Ocupar a escola e arriscar ser detido em defesa do clima: "Isto é o mínimo que eu posso fazer. O custo de não fazer nada é muito maior"

5 nov 2022, 18:00

Ao mesmo tempo que, no Egito, se realiza mais uma COP, ativistas de todo o mundo proclamaram uma quinzena de luta pela justiça climática. A partir de segunda-feira, haverá ocupações em duas escolas e quatro faculdades de Lisboa. Quem são os ativistas climáticos portugueses e porque estão dispostos a ser presos?

Há cartazes preparados, palavras de ordem escolhidas, uma lista de reivindicações anunciada. A partir desta segunda-feira grupos de alunos vão ocupar seis escolas e universidades em Lisboa, exigindo o fim dos combustíveis fósseis em Portugal até 2030. A ocupação tem data para começar mas ninguém sabe quando vai acabar: "Estamos preparados para tudo", diz à CNN Portugal Alice Gato, de 20 anos, porta-voz do movimento "Fim ao Fóssil: Ocupa!". "O objetivo é ficar até que as nossas reivindicações sejam atendidas", e para isso há toda uma logística organizada, que envolve distribuição de alimentos e de chá, almofadas e cobertores para as noites frias. Mas também existe a possibilidade da ação ser interrompida a qualquer momento pelas forças da segurança e, até, de serem feitas detenções. "Sabemos que isso pode acontecer. Também estamos preparados."

Nada que assuste Matilde Ventura, de 18 anos, que vai estar a ocupar o Liceu Camões mas que ainda há duas semanas foi detida numa ação na sede da Galp em Lisboa. "Naquele dia, estávamos à espera que acontecesse algo assim. É desobediência civil a partir do momento em que a polícia dá três vezes uma ordem e a pessoa não cumpre. Pediram para eu me levantar e ir embora e eu estava colada à parede, por isso não conseguia levantar-me. É óbvio que seria detida", conta. "Mas não foi uma coisa impulsiva. Nós falámos muito sobre aquilo e, também interiormente, houve um grande processo de reflexão: ok, eu estou disposta a isto porque isto é o mínimo que eu posso fazer. O custo de não fazer nada é muito maior."

Matilde Valente, ativista climática, colada ao edifício da Galp (DR/Climáximo)

Esteve oito horas detida: mais ou menos cinco horas na esquadra da polícia, com outros ativistas, e depois três horas numa cela no Campus da Justiça. "Aí, fiquei sozinha. Foi muito tenso. Mas não é nada comparado com o que centenas de outros ativistas estão a passar há muitos mais anos. Não é nada de especial, não é uma história heroica, passei três horas numa cela a olhar para uma parede. Não tive medo. Fez-me pensar no que é que estava em causa: eu fui posta numa cela porque estava a lutar pela nossa sobrevivência. O que eu estava ali a fazer era a tentar proteger as pessoas." Os verdadeiros criminosos continuam à solta, como gritou naquele dia, à porta da Galp.

Matilde participou em todas as greves climáticas desde 2019: "Na primeira tinha 15 anos", recorda. No ano passado participou na ação "Vamos juntas", um protesto na refinaria de Sines. Foi aí que começou a sentir necessidade de estar mais organizada. “Achei que não estava a fazer o suficiente e decidi juntar-me ao Climáximo. Não vejo outro coletivo em Portugal que esteja a fazer ações diretas, e não só a conversar. É uma tática que me parece muito importante."

Em Sines, apesar de todo o aparato policial, nunca pensou em desistir: "Tivemos uma formação em desobediência civil e um briefing com advogados que nos disseram o que é que ia acontecer e como é que deveríamos lidar com a situação. Senti-me sempre super acompanhada e apoiada. Todos nos apoiámos uns aos outros", conta. "O único receio que tive foi ao ver a refinaria, enorme. Isso, sim, é assustador."

Protesto na refinaria em Sines

"As pessoas olham para estas ações como estratégia, mas isto é a reação normal ao que estamos a viver. Não é normal em crise climática, com as coisas desastrosas que estão a acontecer no mundo, nós continuarmos a nossa vida de segunda a sexta, com as nossas preocupações mundanas, nas aulas ou no trabalho. A reação normal é nós estarmos a desobedecer porque o estado das coisas é grave, então temos de romper com a situação. Isso implica o que implica", explica Matilde Ventura.

Ter uma detenção no currículo pode prejudicá-la no futuro? Matilde sorri: "Imagino que sim, porque eu vou continuar a fazer isto, não vou parar. Mas o meu futuro já está comprometido. É verdade, isto não é retórica, eu não sei se vou ter uma vida como os meus pais tiveram. E se não fizermos nada o futuro estará mesmo ameaçado."

