«Vejo mais jogos da equipa feminina do Benfica do que da masculina... gosto muito, é como regressar à infância»

27 out 2022, 09:50
João Tordo

«Um café com...» João Tordo, escritor brilhante, músico e adepto do Benfica, que procura insistentemente a pureza do futebol que o devolve às memórias de criança.

João Tordo nasceu em Lisboa em 1975 e começou a ser levado ao Estádio da Luz ainda criança, por um avô apaixonado pelo Benfica, que guardava recortes dos jornais com os grandes feitos do clube. Aos cinco anos, João assustava-se com o barulho da multidão e por isso mergulhou no entusiasmo da escrita.

Entretanto tornou-se num dos escritores mais importantes da atualidade em Portugal, vencedor de vários dos mais importantes prémios, como o José Saramago, em 2009, ou o Fernando Namora, em 2021. Já escreveu dezassete livros, o último dos quais - «Cem anos de perdão» - chega às bancas nos próximos dias.

Enquanto escreve, João Tordo continua a alimentar a paixão pelo futebol, que lhe foi passada pelo avô e que lhe permite desligar mentalmente do trabalho. Procura insistentemente um regresso à infância e nos últimos tempos deixou-se conquistar pelo futebol feminino, que diz ser mais puro e honesto.

Qual é que é a primeira memória que tem do futebol?

É difícil dizer. Eu tenho memórias assim do princípio dos anos 80 e acho que a memória mais clara será do Mundial 82, em Espanha. Por razões mais lúdicas, até. Eu tinha um Naranjito, que a minha mãe me comprou, e andava com aquilo para todo o lado.  Comecei também a fazer a caderneta de cromos e ainda me lembro da canção do Espanha-82. Enfim, não tenho memória de ver os jogos, lembro-me, sim, de todo o ambiente em volta do Mundial.

Foi um Mundial que deixou gratas recordações a toda uma geração.

Sem dúvida. Para nós é sempre uma memória bonita. As aulas acabavam, depois havia o Mundial e todo esse encantamento juvenil. Agora infelizmente é um ambiente esquisito, um Mundial jogado em novembro e dezembro é estranho, mas pronto.

O primeiro Mundial de que se lembra realmente dos jogos é o México 86?

Sim, sim, do Mundial 86 já tenho mais memórias: o Inglaterra-Argentina, os jogos de Portugal, do Brasil, a Bélgica, enfim, tenho essas memórias ainda a preto e branco.

E o Benfica?

As memórias do Benfica são diferentes, já são memórias de estádio. Lembro-me da primeira vez que fui ao futebol, lembro-me de ver Rui Costa jogar, lembro-me de um jogo incrível com o Parma, para aí em 94, para as meias-finais da antiga Taça das Taças.

Mas antes disso ainda houve as idas com o seu avô ao Estádio da Luz.

As memórias do camarote, claro. Mas isso não são bem memórias. Eu ia com o meu avô, ele levava-me a ver o futebol, mas eu tinha quatro ou cinco anos, era uma criança e nessa altura nem sequer percebia bem o que estava a acontecer. Aquilo para mim era assustador. O antigo Estádio da Luz estava quase sempre cheio, 90 mil pessoas, 100 mil pessoas, e eu tinha muito medo do camarote. Quando era golo do Benfica, o ruído da multidão metia-me medo.

O conto que escreveu para o livro «A mística em prosa», e que é fantástico, começa nesse camarote.

Sim, o camarote assustava-me muito na altura [risos]. Recordo-me que também costumava estar lá o meu pai [Fernando Tordo], estava muitas vezes o Paulo de Carvalho, o Carlos do Carmo, que dizia que era do Belenenses para ser diplomático, mas toda a gente sabia que era do Benfica. Eu era muito miúdo e, portanto, lembro-me do medo, mas não me lembro propriamente de estar no sítio.

O início da sua relação com o futebol vai muito à boleia do seu avô?

É curioso que eu ainda guardo muitos souvenirs que o meu avô colecionava na época. Há uma palavra em inglês que descreve bem esses objetos, que é memorabilia. Sei lá, guardo copos e pratos do Benfica campeão europeu, comprados pelo meu avô no ano do título, guardo a águia dourada que ele tinha em cima do móvel na sala de jantar.  

O seu avô era mais benfiquista do que o João é?

O meu avô viveu o futebol noutro tempo, num tempo em que as coisas não eram tão desagradáveis. Acho que há um lado do futebol que se tornou desagradável. A partir dos anos 80 e sobretudo nos anos 90, em Portugal, mas também em Itália ou em Inglaterra, o futebol ganhou uma dimensão extracampo que eu não gosto nada. Há muita coisa escrita sobre isso e ainda recentemente vi uma série sobre a tragédia de Hillsborough, por exemplo. É esta dimensão do fenómeno que faz muito mal ao futebol. O que também é culpa dos dirigentes e eu estou muito feliz por o meu clube neste momento ter um presidente como o Rui Costa: um tipo que até agora foi completamente honesto. Isso faz muita falta aos sócios e aos adeptos. Uma das coisas que me ficou do meu avô e do meu pai é ter orgulho na honestidade do clube. Prefiro ter um clube transparente e não ganhar campeonatos.

