«Ver a seleção é o momento em que posso deixar sair o fascista em mim»

6 out 2022, 09:12
Rui Zink. Foto Rui Maio Sousa

«Um café com» Rui Zink. Uma conversa sem pausas entre ideias e piadas, coisas sérias e ironia com o escritor e professor que ensina o «poeta» Cristiano Ronaldo nas aulas

Rui Zink, 61 anos, é escritor com dezenas de livros publicados, da ficção ao ensaio à literatura infantil, em formatos convencionais ou inovadores. Traduzidos também em várias línguas, do japonês ao bengali, passando pelo português, como ele diz. No Brasil o livro «O suplente», que tem o universo do futebol como cenário, passou a ter por título «O reserva». É também, entre muitas outras coisas, professor de literatura na Universidade Nova de Lisboa e ensina o «poeta» Cristiano Ronaldo nas aulas. 

A conversa com Rui Zink parte do futebol e vai por ali fora, lançada. Salta entre ideias e piadas, coisas sérias e ironia. Sem aviso e sem parêntesis a assinalar em cada momento os sorrisos ou risadas, de quem fala e de quem ouve. 

Foto: Rui Maio Sousa
Foto: Rui Maio Sousa

Que relação tem com o futebol?

Gosto de ver, não percebo nada e gostava de ser comentador desportivo, precisamente porque tenho as mesmas competências que os outros.

Quais são as primeiras memórias que tem de futebol?

São óbvias. Ver o Eusébio com o capitão Coluna ou o Águas, no Benfica. Colecionar os cromos dos grandes jogadores, como o Damas. O meu pai falava-me muito dos Cinco Violinos. E depois ver o Leão da Estrela… Tenho memórias boas de ir ao Estádio da Luz, quando havia o Terceiro Anel lá em cima. O meu pai estava em África, era lá professor, e quando podia vir cá - na altura não havia voos low-cost - levou-me algumas vezes. O meu pai gostava muito de discutir futebol. Eu não percebia nada, até porque já era míope. Não conseguia ver à distância o que acontecia. Mas percebi que o futebol é um universo. Era o meu pai começar a discutir com outra pessoa, a certa altura começarem quase à tareia e eu não compreender, porque pensava que naquela bancada eram todos do mesmo clube. E eram. Lembro-me das pessoas que iam de transístor para os jogos. Eu não compreendia até um dia perceber a diferença entre ouvir o futebol na telefonia ou ver os comentários na RTP. São memórias que tenho. Como aquele chapéu à chinês, como se estivéssemos a trabalhar num arrozal, que eu adorava pôr. E os vendedores de Sumol. Enfim, era bom.

Que idade tinha nessas primeiras idas ao Estádio da Luz?

Eu imagino que quatro anos. Muito jovem, mesmo.

Portanto, não era o miúdo vidrado, que sabia as equipas de cor?

Não, pelo contrário. Enfim, assim assim. Por um lado, mesmo que um miúdo não fosse vidrado tinha de o ser se queria ser integrado. Lembro-me de na minha infância a malta falar de carros e toda a gente percebia de carros, e eu percebia apesar de tudo mais de futebol do que de carros. É a idade em que espontaneamente os nossos interesses são canalizados. O meu interesse no futebol como jogo não era grande, mas comecei a perceber o futebol como um instrumento para sermos aceites no grupo ou não. Depois percebi logo quando é que se está do lado dos mais fortes ou dos mais fracos. E eu a certa altura decidi estar do lado dos mais fracos. Embora o meu pai fosse benfiquista, o meu tio fosse benfiquista e eu anos mais tarde tenha sido por 30 segundos nadador internacional do Benfica. Perdeu-se uma carreira.

Como é que foi isso?

Eu comecei a fazer ginástica no Benfica aos três anos porque aos dois ia morrendo de asma. E o meu santo avô viu que eu ia morrendo, que ia ser um rapaz fraco e asmático, e pôs-me na ginástica. O meu avô estava-se nas tintas para os clubes, mas a sede do Benfica era a dois minutos de nossa casa. Era mesmo ali na rua do Coliseu.

A sede do Jardim do Regedor?

