Mostraram-se todos “surpreendidos e muito compreensivos”, mas “na prática nada foi alterado”. Numa história que envolvia abusos nos escuteiros o relato é semelhante: “A Igreja Católica é cúmplice. Muitos anos mais tarde, já nesta década, vim a saber que houve um chefe regional do escutismo que recebeu suspeitas da mesma pessoa e que abordou os padres responsáveis pelo movimento e que lhe disseram para abafar, porque só ia dar mau nome ao escutismo e à igreja. Também sei que esse chefe regional o expulsou do escutismo, mas que não teve nenhum apoio dos padres responsáveis. Até foi criticado por isso. Se não fosse este chefe regional, não sei se não haveria mais escuteiros a ser levados para o barco daquele senhor e a ser fotografados nus como eu fui”.  

Também um relato que chegou de uma mulher que recorda o que sucedeu impunemente no confessionário de um padre quando era menor. “O padre fazia-me me perguntas porcas no confessionário. Obrigava as miúdas a falar de coisas porcas”, contou, explicando que o mesmo acontecia a muitas “moças dos escuteiros e da catequese”. Contaram à chefe, que lhes disse que não se confessassem mais e que iriam falar com o bispo. “Não aconteceu nada. Nada foi feito. Os escuteiros foram expulsos e o padre ainda lá está e eu sei que faz o mesmo”, avisa.

Apesar da quantidade de testemunhos, são poucos os bispos que assumiram saber de casos de abusos sexual. Nas entrevistas que tiveram com os altos membros da hierarquia da igreja, os elementos da comissão garantem que “a maioria dos bispos” disse “que nunca lidou com casos deste tipo”. 
“Apenas oito bispos referenciaram, no total, treze casos do seu próprio conhecimento e, curiosamente, apenas a partir do momento em que se tornaram bispos (nunca como párocos ou simples sacerdotes) e bispos da atual diocese — portanto, com processos pendentes que vêm do seu antecessor”, refere o documento.

A muitas das vítimas os abusadores faziam ameaças, chantagem emocional e tentavam convencê-las da necessidade de não contar nada a ninguém. “É um segredo nosso”, diziam. Desde esta segunda-feira deixou de ser.

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