O João era uma criança que gostava de ficar em casa e descobriu muito cedo a escrita. Nessa paixão pelas letras já cabiam os jornais desportivos que o seu avô guardava?

Ele guardava muito A Bola e a Gazeta dos Desportos, sim. A Bola era naquele formato enorme, parecia quase um lençol de cama, e o meu avô recortava as notícias que lhe agradavam mais, do Benfica ou da Seleção Nacional, e guardava aquilo. Por acaso não fiquei com nada disso, deve estar tudo ainda lá na casa da minha avó. Mas era engraçado, o meu avô também era um grande fanático da Totobola e era através do Totobola que eu conhecia os resultados.

Pois, porque o João preenchia o boletim com o seu avô...

Sim, à noite, depois do jantar, ele perguntava-me, por exemplo: Penafiel-Leixões? E eu dizia 1, ou x ou 2. E era assim que ele preenchia o boletim, com as minhas respostas à balda. O que era engraçado, porque ele confiava mais na minha intuição, que não percebia nada daquilo porque era uma criança, do que no conhecimento dele.

E tem memória de ter ganhado alguma coisa?

Talvez um prémio menor, não sei. Mas pronto, não vou dizer que tenho saudades, porque saudade é uma palavra sobreusada, mas acho que naquela altura havia um tempo do futebol. Foi um sentimento que se enraizou no meu avô e até no meu pai, que tinham um grande respeito pelo próximo. Não havia esta violência, que começa de uma forma psicológica ou verbal, e depois afeta toda a realidade futebolística. Parece que nessa altura havia respeito, o adversário não era um inimigo. Às vezes falamos do futebol como se fosse uma guerra e não é.

Mas há adeptos que vão para o futebol a pensar que vão para a guerra.

Não, uma guerra é outra coisa. Uma guerra é o que está a acontecer na Ucrânia. Morrem pessoas. Por isso tenho um enorme respeito pelos clubes todos e sobretudo pelos rivais mais próximos, que são os que me dão mais pica, que me fazem mais querer ver aquele jogo, ver quem joga melhor, quem marca. Enfim, como se percebe não sou um viciado, sou um adepto do meu clube, com mas grande respeito por todos os clubes.

E lembra-se do programa do Totobola, à quarta-feira? Em que no fim a RTP apresentava os palpites para aquela semana.

Lembro-me perfeitamente, claro. Como me lembro do Domingo Desportivo, que no fim dos resumos todos apresentava a chave do Totobola. A cultura desportiva na altura estava restrita a determinados programas e horários, não é como agora que o futebol dá em loop a toda a hora. O que acaba por ser normal, na altura tinhas dois canais, agora tens 150 e o futebol é uma indústria que alimenta isso.

Se calhar é por isso que antigamente as memórias do futebol duravam muito mais do que agora. Por exemplo, o golo de Carlos Manuel em Estugarda.

Esse golo durou anos.

Sim, exatamente, durou anos. O golo de calcanhar do Madjer andou anos nos genéricos dos programas de desporto.

Sim, mas também porque agora há muito mais oferta. Eu adorava o campeonato inglês quando era miúdo e a única forma que tinha de ver os resumos era ao sábado de manhã na RTP2. Um acontecimento na altura era uma coisa fenomenal. Um grande golo ou uma grande vitória. Toda a gente falava daquilo. Hoje se quiseres vês futebol o dia todo, por isso as memórias são mais efémeras. Se me perguntares o resultado da final da Champions do ano passado, eu não me lembro. Eu vi o jogo, sei que o Real Madrid ganhou, mas não me lembro do resultado.

E como é que aquela criança que não gostava de ir ao Estádio da Luz porque o barulho a incomodava, ultrapassou isso e adquiriu o gosto em ir ao estádio?

Porque eu hoje vou muito mais ao estádio do Cova da Piedade, que é onde joga a equipa de futebol feminino. As multidões nunca foram muito a minha cena e por isso nunca fui muito de ir ao estádio. Quando vou é para ver um jogo específico. Mas vou ver a equipa feminina do Benfica. Não há muita gente, é fácil entrar no estádio, gosto de ver as meninas a jogar.

Vê mais jogos do Benfica feminino do que do que Benfica masculino?

A equipa feminina é a que mais sigo atualmente. Pode parecer estranho, mas vejo mais jogos da equipa feminina do que da equipa masculina, sim. Para mim tem sido uma revelação e tem sido uma surpresa. Às vezes acho que estou a assistir aos primórdios do futebol, acho que estou a assistir a uma coisa que ainda é muito genuína.

Mais pura, não é?

