«Ronaldo safou-me de um guarda de cara tapada com uma arma na mão»

23 fev 2022, 09:17
Luís Pedro Nunes

«Um Café com...» Luís Pedro Nunes, escritor, colunista, comentador, fundador do Inimigo Público e, sobretudo, repórter em cenários de guerra. Uma conversa sobre futebol e viagens.

Luís Pedro Nunes é jornalista há trinta anos, comentador na SIC, colunista do Expresso, fundador do Inimigo Público, mas é sobretudo um destacado repórter em cenários de conflito. Começou a viajar em 1991, quando foi enviado à Roménia e regressou de lá com uma reportagem que foi Prémio Gazeta. Depois disso nunca mais parou.

Percorreu Angola de uma ponta à outra no reinício da guerra, em 1992, atravessou Moçambique antes das eleições, esteve no Iraque, no Haiti, na Guiné Bissau, na Tailândia, no Bangladesh, na Índia, no Níger, enfim, já perdeu a conta a tantas viagens. Até esteve na mítica volta ao mundo em 32 horas em avião Concorde, de 1992.

Luís Pedro Nunes tem uma carreira cheia de histórias, o que foi um pretexto para conversar com ele e perceber como ser compatriota de Ronaldo já o salvou várias vezes, incluindo numa situação delicada no Curdistão, ou como não esquece o vislumbre de felicidade que significou para ele ver as crianças a jogar à chuva na Guiné.

Qual é a sua relação com o futebol?

Não vejo jogos, mas também não me ausento do tema, como algumas pessoas fazem. Sei o essencial. É engraçado, as pessoas desconfiam muito de quem não gosta de futebol. Há um preconceito contra as pessoas que não gostam de futebol.

Há?

Sim, sim, há um preconceito. E não é não gostar de futebol, é não perder tempo a ver um jogo de futebol, que é o meu caso. Há um preconceito porque assume-se que há uma causa escondida para não ver jogos de futebol: ‘Ah, e tal, aquele quer-se armar em intelectual’.

Mas há muitos intelectuais que gostam de futebol.

Houve um movimento nos anos noventa para os intelectuais começarem a gostar de futebol. O Eduardo Prado Coelho e esses intelectuais todos criaram um discurso sobre futebol. Mas não foi só em Portugal, foi um movimento internacional, muito forte na Europa, na Argentina e no Brasil. Ficava bem falar de futebol. Mas hoje se alguém diz ‘eu não gosto’, a outra pessoa reage logo com desconfiança. ‘Hmmm, este gajo está armado’ ou ‘Então pá, estás armado agora?!’.

Mesmo em miúdo nunca ligou muito?

O meu pai era, e é, um grande sportinguista e tentou converter-me a gostar de bola. Eram outros tempos, eu sou de Ferreira do Alentejo e vim várias vezes ver o Sporting a Setúbal. Era uma altura em que era um clássico o Sporting perder em Setúbal. E eu ficava a olhar mais para as pessoas, interessava-me ver as reações delas. Então o meu pai dizia-me: ‘Pá, olha para a bola’.

Pois.

Eu vou arriscar-me a dizer uma coisa que é politicamente muito incorreta, mas acho que houve alturas em que ele até duvidou da minha própria masculinidade e da minha heteronormatividade, por não gostar de futebol.

Mas o seu pai?

Ali uma comunidade à volta do meu pai. ‘Um gajo que não gosta de bola, há qualquer coisa de errada com ele’. Nos anos 60 e 70, em Ferreira do Alentejo só havia dois temas: política e bola.

Entendo.

Há um fenómeno interessantíssimo quando se jogam Europeus ou Mundiais. Estou aqui na minha casa, que é sobre Lisboa, a escrever, num grande silêncio. Quando há golo, como a imagem não chega a todas as televisões ao mesmo tempo, há uma vibração que se sente até a explosão final. A mesma coisa quando ando de mota na cidade nessas alturas. Gosto muito de andar de mota por Lisboa quando Portugal joga em fases finais de Europeus ou Mundiais, porque a cidade está vazia. De repente há uma vibração do ar que se sente e depois é que se ouve o som dos gritos.

Quando era miúdo não gostava de jogar à bola?

Jogava, sim, jogava na rua, jogava na escola, jogava porque era o que se fazia. Mas nunca fui grande jogador. Como não era grande jogador de futebol, tive de arranjar outro desporto em que havia poucos a jogar e por isso eu era bom. Foi o basquete. Então dediquei-me mais ao basquete, ainda fui federado alguns anos, mas depois também deixei.

Ainda segue o basquete?

Não, não sigo.

Consegue entender porque é que o futebol é tão importante para tanta gente?

