"O povo unido jamais será vencido". 50 anos depois, o poder ainda está na rua?
Manifestação "Vida Justa", em 2023 (DR)

"O povo unido jamais será vencido". 50 anos depois, o poder ainda está na rua?

TEXTO 🌹
Maria João Caetano

O povo saiu à rua no dia 25 de Abril de 1974. E por lá ficou. A rua, espaço político por excelência, antes interdito, foi ocupada por trabalhadores exigindo salários maiores e melhores condições laborais. Nos últimos anos, além dos sindicatos, novos movimentos têm ganhado visibilidade. Representam novas preocupações - com a habitação, com o clima, com a discriminação, com a violência - e dão voz a um mal-estar social que não está balizado por partidos ou sindicatos. Acreditam na ação coletiva. Pensam de forma global, intervêm localmente. Usam a imaginação e as redes sociais para espalhar a sua mensagem. Mas, como há 50 anos, é na rua que ainda se grita por uma vida digna. 

“Costa escuta, queremos vida justa!”. “Não somos otários - menos renda e mais salário”. "Fartos de escolher – Pagar renda ou comer”. Às 15:00 do dia 25 de fevereiro de 2023, o Marquês de Pombal, em Lisboa, encheu-se de pessoas com cartazes coloridos, feitos em cartão ou simples folhas de papel. Não se viam bandeiras nem símbolos de partidos ou de sindicatos, apesar de haver políticos e sindicalistas entre os cerca de 10 mil manifestantes. O movimento Vida Justa apresentava-se: queria mostrar o descontentamento dos trabalhadores das periferias da capital. “O que surpreendeu nessa primeira manifestação foi o facto de darmos voz a pessoas que geralmente não têm voz, não aparecem, como por exemplo os refugiados, os imigrantes, o pessoal dos bairros”, recorda Flávio Almada, um dos organizadores.

Artista, rapper, colaborador da Associação Cultural Moinho da Juventude, na Cova da Moura, Amadora, Flávio Almada, de 41 anos, lembra como tudo começou: “Após o desconfinamento, várias associações dos bairros juntaram-se num encontro na Cova da Moura, para fazer um balanço das atividades durante a pandemia [de covid-19]. E as pessoas vieram e disseram-nos: fizeram um excelente trabalho, mas a verdade é que nós continuamos a ter dificuldades, vivemos mal, está tudo caro, as casas são frias, não temos transportes. Estas pessoas, que estiveram a trabalhar durante toda a pandemia e a suportar o confinamento das elites, sentiam que, apesar disso, continuavam a ser invisíveis e que os seus problemas se agravavam.”

Decidiram, então, voltar a reunir-se para organizar as reivindicações e pensar em modos de ação. “Há uma guerra contra as populações mais pobres que tem de parar. Para inverter esta situação, as pessoas têm de ter o poder de exigir um caminho mais justo que distribua igualmente os custos desta crise. Não pode ser sempre o povo a pagar tudo, enquanto os mais ricos conseguem ainda ficar mais ricos. É preciso dar poder às pessoas para conseguirem ter uma vida digna”, dizia o primeiro manifesto do Vida Justa.

A primeira manifestação Vida Justa terminou em frente da Assembleia da República (Horacio Villalobos/ Corbis via Getty Images)

O movimento rapidamente cresceu e acabou por juntar uma série de pessoas que, embora não vivessem nas periferias, se identificavam com o programa: “Não queremos deixar ninguém para trás. A maioria da classe trabalhadora está com dificuldades em sobreviver. Para a maior parte das pessoas a vida é incomportável”, admite Flávio. Foi assim que Andreia Galvão, 23 anos, atriz, licenciada em Ciências da Comunicação com um mestrado em teatro, se juntou a um dos plenários quando se preparava a primeira manifestação. “O aumento dos preços dos bens essenciais, a precariedade, os salários baixos, tudo isso eram preocupações que já tinha”, explica. Entretanto, o Vida Justa trouxe-lhe também outra consciencialização: “Percebemos que as pessoas que estavam mais flageladas pelas crises do custo de vida e da habitação eram mais das periferias e de origem imigrante. São lugares de não política, onde as pessoas acabam por não tomar decisões e não haver participação democrática no sistema para além do voto, e muitas nem sequer votam. Este é um movimento muito alargado, que inclui pessoas que doutra forma não têm representação e o nosso objetivo é precisamente colocar estas pessoas no lugar da decisão, é levar a periferia para o centro.”

