«Fico louca durante 90 minutos e tenho mau perder: sou igual ao Sérgio Conceição»

31 mar 2021, 09:26
Joana Marques

«Um café com…» Joana Marques, guionista, humorista e portista ferrenha em Lisboa

Da infância subsiste a memória de ouvir os ecos das finais do Jamor da janela de casa ou de ver o pai, habitualmente circunspecto, a correr à volta da mesa e a gritar golo, ao ver o FC Porto a derrotar o todo-poderoso Milan com um bis de Jardel.

«Nessa altura, tomei consciência de que o futebol transforma as pessoas. É como uma espécie de droga, e pensei: “Também vou querer tomar disto.”»

Hoje, é Joana Marques [35 anos] que chora ou pula de euforia nos jogos do FC Porto.

«Se os meus filhos não estivessem a dormir naquele jogo contra a Juventus, iriam lembrar-se mais tarde da figura que a mãe fez a deslizar pela sala quando o Sérgio Oliveira marcou o golo», confessa ao Maisfutebol.

Guionista, antes de tudo, humorista e radialista, autora da rubrica «Extremamente Desagrádavel» na Renascença, Joana mostra-se cativada pelo «lado meio-novela do futebol», em que argumentos aparentemente inverosímeis se transformam em realidade à flor da relva.

Antes de ser guionista, porém, já Joana era adepta ferrenha do FC Porto, por herança paterna e feitio. Gosta de ser do contra, reconhece, deixando uma constatação que quase ganha contornos de lema: «Os portistas apreciam essa coisa de serem a resistência em território inimigo.»

É portista em Lisboa por ser do contra ou por influência do pai?

O meu pai é lisboeta e do FC Porto, mas conta-me, quase como relatos da guerra, que na sua altura eram uma raridade. Hoje em dia, há uma nova geração que tem filhos também portistas e já há vários clãs. Sempre longe de ser uma maioria, porque os clubes da cidade são outros, mas os portistas apreciam essa coisa de sentirem que são a resistência em território inimigo. Se na altura de escolher eu estivesse na cidade do Porto, como sou do contra, se calhar não achava tanta graça.

Ser do contra, portanto, também ajuda?

Sim, até porque o meu irmão é do Benfica e eu divertia-me muito com ele, sobretudo nos anos 90. Era o meu escape para poder gozar com o meu irmão mais velho. Ele comprava os jornais todos e dizia «Esta época é que vai ser! Comprámos o Van Hooijdonk…» e mais não sei quem. Passava o verão todo a dizer-me «Tem cuidado, este é que é bom!» E depois nunca era. Essa dinâmica familiar foi divertida. Para mim; para o meu irmão nem tanto.

Na escola chegou a dizer que era do Sporting?

Sim, na Primária. Foi no recreio: há aquela coisa de querer pertencer, eu estava num grupinho de amigas e uma diz «eu sou do Benfica», e a outra «eu sou do Sporting». «E tu, Joana?» «Ahm… Eu sou do Sporting também», disse. Esse era o menos mau para mim. Não tive aquela coragem de dizer «Sou do FC Porto», porque achava que iam gozar comigo. Mas depois percebi que não havia mal nenhum. Antes pelo contrário, até porque estava a desperdiçar bons momentos em que podia gozar com elas.

Qual a sua primeira memória de futebol?

Lembro-me de estar em casa com os meus pais e com a minha avó a ver uma final da Taça de Portugal [1993/94] em que o FC Porto venceu o Sporting e no fim trocaram camisolas. A minha avó muito inocentemente e sem perceber nada de futebol dizia: «Que querido… Aquele jogador do Sporting está a festejar com os do FC Porto…» E eu muito pequena lembro-me de pensar: «Não, avó, claro que não é isso…» [risos] A casa dos meus pais era relativamente perto do Estádio Nacional, mas não podia ir.

Porquê?

O meu pai achava o futebol muito perigoso. Então, a memória que eu tenho era de abrir a janela e, se o vento estivesse de feição, ouvir os ecos do estádio em casa, quando havia finais da Taça. Ver o FC Porto ao vivo só fui mais tarde, já na adolescência.

Ao Porto?

Sim, já ao Dragão. Hoje, já faço isso de me enfiar no comboio e lá vou eu, mesmo que vá sozinha não me perturba nada. Chegando lá, encontro-me com gente como eu. Dantes, estava sempre à espera que houvesse jogos aqui: Belenenses, Estoril… Não é fácil, com família e trabalho ir ao Porto, mas todos os anos vou várias vezes ao Dragão. Aliás, sinto falta. Já é demasiado tempo sem ir ao estádio.

Já chegou a dizer que, apesar de ponderado, o seu pai se transformava em alguns jogos do FC Porto.

