«O futebol tem esse papel de trazer alguma justiça social às comunidades suburbanas»

23 mar 2022, 08:29
Valete

«Um Café com...» Valete, rapper e escritor, sportinguista e apaixonado por futebol, num entusiasmo que lhe foi passado pelo pai e que nem os jogos de infância no Estádio da Luz conseguiram mudar.

Chama-se Keidje Torres Lima, mas é mais conhecido por Valete. Nasceu em Lisboa, em 1981, passou a infância em Benfica, na Amora e agora vive na Damaia. Licenciado em Comunicação Social, gosta de refletir sobre a sociedade e a política.

É um dos rappers mais destacados do panorama nacional, com uma carreira que começou em 1997 e já o levou a participar em vários projetos. Apaixonado pelo futebol, é capaz de ver quinze jogos por semana. Nesta entrevista destaca a influência do pai como ídolo e diz que no Sporting atual está a viver uma lua de mel.

Pelo caminho reflete sobre a importância do futebol para as comunidades suburbanas e congratula-se que o movimento antirracismo não se tenha aproveitado do episódio com Bernardo Silva. Venha daí para uma entrevista em tom de conversa.

Que lugar ocupa o futebol na vida de alguém que reflete tanto sobre a sociedade e a política?

Antes de tudo, é um escape. O que me faz relaxar é o futebol. Desde as Ligas mais famosas às menos excitantes, quando preciso de descansar, porque sinto que estou com algum nível de desgaste mental, vejo um jogo de futebol.

Vê muito?

Vejo muito futebol. Sou capaz de ver dez a quinze jogos por semana.

Na televisão?

Na televisão, sobretudo. De vez em quando vou ao estádio, mas tenho ido cada vez menos. Vejo Liga Portuguesa, Liga Inglesa, Liga Espanhola, que está entusiasmante com esta recuperação do Barcelona, Liga dos Campeões, claro, e agora também a Liga Brasileira por causa dos treinadores portugueses.  

Vê como adepto ou vê só pelo prazer do futebol?

Vejo quase sempre como adepto, porque em cada Liga torço por uma equipa. Por exemplo, em Inglaterra é o City, em Espanha agora é o Barcelona, em Itália sempre foi muito o Milan.

E de onde vem essa paixão pelo futebol?

Vem do meu pai, que sempre foi um grande fã de futebol. As antigas colónias tinham uma espécie de satélites dos grandes clubes de Portugal e o meu pai jogou no Sporting de São Tomé. Sempre teve uma relação muito forte com o futebol, passou-me isso e eu joguei sete anos no Fofó.

Porque deixou de jogar?

Porque a certa altura percebi que não tinha talento suficiente para ter uma carreira profissional. No Fofó eu fiz dos infantis até ao juvenis, fui chamado para ir fazer o primeiro ano de juniores, mas percebi que nunca iria ser um jogador destacado e achei melhor não continuar.

Como é que essa transferência da paixão do seu pai para si se processava?

O meu pai jogava muito, ou seja, foi jogador do Sporting de São Tomé e depois quando veio para Portugal continuou a jogar, naquele jogo de fim de semana com os amigos no Inatel de Alvalade. Eu acompanhava sempre estes jogos desde criança. O meu pai não era de ir ao estádio, mas nessa altura eu vivia numa casa, num T2 em Benfica, com mais duas famílias, portanto éramos três famílias na mesma casa, e um tio meu que vivia comigo ia todos os fins de semana ao Estádio da Luz. Eu sempre fui do Sporting, mas ele levava-me com ele, e então ia ver os jogos do Benfica. Por isso, e para além dessa relação com o jogo jogado, sempre tive uma relação com ver o jogo no estádio.

Também tinha muito aquela coisa de jogar na rua?

Sim, sim. Todos os dias. Na rua, na escola, estava sempre a jogar, sempre a jogar. Isto desde muito criança, desde os cinco ou seis anos, creio que até aos 16 anos, era sempre a jogar, a toda a hora.

