«No futebol olhava em volta, um bocado a essência do que sempre fiz»

25 out 2019, 09:04
Sérgio Godinho

Sérgio Godinho é o convidado para um café com o Maisfutebol. Uma conversa que parte do futebol e vai por aí fora. Com muitas histórias. E canções pelo meio

«Um café com...» senta o Maisfutebol à mesa com figuras eminentes da nossa sociedade, nomes sem ligação aparente ao desporto, a não ser a paixão. A música, a literatura ou o cinema enredados nas quatro linhas de conversas livres e descontraídas. O segundo convidado é Sérgio Godinho. Críticas e sugestões para pcunha@mediacapital.pt ou bmmr.externo@medcap.pt 

Poeta da palavra e da canção. Autor, ator, escritor, muitas vidas numa vida que torna mais ricas as nossas. Sérgio Godinho, o viajante que foi à procura de mundo e encontrou tanto, que viveu o maio de 68 em Paris, que foi preso duas vezes no Brasil, esteve sete anos sem poder voltar a Portugal e pelo meio escreveu canções que foram armas de resistência e esperança em novos ventos. E tantas outras que são referências de sempre para tantos que cresceram a ouvir e a cantar um nome maior da cultura portuguesa. Que continua a compor, a escrever e a cantar, aos 74 anos. No início deste ano editou o segundo romance, «Estocolmo», há poucos dias ganhou o prémio da Sociedade Portuguesa de Autores com o álbum «Nação Valente».

Esta é uma conversa com Sérgio Godinho que tem como ponto de partida o futebol. A meio ele junta-lhe também o hóquei, paixão de miúdo. E trauteia umas canções. E conta tantas histórias. O sportinguista do tempo dos Cinco Violinos que é também «um bocado salgueirista», o miúdo que ia às Antas e se perdia a olhar em volta, as conversas com o pai sobre Yustrich e Hernâni. O futebol que ficou «entre paredes» no tempo que passou fora de Portugal, o regresso e enfim a ida a Alvalade. E os bocadinhos de parede que arrancou depois do concerto de despedida do velho estádio do Sporting, «um bocado como aquela coisa do Muro de Berlim». Mais a experiência de comentador na televisão, ou o futebol com Chico Buarque. E o Sporting que não anda bem, mas ele não quer falar muito nisso. 

Começou a ver futebol no Estádio das Antas, mas tornou-se adepto do Sporting, é assim?

A história do interesse pelo futebol e do amor pelo futebol vem de garoto. Eu sou do Porto mas não se pode confundir um portuense com um portista… Tenho um irmão mais velho que era do Sporting e o meu pai era sócio do FC Porto. Mas nunca o meu pai interferiu com nenhuma das nossas preferências clubísticas. Não fazia parte do seu esquema mental. Aquelas coisas de inscrever um bebé como sócio do clube para mim são completamente estranhas e nem sequer acho assim grande piada. Era no tempo dos Cinco Violinos e o Sporting era a equipa que tinha uma preponderância grande. O Sporting e o Benfica é que eram os clubes mais importantes. Mais tarde o FC Porto, graças ao Pedroto e ao Pinto da Costa e a toda essa estrutura, ganhou uma importância a certa altura até hegemónica.

Como são as primeiras memórias de futebol?

Sempre gostei de futebol. Nunca tive assim um jeito especial para jogar. Quando jogava, jogava a guarda-redes porque eu era bastante ágil, tinha bons reflexos e não tinha medo, digamos. Na verdade, nessa altura o que eu jogava, ainda que nunca em termos de clubes, era hóquei em patins. Eu morava muito perto do Infante de Sagres, do pavilhão do Infante de Sagres, que era uma equipa de referência no hóquei. Naquela altura o hóquei em patins tinha muita importância. Aliás, um dos Cinco Violinos, o Jesus Correia, tinha sido também jogador de hóquei, da seleção nacional. Jogava no Paço d’Arcos com o primo, que era o Correia dos Santos. Ainda agora fui convidado pela Câmara do Porto para a inauguração do novo Pavilhão Rosa Mota, que vai ser um local de espetáculos todo renovado. Lembro-me que íamos ao pavilhão, que tinha sido Palácio de Cristal e era o Pavilhão dos Desportos. Nós jogávamos então aquilo que no futebol se chama peladinhas... Éramos sócios, íamos para lá à tarde jogar. Tinha stick e patins meus, tinha bola, e juntávamo-nos para jogar.

E as idas ao futebol, começam nas Antas?

