«O futebol em Portugal faz parte da identidade: ele é médico, é pai e é adepto do FC Porto»

29 set 2021, 09:40
Richard Zimler

«Um Café com...» Richard Zimler, jornalista, escritor e professor, que se radicou há mais de trinta anos no Porto e percebeu de imediato que o FC Porto é para as pessoas uma afirmação da qualidade da cidade.

O The Independent escreveu que tinha a faísca dos génios. Richard Zimler nasceu em 1956 nos subúrbios de Nova Iorque, é licenciado pela Universidade de Duke e mestrado por Stanford. Jornalista, escritor e professor universitário, radicou-se no Porto em 1990 e tornou-se um dos romancistas mais proeminentes em Portugal.

Multipremiado, encontra-se publicado em 23 línguas e foi bestseller em 13 países. No meio de tudo isto, guarda tempo para olhar com cuidado para o Portugal pelo qual se apaixonou, tendo destacado nas redes sociais uma notícia do Maisfutebol sobre a abertura do Salgueiros para receber as jogadoras que fugiram do Afeganistão.

Essa partilha abriu espaço para um contacto que permitiu, um dia depois, esta conversa à volta do futebol. Richard Zimler confessou que praticou a modalidade nos Estados Unidos e que chegou a ir ver muitas vezes o Cosmos de Beckenbauer ao estádio, mas também admitiu que se desencantou com o mercantilismo do futebol português.

A sua ligação ao futebol vem dos tempos em que jogava soccer nos Estados Unidos?

Exatamente. Nasci em 1956 e o futebol começou a ser praticado como modalidade desportiva logo a seguir nas escolas, no início dos anos 60. Nas aulas de Educação Física jogávamos todos os desportos: basquetebol, basebol, futebol americano e também futebol, o nosso soccer. Aprendíamos as regras, como se jogava, estratégias de jogo, enfim.

Mas não passava disso, de um desporto praticado nas aulas de Educação Física...

Temos de compreender que era uma modalidade nova. Nos Estados Unidos, como em quase todos os países, os media transmitem as ligas profissionais: basquete, futebol americano e basebol. São desportos com uma tradição enorme, de muitas décadas. Na altura não havia muitas informações sobre o futebol na Europa ou na América do Sul. Por isso a modalidade começou com as crianças, na escola. Os adultos ou jovens adultos não jogavam futebol.

Quando é que isso se dá?

Acontece progressivamente. Nos anos 70, quando estava no Liceu, jogava na equipa da escola e na altura já era um desporto popular.

Então continuou sempre a jogar futebol?

Sempre, sempre. Mas devo dizer que um grande impulso à popularização do futebol foi a criação da Liga Profissional no início dos anos 70, com a presença de grandes jogadores internacionais em final de carreira, como Franz Beckenbauer, Pelé, Cruijff. Curiosamente, os New York Cosmos jogavam perto de minha casa, por isso eu e os meus amigos íamos muitas vezes ver os jogos. Foi uma grande oportunidade de ver os grandes jogadores, já com alguma idade, é certo, nos nossos estádios. Isso deu uma grande popularidade à modalidade nos Estados Unidos.

Os Cosmos eram míticos nos anos 70...

Exatamente, mas não só os New York Cosmos, também os Los Angeles Aztecs, por exemplo. O que teve um enorme impacto porque pela primeira vez notícias sobre o futebol europeu começaram a aparecer nos jornais. Isso exerceu uma grande influência sobre nós.

E o que ficou dessas memórias?

Lembro-me que o nosso treinador de futebol no Liceu nos levou a Nova Iorque a ver a final do Mundial de 70 no Madison Square Garden. Brasil contra Itália, era a seleção de Pelé, Jairzinho, uma equipa fantástica. Era a primeira vez que jovens americanos ficavam apaixonados por futebol.

Pode dizer-se que o Richard Zimler era um bom jogador?

Eu era um bom jogador, mas não era tão bom como os filhos de emigrantes italianos, irlandeses ou alemães. Os melhores jogadores eram os filhos de emigrantes, porque jogavam futebol desde crianças. Lembro-me que num dos liceus que jogava contra nós havia dois gémeos alemães que eram muito bons, o que é normal, porque jogavam desde os quatro anos.