Em Benfica havia possibilidade de os miúdos jogarem na rua?

Jogávamos na estrada. Eu vivia numa zona tranquila, na Calçada do Tojal, que vai de igreja de Benfica até ao cemitério de Benfica, e a rua de trás, a Rua Jorge Barradas, era muito tranquila, passavam poucos carros e nós jogávamos na estrada. Mas também íamos para campos de futebol de salão, um dos quais ainda existe, na Junta de São Domingos do Benfica. Também íamos para um campo junto ao Fonte Nova e também jogávamos futsal no Fofó.

Nessa altura sonhava ser jogador, como todos os miúdos?

Claro, claro. Desde sempre sonhei ser jogador. Foi aquele sonho que não se concretizou, mas durante toda a minha infância esse era o sonho.

Já percebi que apesar de viver em Benfica e de ir aos jogos do Benfica, é do Sporting por causa do seu pai, não é?

Sem dúvida, por causa do meu pai. Nem sequer há outra razão, é só mesmo por causa do meu pai.

Ele não me lhe deu hipótese de não ser do Sporting?

Eu sou filho único. O meu pai já morreu, mas creio que como todas as crianças eu tinha uma admiração muito grande pelo meu pai. Ele era o meu grande ídolo e era natural que eu seguisse todos os vínculos dele. Por exemplo, o meu pai durante muito tempo votou no PS e por isso eu tinha uma relação muito forte com o PS. Era um seguidor dos valores do meu pai.

Como explica esse facto de o seu pai ser o seu herói de uma forma tão vincada?

O meu pai era uma pessoa muito carismática. Eu cresci numa zona em Benfica onde nós éramos a única família africana, então é natural para um miúdo africano espelhar-se e ver-se em referências negras e em referências africanas. O meu pai era a referência mais próxima. Creio que é por aí: ser filho único e ser um miúdo africano que cresce ali meio desintegrado num bairro de classe média, porque nós éramos pobres, mas vivíamos num bairro de classe média.

Como é que a sua família vem para Portugal?

O meu pai veio estudar. Fazer engenharia. Veio com uma bolsa. Ele já namorava com a minha mãe, então eles vieram juntos e depois eu já nasci cá em Portugal.

Já agora, vi-o congratular-se com o facto do movimento antirracista não se ter aproveitado daquele episódio do Bernardo Silva. Porquê?

Às vezes há uma certa tentação destes movimentos para se aproveitarem de momentos infelizes de figuras públicas. Quando aconteceu com o Bernardo Silva, nós que se calhar estudamos um racismo mais científico conseguimos catalogar aquilo como um ato racista, mas também facilmente percebemos que foi um momento infeliz, de uma pessoa que é inculta em relação ao tema do racismo, mas não há a intenção de ser agressor. Não houve essa intenção do Bernardo Silva. Por isso eu tive orgulho do movimento antirracismo nesse momento.

Por não se aproveitar do facto...

Exatamente. Podia-se aproveitar, como aconteceu por exemplo em Inglaterra, mas em Portugal graças a Deus não aconteceu.

Porquê o manifesto anti Paulo Bento?

Obviamente estou super arrependido disso. Como dizem os espanhóis, foi uma tonteria. E hoje estou super arrependido. Ou melhor, podia fazer aquilo, mas com mais classe. Aquilo ficou muito bimbo. Dava para fazer um som de futebol a falar sobre o teu treinador, mas uma coisa com mais classe, mais artística, não tão bimbalhoca como ficou. Daí o arrependimento.

Arrepende-se, portanto, do resultado, mas não da vontade de o fazer?

Sim, aquilo é como realizar um filme e o filme sair mau. Aquilo não tem valor artístico. Dá para fazer um tema sobre futebol, dá para criticar o teu treinador, mas com valor artístico. E aquilo não tem valor artístico. Daria para fazer uma coisa criativa e eu não o fiz.

Sofre muito com o Sporting?