Entendo. Isso está tudo mais do que dito e analisado. Não vou dizer nada de novo. A mim o que me confunde é haver pessoas ao meu lado que se transfiguram no seu conceito de realidade e de verdade. Agora dizer que o futebol é tribal... Os desportos de campo são todos eles conquistas de terreno. Há o nosso terreno e vamos conquistando terreno ao adversário até colocar a bandeira lá do outro lado. É tudo uma reprodução das conquistas territoriais e do esmagamento do adversário. Há uma necessidade de alimentar um espírito de pertença e de defesa das nossas cores. E, depois, há outras pessoas que não necessitam desse espírito de pertença. Eu não tenho espírito de pertença nenhum. Ando de mota há anos e nunca fui a concentração motard. Fujo dessas coisas.

Voltando atrás, o futebol já o safou várias vezes, não é?

Deixe-me dizer uma coisa: é extraordinário ser contemporâneo do Ronaldo. A mim safou-me várias vezes de situações complicadas. Muitas vezes tive um guarda de cara tapada, com uma arma na mão, eu batia no peito e dizia ‘Ronaldo, Portugal, Ronaldo, Portugal’. Eles muitas vezes não sabem o que é Portugal, mas quando dizes Ronaldo as caras abrem-se de uma forma inacreditável. A minha password nos sítios mais longínquos era ‘Ronaldo’.

Lembra-se de algum episódio em particular?

Sim, sim. No Iraque, por exemplo. Num check-point na fronteira do Curdistão, um tipo estava mesmo a embirrar comigo. Estava superdesconfiado, não sabia o que era Portugal, achava muito esquisito o que eu estava ali a fazer, não ia com a minha tromba, com uma metralhadora na mão e eu completamente desesperado. Foi nessa altura que saquei do trunfo. Bati no peito: ‘Ronaldo. Portugal, Ronaldo’. E ele mudou completamente. Abriu um sorriso, deu-me uma palmada nas costas. Impressionante. Mas isto no mundo inteiro. O Ronaldo é o português global mais conhecido de sempre. Não há hipótese. Sabem quem ele é no canto mais recôndito do planeta.

Daí ter começado por dizer que «é extraordinário ser contemporâneo do Ronaldo»?

Sim, claro. Dizer ‘Ronaldo’ no muito inteiro provoca uma de duas reações. Ou as pessoas se derretem para ti, ou as pessoas dizem ‘I am Messi’. O fenómeno Ronaldo existe muito por nemesis. Eles devem muito ao outro. Mas cria-se sempre uma empatia, um desbloqueador, uma redução de tensão. Há situações de tensão em que a próxima palavra é decisiva: pode desbloquear ou enterrar. E nessas situações, sabia sempre que a cartada Ronaldo podia funcionar bem. ‘So, you like football? Ronaldo?’ Sais sempre vencedor. Ou ele gosta e começas a falar, ou não gosta, mas abriste uma estrada. Não há muitos temas que sejam assim tão neutrais.

E mais histórias dessas inúmeras viagens?

Vi uma coisa extraordinária no Bangladesh, em 2014. Havia por todo o lado, nas aldeias mais recônditas, bandeiras de Portugal. Bandeiras de Portugal!

Mas percebeu porquê?

Por causa do Ronaldo, obviamente. Era a altura em que se estava a jogar o Mundial, então as pessoas arranjavam um pano verde e encarnado e faziam uma bandeira de Portugal. Toda a gente metia à porta de casa a bandeira da seleção preferida. Mas havia sobretudo bandeiras de Portugal, da Argentina e do Brasil. Então chegavas a uma aldeia pequenina, isolada e lá estava uma bandeira.

Mas as pessoas nessas aldeias acompanham o futebol?

Sabem tudo de futebol. Tudo. E têm camisolas de Ronaldo. Os miúdos só têm uma camisola e a camisola que têm é a do Ronaldo. Ou do Messi.

Isso é curioso...

O Bangladesh é a Índia em muito pobre. Esqueça. É muito, muito pobre. Mesmo. Foi um país criado nos anos 70 para resolver o problema de umas comunidades muçulmanas, que não tinham ido para o Paquistão, os indianos não os queriam lá e arranjaram a pior zona do país para os meterem. Fica na foz de uns rios, a zona mais alta do país tem um metro e aquilo não tem hipótese, vai desaparecer daqui a dez ou quinze anos com o degelo dos Himalaias e a subida do nível das águas. Então é um ambiente impensável. A pobreza e a poluição... Tudo o que é poluição vai para lá. É lá que os navios são desmontados, é lá que despejam os detritos das fábricas de produtos químicos, a água cheia de arsénico, tudo o que é mau está lá. Mas tirando isso, havia bandeiras de Portugal, Brasil e Argentina por todo o país. Nós corremos o país todo com a AMI, que tinha lá uma série de obras, e vimos que havia bandeiras em todas as aldeias.

O futebol como fenómeno social é tremendo, não é?