“Ultimamente há uma elitização das manifestações. Os partidos andam a viver na lua”, acusa Flávio Almada. “As pautas são discutidas numa linguagem de escolhidos, não são direcionadas para as bases. Não ouvem o que as pessoas dizem. Isso criou um espaço vazio, para todos os descontentes que não se reveem na maioria dos partidos e esse espaço está a ser ocupado pelos partidos da extrema-direita, que estão a cativar as pessoas que estão descontentes com o seu discurso populista. Não podemos deixar que isso aconteça.”

O que os elementos do Vida Justa fazem é estar junto das pessoas, não apenas quando há campanhas eleitorais, mas todos os dias. “Falamos com as associações de moradores, com os jovens que estão na rua, com as pessoas que estão sentadas no café. Temos de saber quais são as exigências das pessoas, verdadeiramente. E, aos poucos, elas vão-se aproximando, porque se identificam e reveem naquilo que dizemos”, explica Flávio Almada. “E sabem que podem contar connosco, que são ouvidas.” Quando há casos de violência policial, despejos ou destruição de casas, como aconteceu recentemente em Loures, o Vida Justa está lá, a apoiar os moradores, mostrando aquilo que não passa na televisão, exigindo ação.

“As assembleias nos bairros funcionam a partir das agendas locais. Toda a gente fala e aquilo que se decide numa assembleia a gente faz. Tentamos praticar a democracia na sua natureza”, explica Flávio. “Para nós a habitação é um tema antigo, não é uma novidade. A agenda da habitação agora começou a ser muito discutida porque atinge a classe média branca, essa é a verdade. Mas este é um problema que afeta certas comunidades desde há 50 anos. Por isso, claro que damos a atenção à habitação, mas também nos preocupamos com os salários baixos, com o aumento do custo de vida, com o emprego precário, com a falta de transportes, com o racismo, com a violência policial…”

Andreia Galvão confirma que a proximidade e a horizontalidade são fatores essenciais nesta luta: “Fazemos debates públicos em vários locais e os moradores trazem as suas reivindicações. Aos poucos, vai-se construindo uma relação de confiança. A palavra passa no boca-a-boca e da próxima vez vêm mais pessoas”, diz. “Os problemas já estavam lá, o que nós fazemos é criar um espaço de diálogo, de debate e de política. A ideia de comunidade é muito importante. As pessoas quando estão em situações difíceis precisam mais das outras”, acrescenta. "Participamos em algumas plataformas e manifestações, mas esse não é o nosso trabalho de base, o nosso trabalho é sobretudo junto das pessoas."

  • Manifestação Vida Justa, 25 de Fevereiro 2023 (Foto de Horacio Villalobos/Corbis via Getty Images)
    Manifestação Vida Justa, 25 de Fevereiro 2023 (Foto de Horacio Villalobos/Corbis via Getty Images)
  • Manifestação Vida Justa (Foto de Horacio Villalobos/Corbis via Getty Images)
    Manifestação Vida Justa (Foto de Horacio Villalobos/Corbis via Getty Images)
  • Flávio Almada na manifestação "Vida Justa", 25 de Fevereiro 2023 (Foto de Horacio Villalobos/Corbis via Getty Images)
    Flávio Almada na manifestação "Vida Justa", 25 de Fevereiro 2023 (Foto de Horacio Villalobos/Corbis via Getty Images)
  • Manifestação Vida Justa (Horacio Villalobos/ Corbis via Getty Images)
    Manifestação Vida Justa (Horacio Villalobos/ Corbis via Getty Images)
  • Manifestação Stop e Vida Justa encontram-se em frente do Parlamento - 25 de fevereiro de 2023 (Horacio Villalobos/ Corbis via Getty Images)
    Manifestação Stop e Vida Justa encontram-se em frente do Parlamento - 25 de fevereiro de 2023 (Horacio Villalobos/ Corbis via Getty Images)

05
“É urgente e necessário o aumento do salário”: os sindicatos tomam a rua

Mais ou menos à mesma hora em que naquele dia de fevereiro a Vida Justa se reunia no Marquês de Pombal,  do outro lado do Parque Eduardo VII, no Palácio da Justiça, cerca de 50 mil professores, trabalhadores não docentes, encarregados de educação e alunos vindos de todo o país iniciavam a sua caminhada até à Assembleia da República, manifestando-se em defesa da escola pública, num protesto organizado pelo Sindicato de Todos os Professores (Stop), mas a que se juntaram outros sindicatos e associações. As duas marchas acabaram por se cruzar - lutas diferentes, mas, afinal, tão parecidas: estavam todos na rua para chamar a atenção dos políticos e da sociedade para os seus problemas e para as ruas reivindicações.