Climáximo - a luta está na rua rua também em Portugal

Sinan Eden foi um dos fundadores do Climáximo, em 2015. Originário da Turquia, Sinan começou a fazer ativismo nos tempos da Faculdade, em Istambul. Tem agora 36 anos, é doutorado em Matemática e chegou a Portugal em 2011: “Foi a altura da 'geração à rasca' e da troika, participei em todas as manifestações", recorda. "Queríamos fazer ativismo de rua relacionado com o clima, começámos a conversar e a juntar pessoas e, quando houve massa crítica, criámos o Climáximo."

O Climáximo é, nas palavras de Matilde Alvim, uma outra integrante do grupo, um coletivo aberto, horizontal e anticapitalista. "Aberto porque qualquer pessoa pode participar. Horizontal porque todas as propostas são discutidas e as decisões são tomadas por consenso. Anticapitalista porque o capitalismo é a raiz da crise climática, foi a partir da Revolução Industrial que a utilização de combustíveis fósseis se tornou a base da nossa economia", explica. O coletivo tem atualmente três de grupos de trabalho: o Aterra, que combate as emissões de carbono do transporte aéreo; o Empregos para o Clima, que propõe um plano para uma transição justa que passa por criar 200 mil novos postos de trabalho com o objetivo de reduzir as emissões de gases; e a campanha Gás é Andar Para Trás, que se opõe ao uso de gás como alternativa ao petróleo, uma vez que se trata igualmente de um combustível fóssil.

Protesto contra a exploração petrolífera em Aljezur

Na "apresentação relâmpago", numa sessão pública realizada há dias em Lisboa, para meia dúzia de possíveis futuros ativistas, Matilde explicou como funciona o Climáximo: "Lutamos pela justiça climática, porque acreditamos que o problema do clima é também uma questão social e política. Somos internacionalistas porque a crise climática não tem fronteiras. Defendemos uma ação coletiva porque este é um problema de todos. E optamos muitas vezes pela desobediência civil porque achamos que o tempo das petições e das palavras de ordem já passou. Já percebemos que não vão ser os governos nem as empresas que vão fazer alguma coisa. Temos de ser nós. As leis são injustas e nós temos o dever de lhes desobedecer."

"Entre 2017 e 2018 estivemos muito ativos e conseguimos parar 15 projetos de exploração de petróleo e gás em Portugal. Entretanto surgiu a greve climática e temos estado sempre envolvidos", explica Sinan. Atualmente, o grupo tem cerca de 45 elementos, que participam regularmente nas reuniões semanais, mas conta com centenas de simpatizantes, prontos a participar em ações públicas.

Do barco do Greenpeace ao ataque a obras nos museus: os protestos mudaram porque a realidade mudou

Nos últimos anos - sobretudo desde o início das greves climáticas, em 2019, com a visibilidade da ativista sueca Greta Thunberg - tem-se falado muito de ativismo climático e de desobediência civil. Mas nada disto é assim tão novo. Há décadas que os ativistas do Greenpeace são detidos, por se manifestarem em frente a embaixadas ou por tentarem impedir a exploração de petróleo no Ártico. 

Em 2009, na Conferência do Clima de Copenhaga, houve mais de 500 detenções numa ação de desobediência civil, lembra Sinan. "Eu diria que nesse ano as pessoas estavam a olhar para a COP como um sítio onde se podia lançar um segundo protocolo de Quioto, foi o tempo do Obama e gritávamos 'yes we can, yes we can'. Havia muita esperança de que os governos iriam agir. Mas havia muito clima e muito pouca justiça climática. O próprio movimento não estava a fazer a conexão sistémica do problema. E então o movimento colapsou. E só conseguiu recomeçar a construir-se em 2013."

Em 2015 foi a COP de Paris. "Foi o novo boost", diz. "Desta vez o movimento estava ancorado no sítio certo, que é a justiça climática. Foi também a primeira vez que a manifestação aconteceu depois da conferência. Isto é relevante. As ONG normalmente fazem as manifestações antes ou no meio dos eventos - para mostrar que estamos ali e para pressionar as decisões. Mas, com a manifestação no fim, o que dissemos foi: a última palavra é nossa. E logo ali lançaram-se muitas ações e começámos a crescer."

Greve climática estudantil em Lisboa (DR/Climáximo)

O enquadramento mudou e, como consequência, a atuação dos ativistas também teve que mudar, explica Sinan. "A linguagem anterior era: os governos devem fazer isto e isto. A linguagem de 2019 passou a ser: estas coisas têm de acontecer." Têm de acontecer, seja como for. "Os grupos de ativistas começaram a convidar o resto da população a participar na mudança. Se os governos e as empresas não vão resolver, temos de ser nós. Não podemos fugir à nossa responsabilidade. E é daí que vêm todas as ações na via pública, na Volta à França, na Fórmula 1, nos museus, essas coisas todas. A conversa é pública, é democrática."