Sim, muito. Agora estamos a passar bons tempos, mas o Sporting já foi um clube muito indigente. Era uma plataforma de decisões erradas, dos dirigentes aos treinadores. Agora creio que está tudo bem. Temos um treinador excelente, o clube está estável, normalmente contratamos bem, os jogadores produzem. É uma lua de mel.

Para alguém que nasceu em 81 é quase uma novidade.

Eu não vivi o que estou a viver agora nem nas alturas em que fomos campeões com o Inácio e o Boloni. Um Sporting super tranquilo. Para mim nem sequer é crucial que o Sporting ganhe nos próximos anos.

Não é?

Não. Eu só quero é que se mantenha este treinador por muitos anos, o que não vai ser fácil, mas quero que se mantenha porque as coisas estão a ser bem feitas. O FC Porto está muito forte, então é provável que o FC Porto também ganhe alguns campeonatos, mas eu sei que o Sporting vai competir sempre e vai chatear, coisa que não fazia antes do Ruben.

Portanto é só o prazer de ver as coisas bem feitas?

Sim, é uma coisa que agora está muito na moda os treinadores dizerem que é confiar no processo.  Acredito nisso: o trabalho é bom, o treinador é bom, então é confiar no processo e vamos continuar a ganhar. Não vamos ganhar todos os anos, mas daqui a dois ou três anos vai acontecer certamente.

Para terminar, em que sente que deve estar grato ao futebol?

Eu venho de uma família pobre e quando saí de Benfica fui viver para a Amora e agora vivo na Damaia. São zonas periféricas. Agora já não tenho uma condição de pobreza, graças a Deus, mas eu vim dessa condição. E eu sou da comunidade periférica, da comunidade suburbana de Lisboa, e praticamente só no futebol é que tu consegues catapultar jovens que vêm dessas comunidades para o espaço público. As figuras públicas que vêm dos subúrbios, que vêm dos guetos de Lisboa, são jogadores de futebol. Praticamente elas não existem noutros setores da sociedade. Por isso o futebol para mim também representa isso, representa uma possibilidade de nós termos jovens que vêm das comunidades periféricas a brilhar e a expressar todo o seu potencial.

Também há alguns músicos.

Agora estás a ter uma geração por causa do hip-hop, mas tirando o hip-hop, os outros estilos musicais não produzem figuras públicas que venham da periferia. Há muito poucos atores, na política praticamente não existe ninguém, na televisão também não. Então o futebol tem esse papel de fazer alguma justiça social e é bonito.

Além disso, essas pessoas quando aparecem no espaço social, geralmente são sempre admiradas, o que serve para haver uma certa harmonização da sociedade.

Sem dúvida. É residual, não tem a expressão que o combate a essa desigualdade devia ter, sobretudo se pensarmos que isso provavelmente representa 5 ou 3 por cento, mas é uma coisa que tem muita visibilidade e é simbólico. É importante porque é simbólico. Os miúdos na periferia acreditam que também podem lá chegar, porque veem outros rapazes que lá chegaram. Aqui os miúdos não acreditam que podem ser primeiro-Ministro ou Presidente da República, ninguém acredita nisso, mas jogador de futebol... claro que sim.

O futebol é democrático?

Acho que só tem um problema, de que muito pouca gente fala. Eu tenho algumas amigas que são treinadoras de futebol e percebo que o futebol vai proporcionar uma revolução muito importante quando aceitar ter mulheres a treinar equipas profissionais masculinas, que é uma coisa que não existe. As minhas amigas quando vão mostrar os seus currículos aos clubes, dizem-lhes que no máximo podem treinar a equipas masculinas de formação. Nunca as deixam treinar uma equipa sénior, profissional. Então quando isso acontecer, creio que podemos estar a falar do futebol como uma atividade realmente democrática. Até lá acho que não.

«Um café com...» senta o Maisfutebol à mesa com figuras eminentes da nossa sociedade, nomes sem ligação aparente ao desporto. A música, a literatura, o cinema ou a política enredados nas quatro linhas de conversas livres e descontraídas.

 

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