Durante o Estado Novo, as liberdades de expressão, reunião e associação eram reguladas por "leis especiais". Da mesma forma, não existia liberdade sindical. Os sindicatos que existiam não eram livres nem defendiam os direitos dos trabalhadores, faziam parte do aparelho corporativista. As greves e manifestações estavam proibidas, embora as houvesse, ilegais e rápida e tantas vezes violentamente abafadas pelas autoridades. Houve um período de mais abertura, com Marcelo Caetano, depois de 1969, mas “foi só depois da Revolução do 25 de Abril que voltou a existir liberdade sindical em Portugal, mais concretamente com a Constituição de 1976, que consagrou este princípio (contrariando a legislação de 1975 que previa uma única central sindical nacional)”, explica Cristina Rodrigues, investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa.

Desde a grande manifestação de 1 de Maio de 1974, os cidadãos não mais deixaram as ruas. Novos sindicatos, associações e coletividades surgiram para reivindicar os direitos dos vários grupos da sociedade. Os protestos sucediam-se. “O povo unido jamais será vencido” - este era um dos gritos que mais se ouvia. “A rua deixou de ser interdita – porque o era para os que não apoiavam ou eram arregimentados e enquadrados pela ditadura. Interdita, é certo, a rua nunca deixou de ser um território de confronto, no qual se materializava o combate desigual entre o aparato policial e repressivo do Estado e os corpos dos opositores. Mas depois da revolução de Abril, as manifestações já não podiam ser proibidas. O espaço foi reconquistado. É, assim, político e politizado”, escreve a historiadora Maria Alice Samara.

Num primeiro momento, as grandes questões a resolver eram sobretudo laborais. Os trabalhadores queriam garantir os seus direitos e acabar com décadas de exploração e de miséria. “O papel dos sindicatos e das centrais sindicais nos 50 anos de democracia é decisivo”, afirma Cristina Rodrigues. “Nas lutas e reivindicações dos trabalhadores, nas greves, nas negociações bilaterais… O país construiu-se sobre consensos, lutas, superações, cedências, em que todos tiveram o seu papel – sindicatos, empresários, patrões, trabalhadores… O seu papel foi também decisivo desde 1984, com a institucionalização da Concertação Social, na condição de parceiros sociais.”

Nas décadas que se seguiram ao 25 de Abril de 74, os sindicatos, em pequenas manifestações setoriais ou nas grandes greves e manifestações, mobilizaram muita gente aos gritos de “O custo de vida aumenta e o povo não aguenta” ou “É urgente e necessário o aumento do salário”. Os sindicatos - só desafiados, em certos momentos, pelos estudantes descontentes - eram os donos da luta de rua.

Manifestação em Lisboa logo a seguir ao 25 de Abril (Foto de Jean-Claude Francolon/Gamma-Rapho via Getty Images)
Manifestação 1 de Maio de 1974 em Lisboa (GettyImages)
Manifestação em 1974 em Lisboa (Foto de Henri Bureau/Sygma/Corbis/VCG via Getty Images)

06
Juntos somos mais fortes: seja para pedir aumentos ou lutar por uma casa para viver

Quem esteve nas manifestações da Vida Justa em fevereiro do ano passado não pôde deixar de recordar protestos mais antigos, como a manifestação da “Geração à Rasca” (2011), a “Marcha da Indignação” (2012) ou o movimento “Que se lixe a troika” (2012 e 2013) - responsável por aquela que foi considerada “a maior manifestação desde o 1º de maio de 74”. Muito se falou nessa altura no nascimento de um novo movimento reivindicativo - vindo diretamente da sociedade, organizado nas redes sociais, sem ligação a partidos ou sindicatos e, por isso, talvez mais frágil, mas com capacidade de reunir muitas pessoas muito diferentes. Uma ação coletiva local mas sintonizada com as lutas globais. A crise económica e a austeridade provocaram um descontentamento tal que as pessoas não puderam ficar caladas.

Esse sentimento parece ter ressurgido após a pandemia de covid-19. Não foi só o Vida Justa que saiu para a rua. Nos últimos tempos, assistimos a manifestações por uma Casa Para Viver, contra o racismo, pelas mulheres, pela justiça climática, pela escola pública, em defesa do SNS, em defesa da Ucrânia, pela libertação da Palestina, etc.. Manifestações que juntam todas ou muitas destas causas, porque a luta é cada vez mais interseccional. Que podem juntar dezenas, centenas ou milhares de pessoas - de partidos e ideologias diversas, mas unidas por preocupações comuns e pelo desejo de mudança.