Sim. A ginástica era ali, no terceiro andar. Comecei a fazer ginástica com o professor Lemos, do qual tenho ainda uma boa memória. Vestia-se sempre de branco e gostava muito de ensinar. Tenho uma memória encantada que me está a ser dada neste momento, de ir fazer ginástica ao Benfica duas ou três vezes por semana. Era sócio do Benfica, tinha de ser. Foi muito tempo, dos três até aos nove anos. Só que eu descobri, para aí aos seis anos, que era do contra. E começou-me a irritar esta coisa de ser do clube que está sempre a ganhar. As crianças não se metem em política, também não têm ideologia, essa palavra terrível, mas já se nota se vamos ser bufos ou se vamos ser bufados. Muito daquilo que chamamos escolhas políticas são na verdade escolhas animais. Isso viu-se quando de repente o Porto se tornou o clube que ganhava sempre títulos, e imensas crianças país fora aderiram ao Porto, porque gostavam de estar do lado do vencedor. No meu tempo de criança era o Benfica do Eusébio, do Coluna, do Nené, o incrível Nené, que era uma espécie de antepassado do Jardel, porque parecia que estava sempre à mama mas era altamente eficaz. Não sei se já havia foras de jogo nessa época. Mas não devia haver para o Benfica…

E isso de ser do contra no que é que deu?

Comecei-me a irritar e disse: ‘Epá, quem é que aqui está na linha de água e mostra coragem?’ E um clube que estava sempre ora a passar para a segunda ora para a primeira, e que se levantava, e que não tinha dinheiro mas ia sempre à luta, eram os Lobos do Mar do Varzim. E aí eu virei varzinista. Nunca tive coragem de contar isto aos meus amigos da Póvoa, mas é verdade. Comecei a dizer que era do Varzim. A certa altura, as pessoas perguntavam: ‘Ele é do Varzim, mas então, ele é de que família?’ Não compreendiam, porque o Varzim é um daqueles clubes das pessoas da terra. As pessoas da terra têm muitas vezes dois clubes. O clube da terra, pelo coração, e o clube com possibilidade de ganhar campeonatos, para não morrer estúpido. É chato também ver sempre a nossa equipa a levar na ripa.

No Varzim atraiu-o também o facto de se chamarem Lobos do Mar?

Atraiu-me. O Lobos do Mar e o estarem sempre ora a descer ora a subir de divisão. E isto leva a uma coisa que aprendi com a única pessoa em Portugal com quem aprendo alguma coisa sobre futebol, que é o Manuel Serrão. Ele explicou-me há muito tempo, quando fomos fazer umas 24 horas de karting a Évora e éramos completos nabos: ‘Não podemos tentar ser bons. Porque os únicos tipos que se destacam numa prova destas são os primeiros e os últimos. Portanto, se estiver a correr demasiado bem, temos de tentar voltar a boicotar-nos.’ E de facto não me lembro dos outros clubes todos que estavam na I Divisão, mas lembro-me do Leixões, do Atlético e do Varzim.

Foi uma relação platónica a que manteve com o Varzim, ou chegou a praticar, a ir ver jogos?

Foi platónico durante 40 anos, até que finalmente consumámos o ato, em 1998 ou 99. Devo dizer que foi uma noite de núpcias magnífica, porque foi por essa altura que começou o festival Correntes D’Escritas, o maior festival português e um dos festivais de referência do circuito da Fórmula 1 da literatura. Comecei a ir nos primeiros anos, quando muitas vezes o vereador me dizia: «Ninguém de Lisboa quer vir, só o Rui. Vêm pessoas do México, de Angola…» Eu tive que lhes explicar que para as pessoas que vêm do México e de Angola é uma passeata, sobretudo se a viagem é paga. Para quem vem da capital já não é tão exótico. Então uma vez eu, o Manuel Rui e mais um grupo de pessoas, poetas e escritores, fomos ver um jogo. Por acaso vi um jogo em que o Varzim ganhou ao Benfica e eliminou o Benfica. Fiquei sócio honorário do Varzim e tenho uma camisola assinada por todos os jogadores, salvo erro da época de 2001.

                                                                                                                       Foto: Rui Maio Sousa

Até hoje identifica-se como adepto do Varzim, apesar da ligação inicial ao Benfica?