O meu pai tinha alugado com vários amigos um camarote no estádio das Antas. Era um espaço de cimento, como se fosse um quadrado de cimento onde havia cadeiras de pedra. Estávamos ali à vontade, não era aquela coisa de estar com aquela almofadinha que depois quando o jogo não corria bem todos atiravam para o relvado… Ia com o meu pai, com nove, dez anos. Via os jogos dali. Sempre fui muito curioso. Interessava-me pelo jogo, mas interessava-me também ver a reação das pessoas. Olhava em volta. É um bocado a essência daquilo que eu sempre fiz, criando. Seja nas canções seja na ficção narrativa, a que agora estou bastante dedicado também. Que é olhar à volta. Olhar para as reações das pessoas.

O que é que ficou desses tempos?

No caminho de volta conversava com o meu pai sobre os jogos. O meu pai era do tempo do Yustrich treinador do FC Porto. O Yustrich era um tipo assim como o Scolari, sargentão. Também era brasileiro. Era um ditadorzinho, mas punha ordem naquela equipa. Tinha muitos conflitos com o Hernâni, que era um jogador muito bom, mas causava bastantes conflitos. O meu pai dizia: «É um insurrecto! Aquilo é um insurrecto!» Tenho boa recordação disso. Depois o meu pai deixou de ir porque ficava muito emocional, empolgava-se muito com o jogo. Então um dia assustou-se e pensou que podia ter uma coisa de coração. Achou que não valia a pena estar a sacrificar a vida, a família, o trabalho, e tomou a decisão de não ir mais ao futebol. Eu tive pena, mas compreendo.

Mas foi esse lado humano em volta do jogo que o cativou desde o início, não foi?

Sim. Eu fui sempre muito curioso. No Porto as pessoas também são muito verbais, para o melhor e para o pior. Também há muita grunhice e muita irracionalidade. Uma vez estava a ver um jogo e estava um gajo ao pé de mim a gritar «É fora de jogo!». E eu para ele: «Como é que é fora de jogo? Ainda não está no meio-campo contrário.» «Ah, pois é.» Eu até aos sete anos vivi muito perto do campo do Salgueiros. Campo Engenheiro Vidal Pinheiro. Não ia aos jogos, mas achava muita piada à cena do Salgueiros. Até tenho isso na canção «Porto Porto», que está no «Pré-histórias». É assim uma espécie de retrato múltiplo, mais ou menos pícaro do Porto, e eu falo «Vi três mulheres em prantos, cobrindo o rosto e o corpo com negros mantos»

«Pensei, devem ter perdido

pai, marido ou companheiros

responderam ‘qual marido,

quem perdeu foi o Salgueiros’»

 

As mulheres, as salgueiristas, iam muito ao futebol. E eram tão verbais e tão truculentas como os homens. Eu achava piada e dizia, por piada: «Sou sportinguista e também um bocado salgueirista.»

Chegou a ir ver jogos do Salgueiros?

Muito pouco, porque aos sete anos foi quando os meus pais mudaram para a casa onde vivi até aos 20.

Mas essa afinidade com o Salgueiros ficou, apesar de ser muito miúdo.

Porque era pitoresco. E lá está, é aquela coisa de gostar dos pormenores humanos. E o futebol tem muito disso.

Em miúdo jogava futebol na rua?

Jogava. Eu vivia numa zona perto de onde é agora o museu de Serralves, na Gomes da Costa. Nessa altura havia muito poucas casas e havia muito campo. Nós íamos para lá jogar à bola. Mas nunca fui um praticante de futebol. O hóquei preenchia-me mais, porque patinava bem, e tal. Ainda hoje gosto de ver hóquei. É uma maluqueira, para cá e para lá… Uma rapidez incrível.

Como é que nesse tempo, vivendo no Porto, se seguia o Sporting?

Era muito diferido. Nem havia televisão. A televisão em Portugal começou quando eu tinha 12 anos. Isto hoje em dia é quase incompreensível para os meus netos, ou até para os meus filhos. Mas não havia. E, mesmo depois de aparecer, durante um tempo o meu pai não queria televisão em casa. Eles liam muito, ouviam música e diziam que destruía a vida familiar. Mas deixavam-me ir a casa de uns primos afastados, um dos quais é o Tozé Brito, que viviam mesmo ali ao lado. Íamos ver o Bonanza e mais uns programas dessa altura. As notícias de futebol iam chegando pela rádio ou pelo jornal diário que o meu pai comprava sempre. Era o Primeiro de Janeiro. Depois também colecionávamos os cromos dos jogadores. Primeiro até era em rebuçados. O rebuçado era um cromo. Quando eu era muito pequenino comprava-se rebuçados, depois desembrulhava-se, esticava-se e era um jogador.