Como naquele 3-2 do FC Porto na Liga dos Campeões em casa do Milan [a 11 de setembro de 1996]. Estávamos de férias no Algarve e lembro-me do meu pai, uma pessoa sempre calma, completamente louco a correr à volta da mesa a gritar: «Golito! Golito!» Não percebo porque é que lhe saiu «Golito». Ainda hoje ele é gozado por isso, mas nessa altura tomei consciência de que o futebol transforma as pessoas. É como uma espécie de droga e pensei: «também vou querer tomar disto». A partir daí, comecei a ficar cada vez mais entusiasmada.

Esse é um dos primeiros grandes feitos europeus do FC Porto de que tem memória?

É uma das primeiras grandes noites europeias que recordo. Mais tarde, houve a conquista da Taça UEFA contra o Celtic [2002/03], pela vitória em si e pelo que aconteceu em minha casa. Íamos ver o prolongamento e falhou a luz: no prédio e no bairro todo. Até o meu irmão, apesar de benfiquista, queria ver aquela final, que estava a ser emocionante. Então, enfiámo-nos no carro e fomos para a casa da minha avó, que era noutra zona de Lisboa. Entrámos em casa dela de rompante, ligámos a televisão e passado dois segundos o Derlei marca o golo [3-2]! Dá-me ideia de que ele esperou por mim e agradeço-lhe isso até hoje. Era muito triste não ter assistido à minha primeira grande conquista europeia só por causa da EDP. Lembro-me também de, no ano seguinte, fazer direta para ver a chegada do Mourinho e dos jogadores após a conquista da Liga dos Campeões. A seguir fui para a escola.

Já atuou algumas vezes na gala dos Dragões de Ouro. Que tipo de reações já teve por parte dos jogadores ou do Sérgio Conceição?

São boas, até porque eu vou lá gozar com eles, mas não muito. Os futebolistas são as únicas pessoas que na vida adulta idolatramos. No primeiro ano do Sérgio Conceição fiz um segmento grande sobre ele: penteados, reações que ele tinha, como uma vez em que ele amuou por não ser titular num jogo de homenagem do Deco… Eu brinquei com isso ele riu-se muito. Ver que ele tem sentido de humor alegrou-me, porque eu sou fã e ficaria triste se descobrisse que afinal era uma pessoa que se levava demasiado a sério.

A atuação de Joana Marques na gala Dragões de Ouro, em 2017:

Como é a sua relação com os adeptos de clubes rivais. É verdade que chegou a ser conduzida por um motorista da Cabify que no final da viagem lhe disse ser da claque do Benfica?

Já foi há uns anos. Fizemos a viagem tranquilamente e só no fim disse com muita simpatia que era dos No Name Boys. Por outro lado, há casos em que faço piadas por exemplo sobre o Benfica e durante dois ou três dias recebo mensagens de ódio e ameaças, mas acho que isso é coisa da internet. Com quem me cruzo nunca houve nada de agressivo. Aliás, até há uma certa identificação.

Como assim?

Numa viagem de carro daqui até Santa Apolónia é mais agradável conversar com um benfiquista durante meia-hora do que com uma pessoa que só gosta de música clássica, sobre a qual não tenho muito a dizer. A nossa conversa dura menos se for sobre Chopin do que se for sobre o Jorge Jesus.

Houve também uma vez em que recebeu um polvo na rádio onde trabalhava...

Foi um mal-entendido. Eu tinha feito umas piadas sobre o polvo encarnado na gala do FC Porto e passado uns dias aparece um polvo congelado lá na rádio. Até brinquei com aquilo. Seria uma ameaça? Veio a descobrir-se que foi mesmo uma oferta simpática de uma marca do polvo. E ficou muito bem à Lagareiro.

O seu marido, Daniel Leitão, é benfiquista. A convivência tem sido pacífica?

Mais ou menos. Depende dos jogos. [risos]

E o clube dos vossos filhos é negociável?

Combinámos que nenhum dos dois poderia influenciar as crianças. Achámos mais justo cada um escolher por si. Foi assim connosco. O pai do Daniel é do Sporting, ele saiu do Benfica. O meu pai é do FC Porto e o meu irmão é do Benfica. Ninguém me tentou doutrinar. Acho que deve ser assim em tudo: as pessoas devem escolher por si se são batizadas ou não, se são de direita ou de esquerda... No futebol somos meio tribalistas, mas serve também para sermos primitivos numa área específica da vida e só ali. Se me comportasse na vida como no futebol eu seria insuportável. Fico louca durante 90 minutos e tenho muito mau perder. Identifico-me completamente com o Sérgio Conceição. Não tenho superioridade moral para apontar o dedo, porque eu sou igual. 

Algum jogo em especial em que isso se tenha notado?

Quando estava grávida chorei naquele canto estupidamente cedido pelo Herrera, nos descontos, que deu um golo do Benfica [1-1, na época 2016/17]. E nem foi uma derrota! O Daniel disse-me «por favor, isso até vai fazer mal ao bebé». Mas eu chorei e fui-me embora. Foi das poucas vezes em que nem vi o fim do jogo. Aquilo mexe-me com os nervos.

