«Deem-me de novo os erros clamorosos de pessoas que viam mal um lance»

17 abr 2020, 09:35
Jacinto Lucas Pires

Um «Café com...» sem café, neste tempo sem encontros. Jacinto Lucas Pires é o convidado e fala sobre a falta que faz o futebol e sobre o que espera que mude depois disto. Ainda o Benfica, valores, memórias e uma espécie de plano para quando tudo isto passar

«Um café com...» senta o Maisfutebol à mesa com figuras eminentes da nossa sociedade, nomes sem ligação aparente ao desporto, a não ser a paixão. A música, a literatura ou o cinema enredados nas quatro linhas de conversas livres e descontraídas. Críticas e sugestões para pcunha@mediacapital.pt ou bmmr.externo@medcap.pt 

Não há encontros para café por estes dias, não há encontros. São tempos estranhos, que mudaram a vida, o modo de viver, estar e conversar. Esta foi uma conversa que procurou adaptar-se, que se fez via computador e começa por aí, pela estranheza destes dias. Onde falta também a normalidade do futebol. Mais importante do que podíamos pensar, como diz Jacinto Lucas Pires.

O escritor de romances, contos, teatro e crónicas, de 45 anos, fala sobre aquilo que espera ver mudar depois do impacto global da pandemia, no mundo e no futebol. Gostava de ver mais equidade, mais respeito por aquilo que o jogo é, «um encontro humano em tempo real». Liberto daquilo que o «envenena» e nisso entra o videoárbitro: «Deem-me de novo os erros clamorosos…»

Este é o olhar de um benfiquista de sempre, uma paixão que herdou do pai, o político, europeísta e professor Francisco Lucas Pires. Um benfiquista que não dissocia o amor ao clube da defesa de valores que considera essenciais e disposto por isso a assumir posições críticas, como fez em relação à associação do deputado do Chega, André Ventura, ao seu clube. Entre memórias de futebol, do festejo do golo de Vata que acabou com uma dor de cabeça a uma outra, tão banal mas agora tão distante, fica também uma espécie de plano para quando tudo isto passar.

Neste tempo estranho, de que sente mais falta? Falta também a normalidade do futebol?

Sim, claro. É engraçado como, em tempos normais, não pensamos no futebol como «normalidade», mas, quando ele desaparece, percebemos a importância da bola semanal para o nosso equilíbrio psicológico, enquanto indivíduos e comunidade. E não é só a falta de escape, de um espaço onde possamos soltar emoções e regressar à infância; é também (à semelhança do teatro ou do comício) a falta de um lugar onde possamos experimentar a emoção viva de estar no mundo coletivamente.

Acredita que esta crise por que o mundo está a passar pode levar a mudanças relevantes?

Acredito que sim — e espero que sejam mudanças para melhor. Será interessante ver se, depois disto, conseguimos libertar-nos do fechamento que as redes sociais criam...

E no futebol?

No futebol espero que sejam criadas condições de equidade e equilíbrio entre os clubes europeus e dentro dos campeonatos nacionais. E que o jogo passe a ser respeitado pelo que é desde o princípio: um encontro humano em tempo real. A lógica televisiva envenena o desporto que amamos, primeiro, pelo lado do dinheiro e, depois, pelo lado dos robôs do videoárbitro. Deem-me de novo os erros clamorosos de pessoas que viam mal um lance num momento! Prefiro-os mil vezes aos erros chatos, anticlimáticos e não menos clamorosos dos videoárbitros...

Como está a acompanhar o que se discute em torno do futebol: jogar ou não o resto da época, cortar ou não salários dos jogadores, colocar clubes em lay-off?

Estou a acompanhar com atenção e prudência...

Já assumiu uma posição crítica em relação a várias questões relacionadas com o Benfica, nomeadamente quanto à associação de André Ventura ao seu clube. Acha que ser adepto, além de torcer por vitórias, tem de ser também isso, defender valores?

Claro que sim. O nosso clube é a nossa casa — temos de exigir que a tratem bem, que não a desrespeitem para servir mesquinhos interesses pessoais. 

Disse em tempos que é adepto de futebol, não de cifrões. Ainda consegue abstrair-se de tudo o que se passa em volta e gozar o jogo apenas pelo jogo?

Consigo, sim, mas já foi mais fácil... Talvez seja o meu treino de escritor: tentar ver tudo como que pela primeira vez...

Qual é a primeira recordação que tem de futebol? O Benfica faz parte dessas primeiras memórias, como começou essa afinidade com o Benfica?

Claro. O meu pai era do Benfica. A questão faz tanto sentido para mim como se me perguntasse «como começou a sua afinidade com Portugal»...

E a melhor memória que tem de futebol?

Foi há pouco tempo, mas parece uma lembrança de outra época: estar com a minha mulher e os meus filhos na Catedral da Luz a ver um jogo normalíssimo do campeonato, sem sabermos que era o último que íamos ver ali durante muito tempo.

Qual foi a coisa mais «maluca» que fez como adepto?

Saltar, no terceiro anel do estádio antigo, no festejo louco que se seguiu ao golo do Vata, e, bum, levar com uma bandeira na cabeça. Juntou-se a alegria e a dor na cabeça, mas o coração estava tão feliz que tudo se resolveu.

Chegou a jogar futebol ou a praticar algum desporto?

Sonhei ser o maior «trinco moderno» do mundo. E joguei muito basquete — o mais musical dos desportos.

O desporto e o futebol podem ser de alguma forma fonte de inspiração ou base de trabalho para um escritor?

Para mim, são todas as semanas — no jornal O Jogo.

Que planos tem para quando tudo isto passar? 

Não tenho planos. Mas uma jogatana na praia com os amigos não era má ideia.

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