Sim. Hoje, quando preciso de ir ali para os lados de Benfica, até vou dez quilómetros à volta só para não passar à frente do estádio. Por lealdade para com o Varzim. Ainda por cima foi na Póvoa de Varzim que nasceu Eça de Queirós. Pessoas ignorantes dizem que foi em Vila do Conde, que é mesmo ali. Mas as pessoas mais iluminadas sabem que foi na Póvoa de Varzim.

Portanto, havia muitos astros a conjugar-se para o aproximar da Póvoa e do Varzim…

Havia. Eu nasci na rua onde nasceu a Amália, em Lisboa. E onde há uma placa do século XIX, porque alguém decidiu que lá morreu o Camões. Portanto, é evidente que o meu clube tinha de ser o do quarto grande, que é o Eça. Estou a fazer bem as contas, quatro grandes. A Amália, o Camões, eu e o Eça.

Eu ainda ia perguntar quem era o quarto…

Pois.

Quanto à natação no Benfica, como foi?

Eu aprendi a nadar muito tarde. Sendo asmático, tive uma operação que me induziu em coma, quando tinha sete anos, e fiquei com frio. Tinha sempre frio. O meu avô pôs-me a fazer natação em São Bento, nos Bombeiros, e eu tinha sempre que sair, por causa do frio. Até que fui para os Bombeiros da Graça, que tinham um tanque mais pequeno, mas o instrutor era muito bom. Tomos temos noção que há professores que até não sabiam muito da matéria, mas souberam dar-nos gosto na matéria. E outros que tinham os pergaminhos todos, mas são uns nabos. Eu com os treinadores de natação que tinha tido antes sentia-me como se sentem as futebolistas da seleção feminina espanhola com aquele treinador. Não funcionava. Este era um homem rude, mas por alguma razão eu aprendi logo a nadar. Era um rabugento como o capitão Haddock. Acho que era o sargento Bastos. Parecia um gorila, mas com carisma. Depois fui para o Ateneu Comercial, ali na Baixa. Um dia ganhei uma prova com alguma facilidade, mesmo partindo atrasado, e estava lá um olheiro que veio desafiar-me para ir para o Benfica. No Benfica ainda ganhei algumas provas. Portanto, eu era vagamente prometedor. Só que o desporto de alta competição não é para quem tem família que nos obriga a estudar. Eu ia para o estádio do Benfica às seis da tarde, andava uma hora e tal a correr à volta do estádio, depois íamos para dentro fazer musculação. Ainda hoje tenho um peitoral grande, de fazer inveja a muita manequim francesa, graças à natação. Só depois dessas duas horas e tal a seco é que íamos numa carrinha do Benfica para a piscina. Ficávamos mais umas duas horas a nadar e chegava a casa à meia noite e tal. Obviamente, de manhã estava a dormir nas aulas. E o meu avô e o meu pai não acharam graça à brincadeira. A verdade é que também rapidamente no Benfica desistiram de mim. Perceberam que eu não era tão bom como prometia. Era prometedor, mas não era cumpridor. Aquilo exigia muito e pronto, acabou ali. Naquela altura o clube bom na natação em Portugal era o Dafundo. Mas também começou a mudar quando veio um novo treinador para o Benfica chamado Yokochi, cujo filho veio a ser campeão durante vários anos.

E finalista nos Jogos Olímpicos, o Alexandre Yokochi…

Sim. Uma das coisas que o Yokochi fez foi uma limpeza de balneário. Portanto, eu saí pelo meu próprio pé, mas suspeito que mais uns meses e era amistosamente corrido.

Numa prova de natação, aos 10 anos (Foto arquivo pessoal)

Depois passou a praticar karaté, não foi? Ainda pratica?

Hoje é mais difícil. Pratiquei karaté num dos primeiros grandes clubes de karaté de Lisboa, com um professor incrível, o Vilaça Pinto, que tinha tirado o cinto preto no Japão. No liceu Pedro Nunes, que tinha talvez o melhor ginásio do país naquele tempo, para servir um liceu público para ricos. Tão para ricos que posso contar uma história como um parêntesis. Há uns tempos fui ao centenário do Pedro Nunes e estávamos a jantar, as pessoas da minha geração, e noutra mesa estavam uns tipos com 70 e tal anos e eram homens e mulheres. Eram homens e mulheres que tinham sido colegas de liceu. Então eu percebi a terrível hipocrisia. É como a história do menino da Católica que entra para medicina por ser filho de um benemérito. A terrível hipocrisia do salazarismo: rapazes e raparigas podiam ser colegas de liceu enquanto eram só os privilegiados. Quando o Pedro Nunes começou a abrir-se à classe média, aí meus senhores, pára essa porcaria. Quando eu entrei em 1973 era um liceu só de rapazes. Mas anos antes, quando era só para a elite, podiam fazer tudo, até bacanais e Ballet Rose. Isto é a terrível hipocrisia destes sistemas.