É por isso que ações 'disruptivas' vão continuar, promete Sinan. "O que é que é disruptivo?", pergunta. "Há demasiado debate sobre alguém a atirar um pedaço de comida para cima de um vidro, em vez de se falar de 1,5 de milhões de pessoas na Nigéria que ficaram sem casa devido às cheias. Isto aconteceu na mesma semana. Isso é que é verdadeira disrupção, houve vidas interrompidas. E quase não foi notícia."

Uma COP no Egito e duas semanas de protestos em todo o mundo

Este domingo começa, no Egito, "essa grande encenação" que é a COP27. Matilde Ventura não acredita que esta conferência seja "um mecanismo sério para combater as alterações climáticas", tratando-se "apenas de uma estratégia de greenwashing, em que os países dão a impressão de estar preocupados mas acabam por não fazer nada". Num ano em que diversos países, como o Paquistão, estão a enfrentar cheias dramáticas, enquanto na Europa se vivem ondas de calor inéditas e uma seca terrível, "é expectável que o foco da COP seja a crise energética. A guerra na Ucrânia vai servir como pretexto para adiar a transição energética", denuncia esta ativista. Como se tudo isto não bastasse, a conferência realiza-se num país que é governado por uma ditadura e onde há mais de 60 mil presos políticos, acusa.

"Aquilo que podemos esperar da COP27 é o mesmo que tivemos em anteriores COP: o falhanço. Mas há uma coisa boa: é que, todos os anos, numa semana de novembro, fala-se de justiça climática", diz Matilde Ventura.

E é isso mesmo que os ativistas pretendem aproveitar. "Não nos resignaremos ao fracasso climático! Convocamos uma Quinzena de Ações que começa no dia 7 de novembro e uma marcha no dia 12 de novembro, para exigir políticas climáticas compatíveis com a realidade climática", explicam no seu manifesto os ativistas portugueses.

A primeira ação será já na segunda-feira: a ocupação de duas escolas secundárias (António Arroio e Liceu Camões) e quatro faculdades (faculdades de Letras e de Ciências da Universidade de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova, e Instituto Superior Técnico). Os ativistas portugueses respondem assim ao apelo internacional para uma ação de ocupação em escolas de todo o mundo: neste momento há mais de 40 instituições de ensino com ocupações agendadas - em locais tão distintos como Praga, na Chéquia, ou Abidjan, na Costa do Marfim.

"Nestes seis estabelecimentos de ensino foi possível possível reunir núcleos de pelo menos 20 ativistas, alguns têm 40. Mas há muito mais pessoas a trabalhar nisto e a dar apoio", garante Alice Gato. Nos últimos dias, sucederam-se as ações de formação em desobediência civil e está também disponível no site do movimento um "Guia de como ocupar e planear", para que todos saibam o que dizer e como o fazer. 

Protesto na refinaria de Sines

Na lista de reivindicações estão dois pontos: o fim dos combustíveis fósseis até 2030 em Portugal e a demissão do ministro da Economia, António Costa Silva. "Um ministro que foi CEO de uma petrolífera e que, já depois de estar no Governo, mostrou que estaria recetivo a que empresas de gás viessem para Portugal, não é uma pessoa que esteja preocupada com o clima. Não nos dá qualquer garantia que as pessoas sejam a sua preocupação prioritária, e não o lucro", acusa a porta-voz. Além destas, cada estabelecimento de ensino tem as suas próprias reivindicações. A FCSH, por exemplo, quer o fim da ligação da faculdade ao Banco Santander, "que investe em combustíveis fósseis", enquanto a faculdade de ciências exige a criação de uma Faculdade das Ciências Climáticas, onde a ciência esteja verdadeiramente ao serviço do planeta.

Haverá outras ações, ainda não divulgadas, ao longo destas duas semanas, promovidas pela coligação nacional “Unir contra o fracasso climático”, nomeadamente uma manifestação, marcada para 12 de novembro, dia mundial pela justiça climática, no Campo Pequeno, em Lisboa.

"Vamos ocupar as escolas porque são o lugar onde supostamente nos deveriam estar a preparar para o nosso futuro mas isso não está a acontecer", explica Alice Gato. "Não estamos a lutar por nada mais nem nada menos do que o nosso futuro", diz. Se isto não vale a pena, então o que vale? Alice Gato é perentória: "Não sabemos o que vai acontecer nestas ações, mas sabemos exatamente o que vai acontecer se não fizermos nada: a nossa civilização vai acabar."

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