“Estes movimentos que derivam da sociedade são muito importantes e mostram-nos que, apesar de todas as dificuldades, os cidadãos têm capacidade de se organizar, de criticar as decisões dos governos instituídos e de lutar por alternativas”, explica o sociólogo Elísio Estanque, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. E conseguem fazê-lo à margem das organizações formais, como os partidos e os sindicatos. “Os movimentos e as causas vão surgindo na sociedade, de forma mais ou menos dispersa e localizada. São respostas da sociedade civil e geralmente contam com uma participação muito direta dos jovens, porque são eles que vivem mais diretamente os problemas, seja o acesso a habitação, a precariedade no emprego, as dificuldades em terem uma vida digna. Como é óbvio, os problemas vão mudando e, por isso, as respostas também vão sendo diferentes, mas têm sempre a ver com a conjuntura política e económica que se vive. Se em 2012 os temas da austeridade e da precariedade do trabalho eram os mais prementes, neste momento a habitação parece ser uma das questões mais relevantes”, sublinha. 

Manifestação "Que se lixe a troika", 15 setembro 2012 (AP Photo/Paulo Duarte)

“As manifestações decorrem de um acúmulo, as pessoas sentem-se fartas e querem mostrar a sua indignação. As manifestações expressam uma vontade popular”. São um grito - são talvez a parte mais visível das lutas destes movimentos, mas não são a única forma de luta, sublinha Rita Silva, 48 anos, técnica de desenvolvimento comunitário que já milita em coletivos há muito tempo, primeiro mais dedicada às questões dos direitos humanos e, depois, mais focada na habitação. Foi uma das fundadoras da Habita - Associação pelo Direito à Habitação e à Cidade, integrou o movimento Vida Justa e é porta-voz da plataforma Casa para Viver. “Parece-me que a melhor forma de lutar é integrando formas de luta institucionais ou não institucionais”, diz. Seja como for, juntando-se a outras pessoas que querem o mesmo. “Vivemos numa sociedade extremamente individualista. Estes movimentos trazem os valores coletivos para cima da mesa. E nós sabemos que juntos temos mais hipóteses de conseguir alcançar os nossos objetivos.”

“Antes a luta estava muito organizada em dois ou três tipos de organizações sociais, que são muito importantes, não tenho dúvidas disso. Mas tivemos o desenvolvimento de novas pautas - a pauta feminista, climática, o racismo, a habitação. Tudo isto a juntar-se ao agravamento da situação económica, o aumento da precariedade e a falta de perspetivas de melhorar a nossa vida. Acumulamos muitas crises: a crise económica, social, política, climática, a ameaça das guerras, o ressurgimento de movimentos fascistas e racistas, são muitos problemas, muitas contradições.” Por tudo isto, diz Rita Silva, “a forma de luta tem de ser abrangente. Nós misturamos a mobilização de pessoas, em manifestações; mas também fazemos denúncia pública; vamos falar com partidos e parlamentos, elaboramos propostas, fazemos ação jurídica e legal, trabalho com os media e a comunicação, ação direta com as pessoas…  não dá para ficar numa dimensão. Convivemos com despejos, com violência, com leis que são contrárias ao bem comum. E para cada situação temos que perceber qual é a melhor forma de agir.”

Só costumamos dar por eles quando há manifestações, mas estes movimentos não se limitam a agitar bandeiras e a debitar palavras de ordem. Apostam no contacto de proximidade, em pequenas ações muito focadas. Usam os recursos multimédia e as redes sociais como forma de denúncia e para chegar a mais pessoas. Tornam-se visíveis em eventos de rua, que podem ser grandes manifestações, mas também podem ser pequenos encontros, refeições partilhadas, concertos, conversas, performances, ações disruptivas.

Manifestação contra a visita de Angela Merkel, Lisboa, 12 novembro 2012 (AP Photo/Joao Henriques)

07
Atirar tinta a um ministro também é uma forma de luta?

Já interromperam ruas e estradas, lançaram tinta colorida sobre ministros e outros políticos, bloquearam a entrada em edifícios, fizeram greves, fecharam escolas e universidades, deixaram marcas nas paredes de grandes empresas. Nos últimos anos, a Greve Climática Estudantil e o movimento Climáximo têm sido dos mais ativos movimentos pela “justiça climática” - “esse é o termo certo porque lutamos não só pela ambiente, mas também pela justiça social, é uma luta com uma base política forte que implica uma crítica muito grande ao sistema capitalista atual que é considerado a causa de todos os outros problemas”, explica Leonor Canadas, 28 anos, formada em engenharia agronómica, que se juntou ao Climáximo há quatro anos. “Defendemos um sistema socioeconómico alternativo. É um movimento radical no sentido em que vai à raiz do problema.”