E o karaté?

O liceu cedia o espaço e em contrapartida eles tinham de dar um grande desconto para os alunos. E eu assim tive o privilégio de ter grandes mestres. Vieram cá dar estágios japoneses que eram o topo do topo. Veio o Kanazawa, que é o Bruce Lee japonês. O karaté foi muito bom porque eu tinha asma, a adolescência foi terrível para mim porque muitas vezes ia parar ao hospital pelo meu próprio pé de madrugada, a São José, para tomar uma injeção de aminofilina, porque estava com uma crise de asma. O karaté ajudou-me muito, depois da natação. É um desporto completo. É melhor como instrumento de educação do que de autodefesa. Tem aquela coisa oriental que é trabalhar o corpo e também a cabeça. Aprende-se muito sobre disciplina e controlo. Eu escrevi um romance passado no Japão que foi um sonho que se realizou, um bocadinho como o Varzim. Consumou-se o ato. Com o Japão também, o meu fascínio finalmente aos 40 anos deu certo. Tenho lá dois livros, um meu, de ficção, e uma antologia do conto contemporâneo português. Nesse livro eu decidi dividir os capítulos com os princípios do karaté que nós dizíamos, no nosso japonês imaginário, no início e no final de cada sessão: espírito, entrega, dedicação, respeito… São princípios bons para uma pessoa aprender uma relação com o mundo.

Num estágio de karaté, em 1976 (Foto arquivo pessoal)

A propósito dos seus livros. «O Suplente» usa o universo do futebol, embora o livro não seja sobre futebol.

Sim. O livro é uma tragédia. Partiu de uma tragédia que aconteceu à família de um amigo meu. Eu sabia o tema, mas não sabia como agarrá-lo. Andei meses até descobrir que obviamente devia começar com uma ida ao estádio dos homens todos da família, várias gerações. Um dia feliz. E um dia feliz em termos geracionais só pode ser uma ida ao futebol. Tirando agora. Agora parece que temos de tirar a camisola. Mas naquele tempo podíamos ir de camisola. Cá está, é uma vantagem. Afinal no tempo do Salazar é que era bom. Uma criança podia ir de camisola do clube ver o jogo. Isto é que é democracia?

O futebol também tem uma linguagem e envolvimento muito próprios. Isso é apelativo para um escritor?

É. Mas há outros para quem é mais apelativo. Há escritores portugueses que até fazem gala de dizer: ‘Ah, eu não gosto nada de ópera, gosto é de futebol’. Dizer que se gosta mais de futebol do que de ópera era provocador nos anos 60, quando o futebol era uma coisa do povo, mas hoje é um lugar-comum e uma parvoíce. Mas o futebol é um mundo interessante. É o nosso Talmude. Se pensarmos em Portugal como uma grande escola judaica, o futebol é o assunto que nós discutimos infinitamente sem chegar a lado nenhum, mas que ajuda a treinar a cabeça. Ajuda a treinar a argumentação, a questionar a verdade. ‘Foi falta! Não foi falta!’ Depois uma pessoa cita os grandes rabinos. ‘Olha, o Peyroteo dizia isto. Lembra-te que no tempo do Coluna…’ É a nossa discussão talmúdica. O futebol, para o melhor e para o pior, é a discussão infinita que é a filosofia portuguesa, a inteligência portuguesa, a dialética portuguesa. Aprendemos mais a ser advogados de barra discutindo futebol do que na Faculdade de Direito. O que não é difícil. Aprende-se a argumentar, a escrever, a questionar. O futebol é a nossa aula de Shakespeare, porque aprendemos também o poder de exaltar paixões da língua falando de futebol. Depois há aquelas metáforas todas incríveis da rádio. O Fernando Assis Pacheco tem um livro genial à volta de futebol. Há muitos livros muito bonitos à volta de futebol. Eu escrevi um livro feio. Por causa de uma coisa que me interessou, que é a angústia do suplente. O prémio Nobel Peter Handke escreveu um livro que eu li nos anos 70…

