«Um café com…» Marante, músico popular que chegou a fazer carreira como jogador do Salgueiros
O país conhece-o como músico popular, que anima bailes de norte a sul, mas houve tempos em que Marante revelava o seu talento com a bola nos pés, bem antes de o fazer com um microfone na mão.
Tudo começou quando aos 15 anos foi prestar provas ao Salgueiros. Ficou logo em Vidal Pinheiro, onde haveria de tornar-se profissional. Não sem antes alguns percalços pelo caminho, de uma lesão que o impediu de ir a um Europeu de juniores representar Portugal à Guerra Colonial em Angola, de onde voltou com um troféu na bagagem.
Aos 73 anos, o vocalista do grupo Diapasão, recebe o Maisfutebol em sua casa, em Fânzeres (Gondomar). Tira um café, mostra fotografias dos tempos em que era um temível camisola 7 e desfila memórias, de quem jogou com campeões europeus, mas também nos Distritais.
Confesso sportinguista, ao contrário de toda a família que prefere o azul e branco, Marante dá voz até a um tema de apoio ao FC Porto. Tudo com «fair-play» e um sorriso afável que faz a conversa fluir pela tarde fora.
MAISFUTEBOL: Antes da música, o Marante mostrou o seu talento com a bola nos pés. Como é que se tornou futebolista?
MARANTE: Nasci em Barqueiros, perto de Mesão Frio, vim para o Porto aos 5 anos com a minha irmã e os meus pais e fomos viver para Campanhã. Éramos uma família pobre, a minha mãe era costureira e o meu pai trabalhava na CP. Deixei de estudar depois de completar a 4.ª classe e, para ajudar, comecei a trabalhar. Primeiro numa casa que vendia roupas, depois como litógrafo, mais tarde numa fábrica de bilhares. Pelo meio, ia entrando nuns torneios de futebol de cinco. Até que aos 15 anos decidi ir prestar provas ao Salgueiros. Fiquei logo!
Jogava em que posição?
Vou primeiro dizer-lhe o número da camisola: Cristiano Ronaldo, Cantona, Beckham, George Best…
Era o número 7?
Era o 7! Extremo-direito.
Que tipo de jogador era?
Tinha tudo. Era rápido, tinha drible, dominava e chutava bem tanto com o direito como com o esquerdo...
E aí começou a destacar-se no Salgueiros?
Ainda nem tinha idade e o Monteiro da Costa – ex-jogador do FC Porto –, que já era treinador dos juniores, quis subir-me de escalão. Teve de esperar um ano e fomos campeões regionais. Até que fui convocado para a seleção nacional de juniores para integrar o grupo que iria disputar o campeonato da Europa, na Bulgária.
Como foi essa experiência?
Acabou mal. Fui no comboio Foguete para Lisboa numa comitiva onde eu era o único do Salgueiros; iam mais uns miúdos do Leixões e do FC Porto, como o Pavão, que era um jogador fantástico – não fosse a tragédia que lhe aconteceu e poderia ter sido um dos melhores médios da Europa.
Acabou mal porquê?
Levei uma pancada no joelho num treino. Lesionei-me e acabei por ser substituído pelo Lobo, do Belenenses. Ainda me lembro do treinador dessa seleção, o «velho capitão» Mário Wilson, e do médico a baterem à porta do meu quarto… Pouco depois, tive de ir cumprir o serviço militar.
Foi combater para o Ultramar?
Com 18 anos fui mobilizado para Angola. Estive no mato 14 meses, antes de ser transferido para Luanda. Nessa altura, voltei a ter contacto com o futebol. Inscrevi-me na equipa do Cazenga e jogámos no torneio da cerveja Cuca, que era uma coisa em grande, com muitas equipas. Chegámos à final no Estádio dos Coqueiros, ganhámos por 7-2 e eu fiz dois golos.
Quando voltou a Portugal como é que se tornou profissional de futebol?
É uma história curiosa. Fui ver um jogo de preparação entre o Salgueiros e o Boavista, ao Estádio do Lima, houve um diretor que me reconheceu, chamou o mister e ao contar-lhe que ganhei um torneio em Angola ele pergunta-me: «Estás bem fisicamente? Então, vai-te equipar.» Foi assim. Entrei nesse jogo e fiz dois golos. No fim de semana seguinte, fomos jogar ao Estádio do Mar, com o Leixões. Chovia torrencialmente… Entrei e fiz outros dois golos. No fim desse jogo, assinei contrato como profissional, para jogar na 2.ª divisão. 10 contos por um ano – 50 euros. Aproveitei esse dinheiro para casar.
Nessa carreira no Salgueiros teve contacto com alguns grandes nomes do futebol nacional.
Joguei lá no fim da década de 60 e inícios de 70 e nesse período fui treinado por vários ex-jogadores do FC Porto: Monteiro da Costa, Barrigana, Reboredo, que era argentino, Júlio Teixeira, Francisco Batista. Tive também o prazer e a honra de jogar com dois campeões europeus, o Germano e o Santana, que tinham jogado no Benfica. Ao lado deles só tínhamos de aprender. Eram as «ratazanas» – como chamávamos aos jogadores com mais experiência. Houve uma vez num treino em que eu, que era rápido, estava a tentar desmarcar-me dele num livre e, assim que a bola é batida, ele pisa-me o pé. Queixei-me, claro. E ele diz-me baixinho: «Tens de aprender, rapaz.»
O Marante era um jogador disciplinado?