Qual era o cromo mais valioso?

Para já, os Cinco Violinos. O Travassos era o mais mediático. O Peyroteo também. O Jesus Correia também por duas razões, depois o Albano e o Vasques.

E quando é que foi pela primeira vez a Alvalade, foi muito mais tarde?

Só fui a Alvalade quando voltei a Portugal depois do 25 de abril. E só no princípio dos anos 90 é que me fiz sócio. Recebi agora o cachecol e o emblema dos 25 anos. Tenho um grande amigo que é sportinguista desde miúdo que tem lugar cativo há muitos anos, ao lado do irmão. Às vezes o irmão não vai e ele convida-me para ir, está assim num lugar privilegiado. Mas eu vou pouco ao estádio. Às vezes é mesmo por razões de garganta. Muitas vezes é inóspito, então no inverno nem se fala. Em certos consulados de certos presidentes chegaram a convidar-me para ir para o camarote, mas não me apetece confraternizar a esse nível. Nada contra o facto de pessoas aceitarem…

Deixou Portugal em 1965, esteve nove anos fora. Viajou, compôs, viveu muitas vidas, como já disse. O futebol tinha algum lugar aí?

Não, perdi a ligação ao futebol. Perdi mesmo.

A decisão de sair teve a ver com consciência política e com a conjuntura em Portugal?

Na minha família existia essa consciência política, até porque os meus pais, sobretudo o meu pai, era completamente contra o Salazar. Ele vinha de famílias republicanas. O avô dele, o Miguel Verdial, foi quem fez a proclamação do 31 de janeiro (de 1891). Era o «Ator Verdial». Era ator, tinha uma voz sonante. Foi a primeira tentativa de instauração da República. Uma tentativa falhada, foi deportado. A minha avó foi das primeiras mulheres a falar em jantares republicanos. Havia ali uma consciência de valores republicanos e uma consciência política em minha casa. A certa altura pensei: «Esta vida não é para mim. Quero experimentar coisas.» Acima de tudo eu queria viver autonomamente. Tinha um bom ambiente familiar, até culturalmente. A minha mãe tinha o curso de piano, tocava muito bem. E eram grandes leitores. Não saí por descontentamento. Mas precisava de ter mundo, de conhecer outros mundos e de viver sozinho. Fiz-me à vida. Ao fim de dois anos decidi que a vida académica não era para mim e saltei fora. Quando saí, tinha feito a inspeção militar mas estava adiado, porque eu estava a estudar. Quando me chamaram para a tropa, eu não respondi e tornei-me refractário. Não me passava pela cabeça ir lá para as colónias fazer a guerra colonial. Não tinha nada a ver comigo. Se ficasse cá também desertaria e ia-me embora. Não havia objeção de consciência nessa altura…

Começou por ir para a Suíça, depois Paris e o Maio de 68…

Estive dois anos na Suíça, ainda a estudar psicologia, depois andei a vagabundear. Trabalhei num barco, fui à Jamaica... Aterrei em Paris no fim de 1967, vivi lá quase seis anos. Vivi o maio de 68 muito envolvido. Dormi várias noites na Sorbonne, apanhei com gás lacrimogénio nas manifestações… Fiz vários trabalhos de sobrevivência e depois entrei para o «Hair», o musical, onde estive quase dois anos. Fiz vários papéis, cantava e representava. Aquilo deu-me muita estaleca de palco. A certa altura o meu passaporte caducou. Vivia sem passaporte, depois comecei a viver com a mãe da minha filha mais velha e resolvemos ir para a Holanda porque eles davam um passaporte de exilado. Mas era muito restritivo. Depois soubemos que se fossemos para o Canadá e nos casássemos me davam os papéis todos. Eles na altura tinham 20 milhões de pessoas. Precisavam de gente.

E no meio a música…

Entretanto eu tinha começado a compor a sério e gravei os meus dois primeiros discos, o «Sobreviventes» e o «Pré-histórias», em Paris. Foram mandadas para cá as fitas, houve uma editora que não se interessou e outra que se interessou muito, que era a mesma do José Mário Branco. Começámos ao mesmo tempo e ainda fomos parceiros em várias canções. O Zeca Afonso claro que era um bocado o pai de nós todos. Foi sempre alguém muito estimulante. Conheci-o em Paris.

Tinha consciência do impacto que a sua música estava a ter em Portugal?

Aqueles foram discos importantes cá. Eu recebia ecos, lia jornais…

Estava no Canadá quando foi o 25 de abril…

Sim. Estava a percorrer o Canadá numa caravana, estava em Vancouver. Pude finalmente voltar. A minha filha Joana estava para nascer, nasceu em julho de 1974. E voltei definitivamente a Portugal em setembro.