«A angústia do guarda-redes antes do penálti»…

Sim. Na verdade o livro não é sobre angústia nenhuma e como já muita gente disse está errado, porque o penálti é o único momento em que um guarda-redes não tem angústia. É o único momento em que se invertem os papéis. Eu tenho a opinião que os guarda-redes adoram penáltis. Porque é o momento em que se podem vingar dos avançados. Um sacana de um avançado falha 300 golos, marca um e é um herói. O guarda-redes defende 300 bolas, falha uma e é um frango. Vejo o penálti como a Revolução de Abril dos guarda-redes. Imagino os guarda-redes a dizerem: ‘Ah é, meu cabrão? Pois agora és tu que te lixas. Eu provavelmente não vou conseguir defender. Mas se eu defender, epá, tu tramas-te completamente e eu durante uns meses, até ao próximo frango, vou ser o herói da festa.’ Portanto, não há angústia. Para mim, angústia é o suplente. O suplente é o tipo que, mesmo que não seja má pessoa, está a rezar para que o outro parta uma perna… Porque há guarda-redes que passam temporadas inteiras sem jogarem. E depois há aquele jogador que é nomeado pelo Fernando Santos para a seleção, mas que fica no banco sempre, embora seja convocado, o que deu agora a revolta do Rafa. ‘Eu vou para lá, eu sei que já estou velho, ao contrário do outro, cujo nome não podemos dizer. Eu sei que já estou velho, aos 29 anos. Vou para lá para estar no banco? Epá, não me apetece.’ Porque ser jogador de futebol é uma seca, exceto o momento em que estamos no campo. Tirando isso é treinos, viagens, esperas no aeroporto. O suplente é muito interessante, porque não é uma pessoa real até ao momento em que entra. E isto infelizmente acontece na vida. Ali, tratava-se da perda de um filho. Toda a gente diz: ‘Epá, vocês ainda são novos, façam outro.’ Sem perceber que aquela criança não era um brinquedo, não era descartável. Era única. Descartáveis somos nós agora, cada vez mais, nesta sociedade empresarial, em que nos pedem para vestir a camisola mas depois nos despedem por Twitter. Interessava-me essa questão. Quão descartáveis nós somos? Quão únicos somos?

Voltando ao futebol. Costuma ver futebol na televisão?

Gosto de ver. Como não sou rico não tenho Sport TV, além de que acho que o futebol vê-se bem em grupo. Mas gosto muito. Gosto de ver a seleção. É o momento em que posso deixar sair o fascista em mim, o patrioteiro primário. Sofro mesmo com as derrotas e alegro-me com as vitórias. Em 2016 fiquei meia hora sentado, sem querer acreditar que Portugal tinha ganho o Euro. E acho que vencer o Euro, já escrevi várias vezes isso, mudou a nossa vida. As coisas que parecem fúteis muitas vezes são fundamentais. E as que parecem fundamentais muitas vezes são estúpidas. Por exemplo, estamos numa época em que dizem: ‘Ai, tens que ter literacia financeira’. Em que os bancos fazem dos clientes escravos. Eu estou com um problema com os gajos da Alfândega, porque não quis pagar 50 euros para levantar livros que são meus. Foram escritos por mim, traduzidos para bengali, publicados na Índia, são exemplares grátis a que tenho direito, e é terrível a Alfândega dizer: ‘Ah, não, quem remeteu é que fez errado.’ Passam a culpa para as pessoas, para o cliente. Isto é uma desumanização que não tem graça nenhuma e a sensação de que enquanto funcionarmos bem somos úteis, depois adeus e um queijo. É como andarem a dizer: ‘Ai que a Segurança Social vai entrar em rutura’. Há mais de 40 anos que se diz isto. É apenas para assustar, roubar e empobrecer os que precisam da Segurança Social agora.

Isto vinha a propósito do Euro 2016, que diz que mudou a nossa vida.