Muito pura, sim. A capitã da equipa do Benfica, a Pauleta, é estudante universitária, por exemplo. Os jogadores de craveira mundial ganham milhões e têm vidas muito diferentes das nossas. Por isso tenho todo o respeito pelo Cristiano Ronaldo, mas eu não consigo identificar-me com ele. A minha vida não tem nada a ver com a vida dele. Eu acordo de manhã, apanho trânsito, vou trabalhar, tenho uma vida completamente normal, como a maioria das pessoas. Mas os jogadores de craveira mundial não sabem o que isso é, não têm as mesmas dificuldades que nós temos. O futebol feminino, por outro lado, tem semelhanças com o futebol de antigamente, dos anos 50, 60 ou 70, quando os jogadores tinham vidas normais, misturavam-se com as pessoas e não viviam numa bolha só deles. É por isso que neste momento os meus ídolos se chamam Kika Nazareth, Cloé Lacasse e Jessica Silva. Esses é que não os meus ídolos.

Isso é quase como procurar o futebol da nossa infância...

É isso mesmo. É procurar um futebol que não esteja contaminado por esta por esta coisa do futebol moderno. Claro que não posso dizer que não gosto de ver um Benfica-FC Porto ou um Benfica-Sporting, ou um jogo da Champions. Gosto, claro, toda a gente gosta. Mas dadas as circunstâncias do futebol tenho dificuldades em me identificar com aquele lado heroico que se cola muitas vezes aos jogadores. Eu tenho uma profissão que também não é muito habitual, mas a verdade é que tenho uma vida normalíssima. E portanto, identifico-me muito mais com pessoas que têm vidas normais e também alcançam feitos heroicos. Por isso é que o futebol feminino me atrai tanto. Gosto mesmo de ver. Pode ser um futebol muito mais inocente, mas também é mais honesto: percebes que aquelas miúdas sentem mais o clube. No Benfica, no Sporting, no Sp. Braga ou no Famalicão. Acho que isso faz muita falta ao futebol.

Como é que foi crescer como adepto na crise interna dos anos 90 no Benfica?

Ainda vi os títulos de 91-92 e 93-94, depois sim, foi uma década difícil. Mas era um tempo em que o futebol estava a mudar, a Lei Bosman mudou completamente isto tudo, os clubes portugueses já não tinham dinheiro para ter um Valdo, um Mozer, um Balakov ou um Figo. Foi uma década complicada, de facto, mas apesar de tudo os clubes portugueses até conseguiram sobreviver. Clubes como o Steaua Bucareste, o Anderlecht, o Estrela Vermelha, até mesmo o Nápoles, que agora está a regressar, mas esses clubes desapareceram internacionalmente.

E em que é que essa década o influenciou enquanto adepto?

Acho que me tornou muito mais adepto. As dificuldades são grandes motores de aprendizagem e de resistência. Por isso tenho um grande respeito pelos adeptos do Sporting, porque admiro quem resiste. Lembro-me que no primeiro ano de Rui Vitória, houve muito o fantasma do Jorge Jesus. De repente, estávamos sete pontos atrás do líder, que era o Sporting, que já tinha ido ganhar à Luz por 3-0, enfim, estávamos a ter uma época dificílima. E eu não me esqueço de uma tarja que vi nessa altura e que dizia: «Não desistam, nós estamos aqui». Acho que essa tarja mostra como a paixão por um clube precisa de momentos de grande desilusão e de grande frustração para se provar que é isso mesmo: paixão.

Para terminar, como é que o futebol cabe na sua vida, que imagino que seja uma vida com o tempo mental muito ocupado, como acontece com os escritores?

Cabe exatamente no espaço em que esse lado mental descansa. Não há nada mais relaxante para mim do que ao fim da tarde ou à noite ir ver um jogo de futebol. Seja de futebol masculino ou feminino, seja um jogo do campeonato português ou estrangeiro. Fico todo contente, por exemplo, ao ver um Chelsea-Manchester City, porque é um momento em que os outros estão a correr por mim. É um momento em que os outros estão a trabalhar e eu estou ali, no sofá, relaxado. E depois há uma coisa que não sei explicar, mas o verde do relvado é muito tranquilizante para o espírito. Há pessoas que não sentem nada disto, olham para um jogo de futebol e veem uma parvoíce. Para mim não, para mim é muito relaxante. Até tenho pena de quando era mais novo, por ser muito tímido e apaixonado pela escrita, nunca ter jogado futebol com os amigos. Acho que é um jogo muito giro do ponto de vista coletivo: é um jogo em que o coletivo depende das individualidades. E aqueles jogadores que são mais individualidades, e menos coletivos, cada vez mais tendem a passar tempos difíceis.

«Um café com...» senta o Maisfutebol à mesa com figuras eminentes da nossa sociedade, nomes sem ligação aparente ao desporto, a não ser a paixão. A música, a literatura, o cinema ou a política enredados nas quatro linhas de conversas livres e descontraídas.

 

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