O futebol estava-lhes no sangue...

Eles eram espetaculares. Eu comecei a jogar com oito ou nove anos e não jogava todos os dias. Era muito melhor jogador de basquetebol. Muito melhor. Mas adorava jogar futebol. Sabia que não tinha tanto talento, mas jogava com muito orgulho na equipa do Liceu.

Que tipo de jogador é que era?

Era um bom atleta. Não era um bom jogador de futebol, mas era um excelente atleta. Compensava a falta de talento com as minhas capacidades físicas. Digamos que não era aquele tipo de jogador que pudesse fazer milagres.

É curioso que o futebol, que começou nos anos 60 nas escolas, ficou para sempre, porque ainda hoje se vê nos filmes americanos que é muito praticado por crianças...

É capaz de ser até o desporto mais popular entre as raparigas americanas. Mas um jovem que é excelente atleta, quando chega à faculdade, vai escolher o basquetebol, o futebol americano ou o basebol. Porque são desportos que lhe podem proporcionar uma vida maravilhosa. Um grande atleta de basquete, futebol americano ou basebol pode ganhar 40 milhões por ano. No futebol, não. Por isso os grandes atletas americanos não seguem o futebol, seguem outra modalidade.

Mas voltando aos filmes, até no Clube dos Poetas Mortos, que se passa num colégio de elites, há uma parte em que os miúdos jogam futebol.

Sim, sim, sim. É um desporto popular nas escolas e entre as crianças. Só não recebe a cobertura mediática das grandes ligas profissionais americanas.

Mas tem a vantagem de ser provavelmente o desporto mais democrático. Só é preciso uma bola.

É verdade. O futebol americano, por exemplo, é para pessoas de facto fortes fisicamente, muito musculadas. O basquetebol precisa de um cesto a uma certa altura. O futebol não. Uma menina de 10 ou 12 anos nos Estados Unidos, no Afeganistão ou em África pode jogar futebol em qualquer aldeia, desde que tenha uma bola. Faz duas balizas com pedras e começa a jogar com as amigas. É um desporto acessível para toda a gente e que convida todos a participar.

Saltando agora para 1990, quando chegou a Portugal percebeu de imediato a importância que o futebol tem para os portugueses?

Sim, qualquer pessoa percebe logo. Às vezes os primeiros vinte minutos de notícias na televisão são sobre futebol. É um país em que pode haver um colapso económico, pode haver uma pandemia, mas a primeira notícia é sobre o Sporting, o Benfica ou o FC Porto.

Foi um choque para si?

Sim, foi um choque. Mas o maior choque para mim foi que o futebol em Portugal fosse um negócio tão grande. Foi uma enorme desilusão. Percebi que os donos do futebol em Portugal eram pessoas, em grande parte, muito mal-educadas. Não todas, mas grande parte. Percebi também que era o dinheiro que dominava o desporto. Por exemplo, porque é que o Benfica, o FC Porto ou o Sporting são sempre campeões? Porque têm mais dinheiro. Fiquei desapontado com a falta de democracia no futebol português. Não gosto disso.

Não estava habituado a isso nos Estados Unidos...

Não, não estava. Os desportos americanos têm um processo de justiça que evita isso: o draft. Quem fica em último lugar na época passada, consegue escolher o melhor jogador da época a seguir. Isso tendencialmente nivela as equipas. É muito difícil uma equipa dominar sempre a NBA. Pode acontecer dominar por cinco ou seis anos, quando tem a sorte de conseguir um LeBron James ou um Kevin Durant, mas mesmo dominando não vai ser sempre campeã. Depois surge outra a substituí-la, porque conseguiu outro jogador fantástico.

Isso fez com que nunca criasse com o futebol português uma relação de grande proximidade?

É isso mesmo. Eu reconheço que Portugal tem jogadores fantásticos. Quando cheguei havia Figo, agora há Cristiano Ronaldo, obviamente, entre muitos outros. Por isso reconheço que Portugal tem jogadores maravilhosos, boas equipas, bons treinadores, uns mais educados do que outros, tudo bem, mas o facto de ser um negócio, o facto de estarem sempre as mesmas equipas na Champions, acaba por me afastar. Fico pouco interessado.