Portanto, a literacia financeira é uma treta. Precisamos é de ser pagos e que as pessoas que pagam o nosso trabalho sejam honestas. Agora, estamos a perder a literacia poética, que é mais importante porque tem a ver com a vida. O Agostinho da Silva dizia que cada vida devia ser um poema. Pensamos sempre que poeta é aquele tipo que está com o pincel a tentar encontrar palavras caras. Não. Poesia é encontrar as palavras mágicas, as palavras certas, para expressar algo que é difícil de expressar por palavras. Como o Ronaldo em 2016, ao falar lá para o - como é que se chama? -, o Moutinho, nos penáltis contra a Polónia. «Vem vem, tu bates bem. Se perdermos que sa foda.» Vem vem tu bates bem, isto é um grande poema. Eu já dediquei uma aula de duas horas a isto. É um grande poema porque tem ritmo, tem música, tem melodia. É sugestivo, tira o peso da responsabilidade, mas ao mesmo tempo dá confiança. Para mim é tão bom como o discurso de Azincourt do Henrique V do Shakespeare. É um grande discurso de guerra. Nós às vezes a falarmos somos prolixos, mas ele tem o tempo certo, é feito no momento certo e tem as palavras todas certas. Até o palavrão está ali certo. Porque se ele dissesse ‘Se perdermos não é desagradável. Se perdermos, olha, não tem importância’, perdia a força. Um palavrão bem utilizado é uma palavra mágica. Aliás, um livro meu, precisamente chamado A Palavra Mágica, tem um conto que é a história do meu primeiro palavrão. Disse-o quando estava a jogar futebol no largo da minha rua. Eu estava a planear dizer aquele palavrão há uma data de dias, porque já começava a sentir-me traumatizado, a ser chamado mariquinhas por não dizer asneiras. Em casa o meu avô não me deixava dizer asneiras. Quando alguém me deu uma carolada comecei a cair e lá disse o palavrão. Disse ‘Merda’. Só que gaguejei e disse com o timing errado. Todos riram. Mas ainda hoje estou orgulhoso. O palavrão é uma palavra. E até melhor que as outras, se não não era palavrão, era palavrinha. É uma coisa maravilhosa.

De volta ao Euro 2016…

Foi muito bom para a nossa autoestima. E foram duas seguidas. No ano seguinte foi a vitória na Eurovisão. Agora estamos tristes por termos perdido com a Espanha. Não devíamos era ter perdido com a Suíça, onde não esteve o Ronaldo. Mas agora dizemos: ‘Bom, não vamos à final deste torneio, mas tudo bem, ganhámos o primeiro’. Em tantas áreas hoje, houve ali… A tampa do ketchup soltou-se, para citar de novo o Camões. O Camões do século XXI. Tudo isto é uma inspiração. Eu estava a ver a final do Euro com o meu filho mais novo, estávamos nos Estados Unidos, e obviamente, tal como 11 milhões de portugueses, não acreditávamos. O que eu queria era que não perdêssemos por muitos. Tivemos uma sorte do caraças, tivemos mérito também, mas houve mais sorte do que habitualmente. Foi um milagre. E de repente eu não me consegui levantar. Estavam à minha volta os meus amigos mexicanos, peruanos, americanos, brasileiros, a dizer: ‘Hey, Rui, Rui!’ E eu não me conseguia levantar. Estava em choque. O meu filho também. Eu fiquei com raiva dele, porque pensei: ‘Este filho da mãe tem só 16 anos e já viu Portugal ganhar um torneio internacional’. Eu tive de esperar pelos 55.

Para ele já vai ser uma coisa possível…

Para ele já vai ser. E isto a nível nacional tem sempre impacto. Aquela piada que diz que quando o Benfica perde o marido bate na mulher é uma piada até certo ponto. Tem um fundo de verdade. Quando algo corre mal ao marido na família tradicional, ele depois bate em quem pode. A violência doméstica muitas vezes vinha dessa coisa comezinha que é: ‘Em quem é que eu posso descarregar a frustração e a humilhação?’ Eu falei com o comandante da GNR a seguir ao Euro 2004. Foi maravilhoso, organizámos, foi muito bem organizado, graças ao Carlos Cruz… Ele foi a cabeça da equipa que conseguiu trazer para cá o Euro. A menos que o apaguemos da fotografia, como o Estaline ao Trotsky. Sobre o Euro 2004, eu disse ao comandante da Brigada de Trânsito: ‘Ah, acho que as pessoas até se cumprimentavam melhor’. E ele disse: ‘Nós temos dados objetivos que dizem que houve menos acidentes na estrada, menos picardias, menos atropelamentos, menos mortes.’

