Do perdão à esperança no futuro. Como irá o Papa Francisco referir os abusos sexuais na Igreja durante a JMJ?

2 ago 2023, 07:00
Igreja, mãos, terço, crucifixo, religião, fé. Foto: AP Photo/Jessie Wardarski

Será a primeira visita do Papa a Portugal depois de conhecido o relatório da comissão que investigou os abusos sexuais na Igreja Católica portuguesa. Está a ser preparado um encontro de Francisco com as vítimas, mas espera-se que haja também uma declaração pública sobre o tema. E há, entre os católicos, uma esperança no futuro - que os jovens reunidos em Lisboa representam

Esta vai ser uma semana importante para os sobreviventes dos abusos sexuais no seio da Igreja Católica em Portugal. "A grande expectativa tem a ver com o encontro com o Papa Francisco, queremos ver qual será a atitude dele nesse encontro, o que tem para nos dizer. E também se vai haver algum outro gesto público de reconhecimento" dos abusos, diz à CNN Portugal Filipa Almeida, porta-voz da Associação Coração Silenciado - Vítimas e Sobreviventes de Abuso na Igreja Católica Portuguesa.

"Mas aquilo que queríamos mesmo era que a Igreja aproveitasse a oportunidade para sensibilizar as pessoas para esta problemática, que é transversal a todos os continentes, não é só em Portugal", diz Filipa Almeida. "A maioria dos abusos sexuais na igreja acontece com menores e aqui vamos ter adolescentes e jovens, com mais de 14 anos, ou seja, precisamente na faixa etária onde mais acontecem. E sabemos que muitas das vítimas não falam até aos 30 anos. Por isso, era importante que o Papa deixasse essa mensagem, que não tenham medo de se manifestar, de denunciar. Que mostrasse que a Igreja está do lado das vítimas, que são jovens."

Irá o Papa Francisco fazer alguma referência aos casos recentemente revelados de abusos sexuais de menores na Igreja Católica em Portugal? Haverá um pedido de desculpa às vítimas durante a Jornada Mundial da Juventude (JMJ)? 

A única coisa que se sabe é que, por vontade do Papa, a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) "está a coordenar o encontro do Santo Padre com as vítimas de abusos de menores na Igreja Católica em Portugal, em articulação com a JMJ Lisboa 2023 e a Secretaria de Estado da Santa Sé". Filipa Almeida explica que a associação acolheu a ideia com agrado: "Não é uma novidade, é algo que o Papa já tem feito noutros países. Novidade seria se não o fizessem Portugal", afirma. 

Este será "um encontro reservado e, por esse motivo, não serão dadas outras informações prévias, inclusive para salvaguardar a identidade das vítimas", informou a CEP. "É tão secreto que nem eu sei onde e como vai acontecer", comentou na segunda-feira o cardeal-patriarca Manuel Clemente.

Mas, para além do encontro, "o que devia acontecer era uma menção significativa do tema", diz também à CNN Portugal Paulo Mendes Pinto, diretor do departamento de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona. "Há uma expectativa geral sobre isso e que em princípio será cumprida. O Papa Francisco tem-no feito em várias ocasiões e em vários países, e vai fazê-lo certamente também em Portugal, num momento ou noutro, com mais ou menos ênfase. Não sabemos exatamente se irá pedir perdão, mas o Papa irá assinalar o tema."

De facto, é "expectável" que Francisco faça uma referência ao tema durante a sua viagem, diz à CNN Portugal Sofia Marques, coordenadora do Serviço de Proteção e Cuidado da Companhia de Jesus. O Papa "não tende a fugir dos temas difíceis", afirma. Pelo contrário, "sabendo que este é um tema marcante e que Portugal está numa fase de reparação, provavelmente irá abordá-lo". Sofia Marques acredita, no entanto, que não o fará "na lógica de aprofundar o passado". "Há vítimas, há sofrimento, e como cristão penso que quererá voltar a pôr o foco na vítima, e será uma intervenção mais numa lógica de olhar com esperança para o futuro, de ser algo construtivo".

O que fez a Igreja portuguesa para reparar as vítimas de abusos sexuais?

Em fevereiro, a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica apresentou o relatório sobre os casos de abusos sexuais na Igreja em Portugal, validando 512 casos entre 1950 e 2022, o que serviu para estimar, pelo menos, 4.815 casos de abusos no seio da Igreja. Os testemunhos das vítimas chocaram a sociedade portuguesa, pelo elevado número de casos, mas também pela violência revelada nos relatos. A Igreja investigou as suspeitas, afastou temporariamente alguns sacerdotes ainda no ativo e comprometeu-se a investir na formação dos seus membros e a ficar mais atenta, para garantir que situações destas não se voltariam a repetir.  

Foi ainda criado o Grupo Vita, uma organização independente, liderada pela psicóloga Rute Agulhas, que procura  acolher, escutar, acompanhar e prevenir as situações de violência sexual de crianças e adultos vulneráveis no contexto da Igreja Católica, numa lógica de intervenção sistémica. Por exemplo, criando um programa de ações de sensibilização e formação sobre abusos sexuais com várias entidades ligadas à Igreja.