O desporto tem de ter uma série de valores que queremos ver na sociedade, não é?

É exatamente isso. Quero um desporto mais acessível, mais democrático, em que uma equipa dos Açores, de Faro ou de Évora pode conseguir um grande jogador e ficar no primeiro lugar. Qual é o problema disso? Mau é quando é o dinheiro que determina a qualidade de uma equipa.

Portanto neste futebol português não encontra razões para se apaixonar...?

Quer dizer, eu aprecio o talento. Eu vejo jogos na televisão e vejo os grandes jogadores. Nada me tira o prazer que eu tive em ver, por exemplo, o Hagi, que foi um jogador de quem sempre gostei. Adorava ver os jogos da Roménia só para ver o Hagi. Mas isso é um jogador, não é uma equipa, não é um campeonato. O que me leva a ver futebol são os jogadores, não esta ou aquela equipa.

E estando a viver há 30 anos no Porto, entende que o futebol é para as pessoas da cidade um meio de afirmação em relação a Lisboa?

É, sem dúvida. O futebol em Portugal cria uma identificação quase religiosa. Um adepto do FC Porto criou uma identificação para sempre. Ele é médico, é pai e é adepto do FC Porto. Ou pode ser funcionária numa agência de viagens, mãe, desportista e adepta do FC Porto. Faz parte da identidade individual das pessoas.

Mas o que eu estava a perguntar é se concorda que, para quem vive no Porto, o futebol é quase um meio de afirmação nacional?

Sim, concordo. Como segunda cidade do país, no Porto existe muito essa rivalidade com Lisboa. É uma coisa muito emocional, que deixa as pessoas ressentidas. Lisboa é a capital e as outras cidades, sobretudo o Porto, sentem-se menosprezadas e maltratadas em termos culturais, financeiros, enfim. Por isso, para as pessoas do Porto o FC Porto é uma afirmação da qualidade da cidade, da independência do Porto em relação a Lisboa. É quase um grito de ‘não precisamos de Lisboa para avaliar as nossas capacidades porque somos bons’.

O futebol como fenómeno social é muito curioso, ou não?

Sim, o futebol é um tema fascinante. É um fenómeno enorme cultural, social e economicamente. Um aluno meu na faculdade quis fazer uma tese sobre a influência do futebol nos media: o que caracteriza a cobertura que é feita nos jornais nacionais, nos jornais desportivos, nas televisões, do futebol. Eu achei que era um tema muito interessante e muito pertinente.

E acha que a influência é do futebol sobre os media ou dos media sobre o futebol?

Ambos. O futebol tem influência sobre os media não só por ser um fenómeno social, cultural e popular, mas pelo poder económico enorme. O futebol gera milhões e milhões de euros. Por isso vai ter um efeito muito grande sobre a política e sobre a cultura. Lembro-me muito bem da querela entre Rui Rio e o FC Porto. O Rui Rio provavelmente caiu em popularidade, porque desafiou o FC Porto e é um risco desafiar o futebol. São poucos os políticos que se atrevem a fazê-lo.

Entretanto, e para terminar, ficou sensibilizado com a atitude do Salgueiros de abrir as portas da equipa feminina às refugiadas afegãs?

Fiquei muito comovido com a atitude do Salgueiros. O desporto pode ter um papel muito importante na sociedade. Por exemplo, eu nos Estados Unidos sou adepto dos San Antonio porque são uma equipa que sempre contratou jogadores estrangeiros: lembro-me rapidamente do argentino Manú Ginobili ou do francês Tony Parker. Para além disso, o treinador dos San Antonio falava de política, criticava muito Donald Trump. Obviamente que uma pessoa mediática como ele expor as mentiras de Donald Trump era algo que eu considerava importante. O Salgueiros teve uma atitude que vai muito além do futebol: ofereceu refúgio a uma equipa de futebol feminino do Afeganistão. Foi um gesto muito nobre e o futebol pode desempenhar esse papel, pelo poder que tem.

«Um café com...» senta o Maisfutebol à mesa com figuras eminentes da nossa sociedade, nomes sem ligação aparente ao desporto, a não ser a paixão. A música, a literatura, o cinema ou a moda enredados nas quatro linhas de conversas livres e descontraídas.

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