O Alfredo Cunha tem uma fotografia, tirada quando estamos os dois à chuva, completamente lixados, em Bolama, na Guiné, que eu depois vi à noite e disse: ‘Isto é a felicidade’. Eu gosto muito da Guiné. É um país muito pobre, mas onde eu já tive várias vezes a visão da felicidade. Sei lá, o avô a dormir a sesta com o neto ao colo. São vislumbres que tu tens do que é a felicidade. Esta foto mostra os miúdos a jogar à bola, à chuva, completamente nus. Enquanto nós queríamos proteger-nos da chuva, estas crianças estão no maior desprendimento, a jogar à bola, totalmente nus. Não há coisa mais pura e mais bonita do que esta. Estão as três crianças no ar, com uma bola que é meia bola, numa total felicidade. O futebol é isto.

Mas é que é mesmo isso.

Eu tenho um pequeno vídeo que também guardei, num campo de refugiados no Iraque, com miúdos curdos. Estou a filmar com o telemóvel e começo a jogar à bola com eles, no meio da lama. Às tantas começam a tocar-me nas costas, virei-me: era um miúdo a dar-me o bloco de notas que me tinha caído do bolso enquanto jogava. Entretanto, pelo simples facto de ter começado a jogar à bola com eles, tinha uns vinte ou trinta miúdos curdos à minha volta, que queriam jogar comigo.

Tem ideia de quantas viagens já fez?

Não, eu não conto isso, porque são seguramente muito menos do que eu queria fazer e são seguramente poucas em relação às que vou fazer.

Ainda está com vontade de fazer muitas?

Esta coisa da covid estragou-me os planos. Mas há uma reportagem que quero muito fazer, já a tive várias vezes preparada e falhou sempre, que é descer o Rio Congo com os madeireiros. Assim que isto agora parar, vou voltar à estrada.

O que é preciso saber para enfrentar estas viagens complicadas?

A primeira coisa é ter um companheiro de viagem com quem te dês bem. O pior de tudo é passar 24 horas, durante sete ou quinze dias, com alguém a quem lhe custa acordar, ou ‘ai tenho fome’ ou ‘ai estou cansado’. Depois é preciso ser alguém que saiba gerir os silêncios, que não precise de estar sempre a falar. Eu e o Alfredo Cunha, por exemplo, até viajamos em sítios diferentes no avião. Já partimos cansados um do outro e depois temos várias viagens de 12 horas de camioneta, por aquelas estradas. Temos de saber gerir o silêncio. O resto é bom senso, que também vem com a experiência, claro. Não ser muito medrosos, nem demasiado temerários. Tens que saber gerir porque o excesso de audácia pode levar-te a situações complicadas. Há personalidades que não gostam de ser ameaçadas quando estão numa posição de poder. O importante é não deixar escalar as coisas, a preocupação tem de ser sempre baixar a tensão.

A comida e o cansaço não são uma preocupação nesses locais?

Esqueça. Esqueça isso. A preocupação é conseguir tomar um banho à noite, ter sempre água potável connosco e tentar tomar o pequeno almoço todos os dias. Tomando o pequeno almoço, só se volta a pensar em comida à noite. Se durante o dia aparecer comida, se virmos que nos vai trazer problemas, que a carne não esteve às moscas, então come-se. Mas eu e o Alfredo conseguimos estar vários dias só a fruta.

E tem muitas situações em que pensa ‘caramba, tive mesmo sorte ali’?

Não. Acontece-me mais aqui, na minha vida normal. Já tive tantos problemas a andar de mota ou a saltar de paraquedas...

Quando desmaiou durante o salto, não foi?

Por exemplo. Mas há tantas dessas. Ainda outro dia vinha do Algarve de mota, na autoestrada, vinha um bocado depressa, numa GS 1200 emprestada, aquilo tem um vidro, e ao dar um jeito no rabo bati com o capacete no vidro e o capacete ficou assim [Luís Pedro Nunes mostra a parte debaixo do capacete a subir para os olhos]. Fiquei sem ver nada, tudo escuro. ‘E agora? Acalma-te, acalma-te’. Travei, a mota a fugir para um lado e para o outro, lá consegui parar, tirei o capacete e estava mesmo colado ao rail central. ‘Estou inteiro, estou inteiro’. É um milagre como eu não morri. Um milagre! Aliás, estou cheio de placas metálicas de quedas que já tive.

Não deixa de ser irónico que uma pessoa que viajou pelo mundo inteiro tenha estado mais perto da morte em Portugal...

O problema é que estas viagens viciam. A adrenalina das grandes viagens é viciante. E então, quando estás em casa, precisas de andar à procura de adrenalina para compensares.

«Um café com...» senta o Maisfutebol à mesa com figuras eminentes da nossa sociedade, nomes sem ligação aparente ao desporto. A música, a literatura, o cinema ou a política enredados nas quatro linhas de conversas livres e descontraídas.

 

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