No entanto, existe entre muitas pessoas a sensação de que se poderia ter ido mais longe na reparação e que o tema está a cair no esquecimento. E a JMJ, por ser um evento que reúne tantas pessoas e tanta atenção mediática, é também o momento para recuperar esta questão, como bem perceberam alguns movimentos cívicos.

E o memorial?

Na sequência da revelação do relatório da comissão independente, a conferência episcopal anunciou a 3 de março uma série de medidas a tomar, entre as quais se inclui a criação de um memorial no Parque do Perdão, instalado em Belém durante a JMJ. Na altura, o presidente da CEP, José Ornelas, afirmou que a ideia da Comissão Independente para a construção de um memorial fora "totalmente aceite" pelos bispos, sendo a autoria do arquiteto Siza Vieira. Após a JMJ, o memorial seria "perpetuado num espaço exterior da Conferência Episcopal Portuguesa".

No entanto, a 10 de julho, a CEP informou que o projeto ainda estava em estudo e, por isso, não seria apresentado durante a JMJ, adiantando que "assim que esteja concluído e haja nova data", será divulgada uma nota. O memorial foi, portanto, adiado - ou cancelado.

A verdade é que a ideia nunca foi consensual. O presidente da Fundação Jornada Mundial da Juventude Lisboa 2023, bispo Américo Aguiar considerou numa entrevista, em 14 de março, que o memorial "não é a forma mais feliz" de evocar as vítimas, admitindo que a ideia lhe causava algum "desconforto".

Até as vítimas não concordavam com o projeto. "Um memorial não faz absolutamente sentido nenhum, acho que deviam focar-se nas vítimas e não no ‘show-off’", disse na altura Cristina Amaral, da associação Coração Silenciado. "Mais uma vez, a prioridade não são as vítimas, mas aquilo que é visto", insistiu, sublinhando que seria "uma coisa da Igreja para a Igreja".

Os jovens representam a esperança num futuro melhor

"Como católica, espero que o Papa Francisco possa encontrar-se com vítimas de abusos em Portugal, tal como já fez no passado noutros países, e que em nome da Igreja transmita dor, arrependimento e a firme intenção de tudo se fazer para impedir que esta realidade se repita", afirma à CNN Portugal Rita Monteiro, do Movimento Internacional Economia de Francisco.

"Desejo igualmente que, nas celebrações que decorrerem durante a JMJ, a realidade das vítimas dos abusos possa ser trazida, nomeadamente, aos momentos de oração", diz, esperançada. "Os católicos, em particular os portugueses, não são alheios a esta realidade, mesmo no contexto celebrativo da JMJ. E é por isso que é importante que a JMJ seja uma oportunidade de renovação para a Igreja, e que esta continue a transformar as estruturas de poder que se corromperam, ocultando e perpetuando abusos, bem como possa continuar a reforçar a cultura de cuidado que faz parte do seu modo de estar no mundo."

"Aquilo que gostava realmente que acontecesse, mais do que ações concretas, independentemente dos encontros ou de outras ações mais materiais, é que as vítimas também se sentissem inundadas por esta esperança no futuro" que se sente na JMJ, concorda Sofia Marques. "Sei que é difícil, que ainda há muitos sofrimentos, mas esse seria o maior milagre." 

Na sua opinião, seria importante que os milhares de jovens reunidos em Lisboa "assumissem o compromisso de serem agentes de cuidado e de proteção, hoje e amanhã", "que se sentissem convocados para assumir essa preocupação pelo outro, garantindo que isto não volte a acontecer". "Gostaria que a mensagem que o Papa transmite aos jovens - pedindo-lhes o compromisso da proteção e do cuidado - se espalhasse pelo mundo inteiro. Estes jovens serão os mensageiros e agentes de cuidado em todas as relações que vivem. E esta imagem de semente de cuidado a espalhar-se pelo mundo inteiro enche-nos de esperança. Desejo que as vítimas de abusos sintam essa esperança também." 

Esse é também o desejo do padre José Luís Borga. "A JMJ foi convocada, desde a primeira hora, para que a Igreja se encontre e manifeste presente, e ativa, com a juventude. Manifestando e realçando tudo o que qualquer jovem tem de bom e em abundância, tornando-se, ela mesmo, jovem", explica à CNN Portugal. "Se há realidade que é totalmente inaceitável a qualquer jovem, saudável e feliz, é tudo aquilo que, diabolicamente, é gerado pela mentira que leva ao engano, e pela clara infidelidade aos melhores e mais nobres propósitos qualquer ser humano, para ser humano, deve evitar. Se a isto aliarmos a ofensa aos menos capazes de se defender…" 

"Bom será ver como em cada jovem, não ignorando muitas misérias que podem sempre acontecer em cada um de nós, há uma misericórdia que nos faz acreditar e caminhar no caminho da justiça e da verdade que nos levam à liberdade plena. Só assim os encontros das pessoas serão lugares de alegria e de festa", diz o padre. Assim, "quem melhor do que esta multidão de jovens para nos motivar a acreditar nesta outra realidade que todos (crentes ou não) somos chamados a construir?  Espero que tudo isto seja bem visível na JMJ de Lisboa 2023".

Relacionados

País

Mais País

Patrocinados