“Há uma falsa narrativa sobre este tema, fala-se de uma inação, mas, na verdade, os líderes políticos e económicos têm agido. Têm decidido conscientemente perpetuar a queima de combustíveis fósseis, sabendo a destruição que isso implica”, acusa Leonor. “Há uma consciência que vem de há décadas sobre o impacto do uso de combustíveis fósseis e, apesar disso, a elite política e económica tem persistido. A sua ação é um ataque contra a vida, contra as pessoas e contra o planeta. A perpetuação do capitalismo fóssil é uma decisão violentíssima que leva à destruição das condições para a sobrevivência no planeta.”

Perante aquilo que consideram uma “emergência”, os elementos do Climáximo acreditam que só uma ação coletiva - envolvendo o maior número de pessoas em todo o mundo - pode obrigar os responsáveis a alterar a sua forma de agir. “A ação coletiva tem um papel fundamental, de criação de resistência popular e de pressão sobre o poder. Não podemos consentir que a destruição continue. É necessário um movimento ao nível da sociedade civil como um todo, temos de nos organizar coletivamente - podem ser organizações formais ou informais, independentemente da prioridade da sua luta, seja representante dos trabalhadores, seja feminista ou antirracista, seja uma associação de bairro, todos temos que nos envolver, e aliar porque todas as lutas serão impactadas pelo colapso climático. É necessária uma união social. Não vemos outra maneira”, afirma Leonor.

O Climáximo participa em manifestações coletivas, mas é mais conhecido pelas ações de guerrilha - que têm sido também alvo de muitas críticas. “A nossa ação tem servido para alertar a sociedade para o que está a acontecer”, justifica Leonor. As pessoas dizem que atirar tinta a um político ou a uma obra de arte não resolve nada, mas Leonor garante que “as ações têm obrigado as pessoas a pensar e a falar do assunto, é um passo pequeno, mas é um passo importante”. “Conseguimos que a crise climática fosse abordada no período eleitoral. Com as nossas ações, mostrámos que os programas dos partidos ignoravam este tema. E, se não tivéssemos agido, a crise climática não tinha sido sequer um tópico nesta campanha eleitoral.”
 

  • Greve Climática Estudantil em Lisboa, 24 de maio de 2019 (GettyImages/ Pedro Fiúza)
    Greve Climática Estudantil em Lisboa, 24 de maio de 2019 (GettyImages/ Pedro Fiúza)
  • Greve Climática em Lisboa, setembro de 2022 (DR)
    Greve Climática em Lisboa, setembro de 2022 (DR)
  • Ativistas climáticos fecharam o Liceu Camões em novembro de 2022 (Lusa/Andre Koesters)
    Ativistas climáticos fecharam o Liceu Camões em novembro de 2022 (Lusa/Andre Koesters)
  • Em outubro, ativistas do Climáximo atiraram tinta e colaram-se junto a uma obra de arte no CCB (DR)
    Em outubro, ativistas do Climáximo atiraram tinta e colaram-se junto a uma obra de arte no CCB (DR)
  • Em outubro, Fernando Medina, ministro das Finanças, foi atacado por com tinta (DR)
    Em outubro, Fernando Medina, ministro das Finanças, foi atacado por com tinta (DR)
  • Apoiantes do Climáximo bloquearam o túnel do Marquês em dezembro (DR)
    Apoiantes do Climáximo bloquearam o túnel do Marquês em dezembro (DR)
  • Apoiantes do Climáximo bloquearam o túnel do Marquês (DR)
    Apoiantes do Climáximo bloquearam o túnel do Marquês (DR)
  • Durante a última campanha eleitoral, elementos da Greve Climática Estudantil pintaram palavras de protesto nas sedes dos partidos (DR)
    Durante a última campanha eleitoral, elementos da Greve Climática Estudantil pintaram palavras de protesto nas sedes dos partidos (DR)
  • Na noite eleitoral, os ativistas climáticos atacaram a sede de campanha da Aliança Democrática (LUSA/Tiago Petinga)
    Na noite eleitoral, os ativistas climáticos atacaram a sede de campanha da Aliança Democrática (LUSA/Tiago Petinga)
  • Ativistas do Climáximo na rua da Escola Politécnica, em Lisboa, em março deste ano (Lusa/António Cotrim)
    Ativistas do Climáximo na rua da Escola Politécnica, em Lisboa, em março deste ano (Lusa/António Cotrim)

09
“O referendo é uma das ferramentas da democracia e queremos usá-la”

Teresa tem 29 anos e já está envolvida nas lutas pela habitação há algum tempo, tendo-se juntado à associação Habita antes de integrar o MRG - Movimento Referendo pela Habitação. “A habitação não é o único problema. Os problemas são muitos e todos confluem, as coisas não são segmentadas. Mas ter uma habitação digna é algo essencial e é mais difícil resolver outros problemas se não tiver uma casa”, explica.