Enquanto durou o Euro 2004?

Sim. Porque estava a correr-nos bem. E havia uma paz no mundo. Muitas vezes quando as pessoas são violentas na estrada é porque lhes aconteceu algo mau, ou têm uma pila pequena, qualquer coisa assim. Se uma pessoa está bem disposta com a vida irrita-se menos. O futebol tem isso. Ganhar a Eurovisão, em que éramos sempre últimos - éramos sempre o Varzim -, mais aquela prova importante no jogo-rei, essas duas coisas que muitos idiotas consideram fúteis, foram pilares da estrutura de autoestima e de uma sociedade que já não está inferiorizada. Hoje são sobretudo os comentadores desportivos que dizem: ‘Portugal não tem emenda! Portugal é uma porcaria’. Quer dizer, comentadores desportivos da política, mas é o mesmo. A verdade é que neste momento as pessoas têm uma dose de autoestima como há muito tempo não tinham. E foram esses três feitos. A Eurovisão, o Euro 2016 e o poema de improviso do Ronaldo.

Usa mesmo aquele momento do Ronaldo nas suas aulas?

Às vezes apetece-me usar, outras vezes não. Mas uso com bastante regularidade. Mesmo que haja uma certa brincadeira no discurso, eu não estou a brincar. É mesmo, objetivamente, um texto perfeito. E é um texto com uma força poética grande. Nem todos os poemas têm de ser bonitinhos. O outro grande poema da língua portuguesa para mim, feito em Portugal, é o Dobrada à Moda do Porto do Fernando Pessoa. É um poema que usa a coisa menos poética, que é tripas. E até cometeu um erro, muita gente diz ‘Não é dobrada, é tripas à moda do Porto’. Epá, está bem, vai ressuscitar o Pessoa e diz-lhe isso. O importante é que ele escolheu um prato que é intestinos com feijão para fazer um dos poemas mais nostálgicos da infância que alguma vez se fez. E depois tem lá no meio ‘Houve um dia na infância de toda a gente, num jardim privado ou público, em que brincarmos era o dono dele’. Estou a citar de cor. Na minha infância, quando íamos brincar dizíamos ‘Vamos reinar’. Éramos reis e íamos reinar. Isso estrutura a vida. Na minha infância, as primeiras bolas eram papéis de jornais dentro de uma meia.

Jogou com bolas assim?

Sim. Funcionavam perfeitamente. Era uma maravilha. Fazíamos também a Volta a Portugal em bicicleta nas bermas dos passeios, com caricas. Pelo bairro todo. E podíamos estar a brincar na berma. E os carros que passavam sabiam que havia crianças a brincar e respeitavam. Os meus filhos já não puderam brincar na rua. São coisas estruturantes da vida física e da vida psíquica. Como estes momentos desportivos. São pilares fundamentais. Salvam vidas, salvam casamentos… Dão autoestima e dão identidade, identidade nacional. E fazem com que, por exemplo, uma derrota seja apenas uma derrota, não seja o fim do mundo. Isso é muito bom. Agora, infelizmente o futebol também traz outras coisas. Ocupa um espaço desmesurado, não deixa mais atividade nenhuma acontecer. Eu ontem fui ver uma peça de teatro maravilhosa. Tinha 20 pessoas na sala. E mesmo assim os atores estavam gratos com as 20 pessoas na sala. O futebol ocupa muito espaço nos Telejornais, e às vezes leva à violência. Aquilo que cria espírito de corpo também cria gangues. Enfim, aquelas coisas estúpidas todas. Mas não podemos deitar fora o menino com a água do banho, portanto… Se me disser: ‘Preferia que em vez do futebol fosse o xadrez o estruturante da identidade portuguesa?’ Sim, se calhar pensávamos um bocadinho mais. E tínhamos um jogo de casa, que se pode jogar na sala, não ocupa espaço e não gasta eletricidade. Eu gostaria de muita coisa, mas uma pessoa pode não ser feliz tentando melhorar o que há, mas é muito infeliz tentando mudar radicalmente o que há.