Euforia também tem havido, não?

Adorei quando na época seguinte o Herrera marcou na Luz [1-2, 2017/18]. Além da explosão de alegria, do golo que daria o campeonato ao FC Porto, festejei ainda mais quando reparei naquela espécie de redenção dele. Gostei também de ver agora o Sérgio Oliveira, após uma semana em que foi muito atacado por mandar uma boca aos sportinguistas, a dizer que para eles empatar com o FC Porto era como ganhar a Champions. Tentaram rebaixá-lo e teve muita graça passado uns dias ele marcar o golo decisivo contra a Juventus do Ronaldo. Às vezes, parece que está escrito. A própria final do Euro 2016, que Portugal venceu, foi um pouco assim: o herói lesiona-se e depois acabamos por ganhar. Ou esta história arrepiante do Quintana, em que o Rui Silva marca o golo do apuramento com o braço em que tem o rosto dele tatuado.

Há momentos que valem tanto como uma taça?

Esta passagem do FC Porto em Itália, eliminando a Juventus, por exemplo. Claro que adoraríamos vencer a Liga dos Campeões, mas não precisamos dessa vitória final para que aquele momento valha só por si. Eu ainda me lembro dos golos do Jardel que o meu pai festejou frente ao Milan. Se os meus filhos não estivessem a dormir naquele dia do Juventus-FC Porto, iriam lembrar-se mais tarde da figura que a mãe fez a deslizar pela sala quando o Sérgio Oliveira marcou o golo. Quer ligassem a futebol ou não, quer fossem do FC Porto ou de outro clube.

Concorda que o desporto é terreno fértil para argumentos incríveis?

Festejo muito qualquer golo do FC Porto, nem que seja marcado com o rabo, mas quando isto envolve uma história com princípio, meio e fim isso aguça o meu lado de guionista. Também gosto muito de um 5-0 ao Benfica, como aconteceu com o Villas-Boas contra o Jorge Jesus... O desporto tem este lado incrível de fazer acontecer coisas que se fosse um argumento escrito por alguém diríamos: «Não é possível isto. Já foram longe demais.»

Este ressurgimento do Sporting também acha um argumento com graça?

Sporting tinha tudo para ganhar com o Bruno de Carvalho e o Jorge Jesus. Não ganhou, entre outros motivos, porque uma bola do Bryan Ruiz foi parar ao espaço. E agora, contra todas as expectativas, está prestes a ser campeão, depois de uma invasão à academia, com um presidente nada carismático, com o Ruben Amorim, que não tinha curso de treinador e que não estava pago, com uma equipa de miúdos… Ainda no outro dia estrearam um miúdo de 16 anos [Dário Essugo]… Parece já que é a gozar. [risos] O Coates no ano passado fartou-se de marcar autogolos e agora é o herói. Não há adeptos nos estádios e isso parece que também os ajuda. Foi afastado da Europa e da Taça de Portugal cedo… Enfim, foi uma tempestade perfeita e é uma história muito improvável. Aliás, acho que até pode acabar o campeonato sem derrotas, o que torna tudo isto ainda mais incrível. É uma história de superação engraçada, daquelas para contar aos netos. Gosto muito deste lado meio-novela do futebol.

Nesse sentido, para uma portista em Lisboa quem é mais difícil de aturar: benfiquistas ou sportinguistas?

Diria sempre que são os do Benfica, até porque tenho um em casa. Mas este ano os sportinguistas estão a revelar-se, talvez por ser muito tempo de espera acumulada. Eles têm potencial para ser mais chatos. As comemorações vão entrar para a história como as mais «pica miolos» para os rivais. Nós nem sabemos o que nos espera. Também têm vivido uma saga cheia de peripécias, tipo Senhor dos Anéis. E agora tem graça esta paga. O tipo de adepto do Sporting é muito convicto, sofre há muitos anos. O meu máximo de tempo sem ganhar foi quatro anos e foi penoso. Eles agora têm esse crédito todo para gozarem connosco.

Futebol tornou-se numa espécie de terreno sagrado para o humor?

Gozamos com política, com religião e com o futebol também devíamos de poder gozar mais livremente. A igreja tem mais abertura – e estou aqui a falar à porta da Rádio Renascença. O futebol continua a ser uma bolha à parte, também pelo comportamento de alguns adeptos. As pessoas reagem mal a qualquer piada sobre o seu clube. Eu já vi ótimas piadas sobre o meu. Não podemos deixar de fazer piadas sobre futebol.

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«Um café com...» senta o Maisfutebol à mesa com figuras eminentes da nossa sociedade, nomes sem ligação aparente ao desporto, a não ser a paixão. A música, a literatura, o cinema ou a moda enredados nas quatro linhas de conversas livres e descontraídas.

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