O MRH “não é um coletivo”, sublinha. “É um movimento muito amplo constituído por habitantes de Lisboa e por pessoas que já foram expulsas da cidade por não conseguirem pagar uma casa em Lisboa. É um grupo muito diverso, uns já estavam nestas lutas, outros estão pela primeira vez. É apartidário e autofinanciado.” O que torna o MRH tão particular é que este movimento não exige qualquer medida, pede simplesmente que se faça um referendo. “Não estamos a fazer um pedido à Câmara de Lisboa, estamos a dizer que queremos que em Lisboa os munícipes tenham o poder de decidir. Queremos dar o poder às pessoas”, explica Teresa. “O referendo é uma das ferramentas da democracia e do poder local e queremos usá-la. Já houve outros referendos locais, mas este é um instrumento que nunca foi usado por iniciativa popular, seria a primeira vez.”

Uma vez que está a pedir um referendo local, o tema a referendar tinha que estar sob a alçada da Câmara de Lisboa e é também por isso que o MRH propõe que se faça um referendo sobre o uso de prédios de habitação para alojamento local. “É uma das questões que está sob o poder do município, sabemos que esta não é a única causa da crise de habitação na cidade, mas é uma luta essencial”, afirma Teresa. A posição do MRH é clara: que as casas cumpram a sua função social e não sirvam para fazer negócio. “O alojamento local tornou-se um calvário, é sentido como um problema por muitas pessoas.”

Manifestação "Casa para Viver, Planeta para Habitar" em Lisboa, 30 de setembro de 2023 (Lusa/ António Pedro Santos)

Neste momento, o MRH está a recolher assinaturas para poder apresentar à Assembleia Municipal de Lisboa uma proposta de referendo local: para isso precisa de ter 5 mil a 7.500 assinaturas. “Decidimos desde o início que não queríamos recolher assinaturas online. Privilegiamos o contacto direto com as pessoas, queremos encontrar-nos com elas, explicar-lhes o que estamos a fazer.” Para isso têm uma rede de pontos fixos de recolha de assinaturas e têm ainda um calendário mensal com recolha em pontos estratégicos da cidade. “Queremos que seja um movimento da cidade inteira”, diz Teresa. 

“É difícil, é um processo trabalhoso, requer muita dedicação, muito do nosso tempo. Mas ao mesmo tempo é muito gratificante e é bonito ver como tanta gente se interessa e se envolve. Muitas pessoas sentem-se muito desempoderadas nas nossas democracias liberais, sentem que há uma grande distância entre elas e a política”, sublinha. “Vemos grandes concentrações e manifestações, têm um grande eco social, mas depois não se concretizam em medidas políticas. As manifestações sobre habitação foram enormes - e nós também participámos - mas não se materializaram em medidas concretas. Nesse sentido, o referendo pode ter um resultado mais visível. O referendo pode ser vinculativo se mais de 50% das pessoas da cidade votarem, o que é muito difícil. Mas mesmo que não seja vinculativo, será uma indicação da vontade popular - será mais difícil de ignorar.”

10
Os novos desafios do sindicalismo

“Vamos fazer luta a sério”, repetia André Pestana nas apresentações do Sindicato de Todos os Professores (Stop), em 2018. O novo sindicato foi criado por um grupo de professores “muito desiludidos” com a atuação na última década dos outros sindicatos. Apresentava-se como uma estrutura independente, com professores “de vários partidos” ainda que, a maioria, não tenha qualquer filiação, e queria a “renovação e rejuvenescimento do sindicalismo docente”. O Stop dizia-se farto da “luta mansinha”: marcou a sua primeira greve para junho desse ano e foi nas ruas que conquistou o direito a sentar-se na mesa das negociações com o Ministério da Educação. 

O Stop, à semelhança de outros sindicatos que surgiram nos últimos anos em áreas como a saúde ou a segurança, veio mostrar que, ao contrário do que muitos dizem, o sindicalismo não está moribundo. “Existe uma proliferação sindical, têm surgido alguns novos sindicatos de classe em categorias profissionais com forte poder reivindicativo”, confirma Sérgio Monte, secretário-geral da UGT - União Geral de Trabalhadores, que, tal como Tiago Oliveira, secretário-geral da CGTP - Confederação Geral de Trabalhadores Portugueses, recusa “a ideia de ‘crise’ do movimento sindical”. “Enquanto houver trabalhadores que têm problemas, os sindicatos são necessários”, diz Sérgio Monte. “A melhor forma de reivindicação é a negociação laboral. A contratação coletiva requer poder sindical e sindicalistas bem preparados e bem assessorados.” Mas ambos admitem que existem novos desafios, a começar por uma cada vez maior individualização na sociedade e no trabalho. “Houve em muitos casos uma tentativa de individualização do contrato de trabalho, o sentimento de coletivo é posto de lado. As pessoas precisam mesmo do trabalho e aceitam cláusulas que seriam impensáveis”, lamenta Sérgio Monte. 