Voltando ao futebol, onde ficou no meio de tudo?

Enquanto estive fora o futebol ficou completamente entre paredes. Sobretudo no Canadá, onde nem sequer conhecia portugueses. Quando voltei é que me pus a par. Só nessa altura é que ouvi falar por exemplo do Damas.

E acompanhou de alguma maneira momentos mais relevantes, como o Mundial 66?

No Mundial 66 estava em Portugal. Eu estive nove anos fora, mas sete sem poder de facto entrar em Portugal. Lembro-me de ter seguido o Mundial 66 em Ofir, onde os meus pais tinham casa de férias.

Já falou do «Porto Porto», mas há mais futebol na música do Sérgio Godinho. O «Espectáculo», naturalmente.

Sim. «Quando tu me vires no futebol…» Arranca assim, embora depois vá para outras coisas.

E há um «Viva o futebol», na banda sonora da série infantil «Amigos do Gaspar».

E há um «Viva o futebol», na banda sonora da série infantil «Amigos do Gaspar».

Ah sim, num dos episódios. «Viva o futebol». Uma coisa menor, mas ainda está aqui na memória.

(Canta)

 «É golo, é golo!

Sempre com a bolinha rente ao solo

É golo!

A vitória está na mão»

A propósito de música e futebol, o Chico Buarque é um amador de futebol inveterado e arranja maneira de organizar jogos sempre que pode. Alguma vez jogaram juntos?

O Chico tem um campo de futebol dele em Jacarepaguá, fora do Rio de Janeiro. Ele ajudou-me muito da segunda vez que fui preso no Brasil. E levou-me lá ao campo dele duas ou três vezes, nos anos 80. Uma vez apareceram lá o Zico e o Sócrates. Vejo duas pessoas a chegar e eram o Zico e o Sócrates!

E o Sérgio, também jogava?

Eu não, ficava a beber cerveja… Depois, quando o Chico esteve cá em 2006 organizou-se um jogo entre músicos portugueses e brasileiros. Eu não joguei, era o treinador da equipa portuguesa… Deu origem a um documentário, «Meu caro amigo». Não me lembro quem ganhou, acho que foram os brasileiros.

Chegou a ser comentador de televisão, no Trio de Ataque. Como foi essa experiência?

Foi um convite um bocado fora do baralho. Quem se lembrou de mim foi o António Pedro Vasconcelos. Nessa altura era o António Pedro que representava o Benfica e o Rui Moreira o FC Porto. Achei um bocado estranho, porque eu gosto de futebol, mas não sou especialista. Resolvi aceitar. Não me arrependi, mas saiu-me do pêlo. Estive uns meses até compreender que não tinha vida para aquilo. Era gravado no Porto e era muito simpático, muitas vezes íamos jantar, também com os responsáveis do programa, depois geralmente íamos beber um copo. Mas nessa altura não havia esta possibilidade de se voltar atrás na box, na televisão. Então, ao fim de semana muitas vezes tinha concertos e não conseguia ver os jogos. Era um trabalho acrescido. Ia para o Porto, no dia seguinte só voltava à tarde porque ia almoçar com a minha mãe. Ocupava-me muito tempo. E eu sabia de facto menos de bola do que aqueles dois. Depois há uma linguagem técnica que é muito específica. Eu achei que não dava. Não podia. Gastava-se a semana toda naquilo, gastava-se o caldo em provas.

Voltou a ser «apenas» mais um adepto do Sporting…

Sempre segui depois o Sporting. Estive no concerto que foi o último ato em Alvalade, que teve uma data de gente. Veio o Caetano Veloso, ele tinha acabado de gravar comigo o «Lisboa que amanhece», que está no «Irmãos do meio». Cantámos essa e outras músicas nesse concerto. Foi o último ato antes de eles deitarem o estádio abaixo. Fomos para o camarim e arrancámos bocadinhos da parede, alguns de nós. Bocadinhos que estavam um bocado destruídos, um bocado como aquela coisa do Muro de Berlim…

Depois também fui ao primeiro jogo em que o Sporting ganhou ao Manchester United, o jogo do Cristiano Ronaldo. Houve aquela história de que o Alex Ferguson disse «I want this boy.» É um bocadinho falso, já estava debaixo de olho. E foi a melhor coisa que lhe aconteceu, ir para Manchester e ter o Alex Ferguson como paizinho.