Acha que também falta ao futebol, nomeadamente ao futebol português, alguma ironia? Não se levar tanto a sério?

Sim, isso falta. Mas o problema é que os nossos humoristas, os que têm clube, perdem o humor quando falam de futebol. É terrível. A ironia é como um primeiro-ministro ou um presidente. O cargo é anódino, mas é um bocadinho diferente ser o Hitler ou ser o Churchill. O modo como se cumpre a função é diferente. Há uma ironia gentil, que ajuda a ver o outro lado. Pode ser uma janela que se abre e entra um bocadinho de vento e respira-se melhor. Mas também pode ser usada como o sarcasmo à portuguesa. Aquela ironia que puxa para baixo. Isso é ironia também, mas é avinagrada. É o humor como um exercício de poder. Por exemplo, não tem nada a ver, mas é uma coisa que também dou nas aulas. Há dois ou três anos houve um juiz que acabou a culpar a vítima, o Neto de Moura. Depois houve um programa de televisão do Ricardo Araújo Pereira, um benfiquista convicto, em que cascaram tanto no homem, no juiz do norte, que a certa altura tiveram um jogo com cocós a cair-lhe em cima da cabeça. Aquilo para mim foi o momento em que mudou. Porque de repente eles não eram os humoristas a troçar de um tipo poderoso. Era um gajo poderoso a troçar de um desgraçado. Eu prefiro o Ricardo, ou outro humorista qualquer, o João Quadros, etc, quando apontam as setas para cima. Não gosto muito dos humoristas de seita, de jornal de clube, porque as setas vão sempre numa direção. Ora, a ideia da ironia e do humor é as setas às vezes virem na nossa direção. Fazendo publicidade, dou o exemplo do meu Manual do Bom Fascista, em que falo também muito de futebol. Até tem uma lição que diz: ‘O bom fascista até gosta de pretos, desde que joguem bem’. No meu Manual há um momento em que eu digo: ‘Também eu tenho alguns destes tiques’. Ou seja, não estou a apontar o dedo a outra pessoa. Não estou a falar do outro. O fascista que desenhei lá até é simpático, assim gorducho com bigode, em vez de ser um ogre medonho. Fascismo é o tipo que não pensa muito que eu tenho dentro de mim. Todos temos. Todos temos momentos brutos. Felizmente, até os grunhos têm também momentos lindos. O que me interessa é o que puxa para cima. Eu não sou fanático do humor, ou de pôr o humor num pedestal. Eu gosto do que nos puxa para cima. No podcast da Má Língua, obviamente as pessoas não nos ouvem tanto para ouvir a voz da verdade, ouvem porque nós vamos puxar as pessoas para cima. A ironia é que vamos puxar as pessoas para cima num programa chamado Má Língua. Acho que foi esse o segredo do programa há 20 e tal anos. No futebol eu vejo às vezes debates em que aqueles tipos começam a rir-se do outro e não estão a ser irónicos. Estão a agredir, a rebaixar. Tirando o Futre e o Manuel Serrão, quando estava num programa desses, e mais alguns. Gostava que houvesse mais gente bem disposta a puxar para cima. Por exemplo, o Manuel Serrão, o Eduardo Barroso e o Fernando Seara, que estiveram naquele programa que durou imenso, são muito amigos e quando podem encontram-se para uma boa jantarada. Em quantos programas desportivos é que isso acontece?  O humorista no futebol deixa de ter humor. Passa a dar tacadas humoradas. Mas isso são farpas. Não é humor no sentido que eu acho bonito, humor que é uma lufada de ar fresco, um balão de criança. É isso para mim que define, no fim do dia, se estamos do lado do bem ou do mal.

É ser menos crispado?

Ser menos crispado. É isso que no fim do dia define a nossa posição no mundo.

«Um café com...» senta o Maisfutebol à mesa com figuras eminentes da nossa sociedade, nomes sem ligação aparente ao desporto, a não ser a paixão. A música, a literatura, o cinema ou a política enredados nas quatro linhas de conversas livres e descontraídas.

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