Manifestação nacional de professores e educadores, 11 de fevereiro de 2023 (António Pedro Santos/ Lusa)

Além disso, têm aumentado fortemente as situações de trabalho atípicas: precariedade; trabalhadores por conta própria; falsos recibos-verdes; trabalhadores qualificados academicamente que, por falta de oportunidades de emprego, acabam por aceitar lugares subqualificados para as suas competências e potencialidades: teletrabalho: trabalho para plataformas que se assumem como empregadoras mas como mediadoras: pessoas imigrantes, por vezes sujeitas à exploração por parte de angariadores ou das redes de traficantes: empregos onde não são respeitados os horários e onde acontecem abusos que não denunciados por medo de represálias, etc, etc.. “Os desafios para o futuro são grandes”, afirma a investigadora Cristina Rodrigues. “O mundo do trabalho tem mudado muito e vai continuar a mudar. Por essa razão, os sindicatos são também eles organizações em mudança, que devem adaptar-se e dar resposta às novas categorias de trabalhadores que vão surgindo, sem esquecer os trabalhadores de perfil mais típico, que são o seu público tradicional.”

Os sindicatos garantem que estão atentos a essas alterações e que não se sentem ameaçados pelos novos movimentos: une-os a luta por uma vida digna, independentemente das formas que essa luta toma. Sérgio Monte explica que “em alguns casos os novos movimentos até se têm articulado com os sindicatos tradicionais”, uma vez que reconhecem que tem de existir uma complementaridade. “Esses movimentos assentam muito a ação na contestação e a dizer aquilo que não querem. Mas é preciso também saber o que se quer, onde está a mediana do consenso, e muitas vezes, não há um consenso reivindicativo. Além disso, nós acreditamos que a primeira frente de luta é a negociação. Pela contestação é fácil mobilizar - mas depois não é fácil obter resultados. Quem é que assume a representação se for preciso negociar? Se são inorgânicos, não há um interlocutor. E quem é que representam?” Há muitas questões que tornam difícil a obtenção de resultados, afirma.

Tiago Oliveira admite que “há formas de luta que ganham expressão de rua e outras que se desenvolvem noutros planos, nomeadamente ao nível das empresas e locais de trabalho. Os trabalhadores, quando veem que os seus problemas não são resolvidos, expressam o seu descontentamento”, como é natural. Cabe, então, aos sindicatos ouvir esse descontentamento e “contribuir com a nossa experiência e ajudar ao desenvolvimento dos processos reivindicativos. Ao longo dos últimos anos foram vários os “movimentos” que apareceram e desapareceram. A CGTP-IN cá está e continuará a estar, para promover a unidade na ação para encontrar e forçar soluções”.

Marcha dos professores em Lisboa, 29 de janeiro de 2023 (Lusa/ Manuel Almeida)

 

11
A luta continua - como tiver que ser

Depois do Stop, surgiram outros movimentos ligados à educação, o mais visível dos quais é a Missão Escola Pública e o mais recente o SOS Escola Pública - que não são sindicatos, embora tenham reivindicações que em muitos casos coincidem com as dos sindicatos, e mostram que existe espaço para novas formas de luta mesmo em setores onde os sindicatos estão bastante implantados. “Somos três colegas, já nos conhecemos há muito tempo, somos bastante presentes nas lutas que se levantaram nos últimos 20 anos e somos as três muito ativas, somos todas sindicalizadas”, explica Goreti da Costa, uma das ativistas do SOS Escola Pública, criado em novembro do ano passado. “O nosso trabalho acontece à margem do trabalho dos sindicatos, queremos manter a luta ativa e dar força aos sindicatos, enquanto ganham algum fôlego para a negociação. Por exemplo, denunciando as ilegalidades e as incongruências na legislação e esclarecendo professores e técnicos sobre os seus direitos.”

“O Stop veio dar um boost à luta dos professores e nós surgimos um bocado na senda desse entusiasmo. Já fizemos muitas coisas e é muito difícil porque somos só três, fazemos tudo sozinhas e deitamo-nos muito tarde. Mas sentimos que vale a pena.” O movimento tem organizado manifestações e vigílias e também se mantém ativo nas redes sociais, fazendo vídeos e publicando manifestos que partilham com os colegas através de mail e nos grupos de whatsapp e enviam para a comunicação social e para os grupos parlamentares. “Depois uns partilham com outros e a mensagem acaba por chegar a muita gente. Alguns só reagem com corações ou likes, mas outros queixam-se e contam os seus casos, acabam por dar voz e rosto às denúncias e isso é muito importante. Como não estamos ligadas a nenhum partido, conseguimos chegar a pessoas a que os sindicatos geralmente não chegam, liga-nos uma genuína preocupação com a escola pública, que é transversal a muitos professores", explica.