Portanto, assistiu ao princípio de tudo para o Cristiano Ronaldo…

O jogo do Ronaldo era muito diferente. Aquela coisa de trocar as pernas... É um jogador extraordinário. Não consigo dizer se ele é melhor que o Messi ou se o Messi é melhor porque eles são muito diferentes. Posso dizer que gosto mais do jogo do Ronaldo porque é um jogo aberto e está-se a ver a geometria. E depois ele tem aquela força mental, quando há um jogo especial parece que leva a equipa atrás. Não me esqueço do jogo com a Suécia, em que nos conseguimos apurar para o Mundial, ele parecia um motor a levar a equipa. É uma coisa inacreditável. Agora, o Messi é génio, com a bola nos pés. E depois tem aquele momento do remate que é exatamente aquele momento. A inteligência do corpo, a inteligência do movimento.

Esse lado intuitivo, inato do futebol, tem a ver também com o talento para a música? Isso de ser algo que está lá, ou se tem ou não se tem.

Tem. Depois é trabalhado, como também no futebol. Mas acho que há um dom. As pessoas nascem também com isso. Depois não chega, tem que haver muito trabalho. Nas canções é um trabalho de ourivesaria, de relógio. Tens que compor as peças todas, porque estás a lidar com duas formas de expressão: as palavras e todas as suas regras e as métricas e a música com as suas regras também. Mas sim, tem de haver uma intuição à partida. E ela também existe no desporto. Há jogadores que se distinguem pelo talento natural. Por exemplo, gosto muito de ver o Bernardo Silva a jogar. E nem sequer digo aquela coisa «Tem o defeito de ser benfiquista». Isso não me interessa. Nunca tive esse género de atitude. O jogador é bom, é bom.

Consegue ter esse distanciamento sempre? Ou sofre muito com jogos do Sporting?

Sofro com o Sporting por inerência… (Ri-se) Mas depois esqueço-me logo. Irrita-me quando vejo os gajos a jogar mal. Claro que me irrito. Sobretudo naquelas alturas em que todos os passes saem errados, pá. Mas esta equipa, infelizmente, não me parece ter estofo que chegue. Esta eliminação na Taça de Portugal é uma vergonha, não pode ser. Caramba, era o detentor do troféu. Não vi o jogo, felizmente. Nesse dia fazia 50 anos uma amiga e estive num jantar. Só soube no fim. O Sporting anda numa crise… Já para não falar daquela coisa mesmo horrível que aconteceu ao Sporting com o Bruno de Carvalho. É consensual que o Bruno de Carvalho começou bem e teve aspetos positivos. E depois, pá, suicidou-se. E queria suicidar o Sporting também. Foi tão pernicioso que ainda hoje estamos a apanhar os cacos disso. E houve sorte pelo facto de apesar de tudo tipos como o Bruno Fernandes terem voltado.

O ataque à Academia, como é que um sportinguista olha para aquele momento?

É uma página negra, mesmo. Primeiro fiquei de boca aberta: «Isto aconteceu mesmo?» Depois as reações do Bruno de Carvalho, tudo. Aquilo estava a ser preparado. Não especificamente aquilo, mas o clima estava ali. Enfim, não vou falar do presente. Prefiro não falar, está um bocado em movimento. É muito fresco, isto do Varandas e das claques, enfim. Não interessa estar a detalhar sobre isso, mas não estou nada contente com a situação do Sporting.

Como olha para tudo o que vai para lá do jogo?

Claro que há coisas no futebol de que eu não gosto nada. Gosto do jogo.

Coisas que não seduzem e não fazem falta, como canta o Sérgio Godinho?

Exatamente. Às vezes não me seduz. Ou geralmente não me seduz. Por isso tenho algum distanciamento. Sempre tive um bocado tendência a ter. Mesmo em termos políticos, nunca fiz parte de nenhum partido. Não era capaz, não está no meu código genético. Não sou feito disso. Há gente boa e honesta em vários partidos, não é isso que estou a questionar. E considero-me de esquerda. Mas sempre tive um pé dentro, mas também um pé atrás, no sentido de ver as coisas de uma maneira mais distanciada. De não ser levado só pelas emoções e pelo sectarismo, já para não falar do fanatismo. Isso vale para o futebol como para a política. Como para a vida, para o meu olhar sobre a vida. Não gosto de aderir acriticamente às coisas. Gosto de pensar. Mas continuo a gostar muito do jogo, tenho os canais desportivos. Na época passada comprei no próprio dia a Eleven, naquele dia em que a Juventus deu a volta ao resultado com o At. Madrid, aquele jogaço do Ronaldo. Comprei, porque pensei: «Quero ver este jogo.»

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