Uma vez cortaram-me metade do ordenado. Fui à noite comprar uns medicamentos à farmácia para a minha mulher e uns diretores do Salgueiros passaram em minha casa e eu não estava lá. Ora, eu ganhava três contos por mês (15 euros) e para me castigar eles entregaram-me um envelope só com 1500 escudos. Achei aquilo tão injusto que nos dias seguintes já não fui treinar. Sendo profissional, eu não podia fazer aquilo, mas no sábado à noite ainda fui sair até às tantas. Na manhã de domingo, dia do jogo, a direção do Salgueiros apareceu em minha casa a tentar-me convencer a juntar-me à equipa para ir jogar a Fafe. Eu, deitado, só dizia: «Só me levanto se me derem os 1500 escudos que me devem.» Lá mos deram e eu fui ter com a equipa ao restaurante. Ainda ouvi umas bocas dos colegas: «Foram buscar a vedeta…» E eu: nem uma, nem duas… [risos]
Esse jogo correu bem?
Ganhámos 2-1 em Fafe. E a direção ainda melhorou o prémio de jogo: 800 escudos [quatro euros] em vez de 500 [2,5 euros]. Foi uma vitória tão saborosa que até aumentaram o cachet.
Quando é que terminou a carreira?
Aos 27, 28 anos quis sair do futebol. Houve um treinador, o Artur Quaresma, que tinha sido jogador do Belenenses, que na pré-época antes dos treinos na praia disse «o Marante pode vir à experiência». Aquilo caiu-me mal. Eu era jogador do Salgueiros e ia fazer a pré-época à experiência? Onde é que nós estamos? Disse logo: «Não quero jogar mais. Vou embora.» E acabou aí o futebol a sério. Depois ainda fui para o Desportivo de Portugal, nos Distritais da AF Porto. O Mário Reis – antigo treinador de Salgueiros e Boavista –, que jogou sempre comigo, desde os juniores, insistia para eu voltar, mas não quis mais.
Foi a partir desse momento que começou a encarar a carreira na música mais a sério?
Ainda trabalhei uns anos numa loja de peças de automóvel e tentava conjugar com uns concertos. Só em 1991, já com os Diapasão, é que me decidi tornar profissional da música. Já depois disso e por intermédio da música voltei a dar uma perninha no futebol.
Como assim?
Em 1994, num jogo entre a Rádio Renascença e a Rádio Comercial, uma coisa em grande com o Estádio do Estrela da Amadora cheio. O António Sala ligou-me para jogar pela Renascença. Eram equipas de funcionários e artistas. O Nené – ex-jogador do Benfica – era o nosso treinador e disse-me: «Marante, da maneira que você joga, nem precisa de sair do meio do terreno.» Lembro-me de uma porrada que o José Malhoa me deu numa perna e que o Jorge Coroado não viu. Mas pronto. Jogámos com o equipamento da seleção e ganhámos 3-1. Saí cinco minutos antes, para evitar a invasão de campo.
Já falámos muito de si como jogador, mas e como adepto? Qual é o seu clube?
Sporting Clube de Portugal. A minha família é toda portista. Já o meu pai era.
O Marante até tem uma adaptação de uma música sua para o FC Porto.
Sim, «A Bela Portuguesa». Isso é do tempo do «Penta», quando o Fernando Santos era treinador e essa versão foi recuperada quando o FC Porto foi campeão em 2018. Até a fui cantar aos Aliados. Era amigo do Reinaldo Teles e de muitos antigos jogadores. Aliás, quando era pequeno, fui mais vezes ver jogos às Antas do que muitos sócios do FC Porto.
É lá a sua primeira memória de futebol?
Foi um treino num relvado secundário das Antas. Eu estava atrás da baliza e até agarrei uma bola. Lembro-me bem dos jogadores: Hernâni, Teixeira, Perdigão, Carlos Duarte... E também de quando era pequeno de ficar do lado de fora do estádio com a minha mãe, quando o meu pai ia ver o jogo.
Mesmo assim, como se tornou sportinguista?
Foi a ouvir os relatos. Vi o Sporting ao vivo muito poucas vezes.
Vibrou com o título de campeão do Sporting, depois de 19 anos de espera, não?
Sim. Gosto do Ruben Amorim. Ainda esta semana disse que gosta muito de estar no Sporting, mas voltou a assumir que não é do clube desde pequenino. Os adeptos compreendem que ele é sério e é um profissional.
Dê-me um exemplo de um grande jogador de futebol?
Carlos Valderrama – antigo internacional colombiano. Podem dizer o que quiserem, é a minha opinião. Sabe porquê? Porque a bola nos pés dele só demorava 5 segundos. Não se cansava, fazia jogar os outros e ainda baralhava o adversário. Era prático. Vejo alguns jogadores que ficam com a bola à espera de driblar o adversário. Isso é uma perda de tempo.
Que diferenças encontra entre o futebol de hoje e aquele do tempo em que jogava?
Agora, os jogadores têm uma preparação que nós não tínhamos. O futebol é mais rápido, mais duro, mas as bolas são melhores, os terrenos também. As botas são levezinhas. No meu tempo, se jogasse com umas botas de agora aquilo era uma maravilha.
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«Um café com...» senta o Maisfutebol à mesa com figuras eminentes da nossa sociedade, nomes sem ligação aparente ao desporto, a não ser a paixão. A música, a literatura, o cinema ou a política enredados nas quatro linhas de conversas livres e descontraídas.