“Há quem acredite que este tipo de movimento contribui para a fragmentação, no nosso caso não, porque temos o nosso caminho muito balizado, não nos queremos sobrepor aos sindicatos: eles é que negoceiam, nós estamos cá atrás a identificar problemas e indicar caminhos”, explica Goreti.

Essa é também a visão de Andreia Galvão, que considera que movimentos como o Vida Justa não substituem os partidos e os sindicatos: “Nós próprios fazemos parte de partidos”, exemplifica. “Há de facto um problema de grande distância, os partidos estão muito afastados destas comunidades e é isso que temos tentado mudar. Os partidos têm de ter espaço para essas pessoas, têm de perceber que têm de mudar porque a sociedade mudou. Mas penso que todos podemos trabalhar em conjunto. Para muita gente tem começado aqui o caminho de politização”, explica. Flávio Almada concorda: “Há outros partidos e sindicatos que representam os interesses dos trabalhadores e a sua ação é importante. Mas há muitos mais problemas para além dos problemas laborais. Nós estamos aqui para criar a unidade com base num compromisso com as pessoas que vivem e trabalham nas cidades e nas periferias e que são constantemente marginalizadas.” Na verdade, têm todos a ganhar se conseguirem trabalhar em conjunto, dizem.

E resultados? Nestes movimentos, ao contrário das lutas sindicais, os resultados podem não ser visíveis no salário ao fim do mês, mas, ainda assim, são relevantes. Flávio recorda que, devido à ação da população, a estação da Cova Moura vai sofrer obras e reabrir, no Casal da Mira conseguiram bloquear um despejo, as manifestações Casa Para Viver pressionaram o Governo para tomar medidas políticas. “Os resultados demoram, mas não nos podemos contentar com as pequenas migalhas. Temos de intensificar a luta”, conclui. Denunciar, protestar, pressionar - estas são ações essenciais numa democracia, dizem os ativistas. “Nós nunca podemos dar por adquiridos os direitos que temos”, diz Rita Silva. “Há avanços e recuos, sinto que estamos perante um momento muito sensível, em que, como vemos noutros países, as liberdades de expressão e de opinião podem ser ameaçadas. Sinto que ainda posso fazer o que faço no meu país, mas temos que estar atentos.” Ser ativista não é fácil. “Trabalhamos todos os dias, é um compromisso”, diz Flávio Almada. Mesmo que isso implique dormir menos, trabalhar fora de horas, ter menos tempo livre para outras coisas que também gosta de fazer. “A luta não é agradável, é uma imposição histórica.”

“Para nós o 25 de abril representa um grande acontecimento histórico, que permitiu que hoje possamos lutar. Mas para nós não é uma celebração, é um dia de luta”, diz Flávio Almada. “Vemos este dia de uma forma crítica: muito já foi alcançado, mas nós continuamos a viver em guetos e a levar uma pauladas da polícia.” São muitos os problemas que persistem. E é por isso que, neste dia, todos eles vão estar na rua.

  • Manifestação pelo direito à habitação em várias cidades portuguesas a 1 de abril de 2023 (Getty Images)
    Manifestação pelo direito à habitação em várias cidades portuguesas a 1 de abril de 2023 (Getty Images)
  • Manifestação pelo direito à habitação em várias cidades portuguesas (Getty Images)
    Manifestação pelo direito à habitação em várias cidades portuguesas (Getty Images)
  • Protesto contra o racismo e a xenofobia em Lisboa
    Protesto contra o racismo e a xenofobia em Lisboa
  • Protesto contra o racismo e a xenofobia em Lisboa (Lusa)
    Protesto contra o racismo e a xenofobia em Lisboa (Lusa)
  • Manifestação "Contra o Fascismo, Mais e Melhor Habitação” no Porto, 6 de abril de 2024 (Lusa/ Fernando Veludo) )
    Manifestação "Contra o Fascismo, Mais e Melhor Habitação” no Porto, 6 de abril de 2024 (Lusa/ Fernando Veludo) )
  • Ação da Climáximo no Aeroporto de Lisboa, 4 de março de 2024 (DR)
    Ação da Climáximo no Aeroporto de Lisboa, 4 de março de 2024 (DR)
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