Negociações com médicos, concurso para o TGV e novas nomeações. O que é que o Governo de gestão de António Costa ainda tem poder para fazer

8 dez 2023, 10:00
António Costa no debate quinzenal (LUSA/ANTÓNIO COTRIM)

A partir desta sexta-feira, o Governo fica limitado a actos de gestão corrente e a decisões de carácter administrativo. Com menos poderes e mais limitações. O que é que, na prática, isto significa?

António Costa pediu a demissão a 7 de novembro. O Presidente da República aceitou e, dois dias depois, anunciou que iria dissolver a Assembleia da República, convocando eleições legislativas antecipadas para 10 de março de 2024. Na comunicação que fez ao país, Marcelo Rebelo de Sousa explicou que decidiu adiar o processo formal de demissão do Governo para "inícios de dezembro", para permitir a aprovação final do Orçamento do Estado para 2023 e a sua entrada em vigor.

Segundo o Presidente da República, impunha-se "a garantia da indispensável estabilidade económica e social que é dada pela prévia votação do Orçamento do Estado para 2024". "A aprovação do Orçamento permitirá ir ao encontro das expectativas de muitos portugueses e acompanhar a execução do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) que não pára nem pode parar com a passagem do Governo a Governo de gestão ou mais tarde com a dissolução da Assembleia da República", justificou. Também por isso Marcelo quis que se realizasse o Conselho de Ministros da última quinta-feira, para o qual estavam agendadas "decisões fundamentais" relacionadas com o PRR. A exoneração do Governo foi formalizada ontem à noite pelo Presidente mas só tem efeitos a partir de hoje (sexta-feira)

O que é um Governo de gestão?

Após a publicação do decreto de demissão, o Governo entra esta sexta-feira em fase de gestão. Segundo o artigo 186ª da Constituição, o Governo está em gestão "antes da apreciação do seu programa pela Assembleia da República ou após a sua demissão". Nesta fase, o Governo fica limitado à "prática dos atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos".

Neste período, O Governo não pode produzir novas leis, apesar de o Parlamento ainda estar a funcionar normalmente. Embora os poderes não estejam defininos em lei, o Tribunal Constitucional considerou, num acórdão de 2002, que um governo em gestão está limitado a praticar atos "inadiáveis" e "estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos" -  o que implica, por exemplo, o pagamento de salários e a preservação dos contratos públicos já em vigor. 

O que são atos inadiáveis?

Este é "um típico conceito indeterminado" que marca compromissos assumidos pelo Governo antes da demissão do seu líder e que não podem ser adiados, explicou à CNN Portugal o constitucionalista Jorge Pereira da Silva. "É o caso, nomeadamente, do aumento do salário mínimo este ano, uma medida já acordada e cujo cumprimento não extravasa as competências de um Governo de gestão". Na mesma linha, o aumento das pensões também será levado à prática.

A classificação de uma medida como um "ato inadiável" é da responsabilidade do governo de gestão, o que deixa a interpretação "num campo aberto". Mas há algumas regras que devem ser observadas. "Têm que se cumprir os prazos de concursos já abertos e compromissos já assumidos", explica à CNN Portugal o constitucionalista José Bacelar Gouveia, acrescentando que, juridicamente, "o Governo deve limitar-se a praticar os atos realmente urgentes e que não sejam inovadores, ou seja, que não impliquem novas opções políticas, medidas que não executou enquanto esteve em funções". Isto para "evitar que sejam postas em prática medidas populistas" que depois poderiam ser utilizadas como alavanca durante a corrida eleitoral. 

O Governo pode continuar as negociações com as várias classes profissionais?

Já depois de ter apresentado a demissão, o Governo de António Costa anunciou um acordo com os médicos do SIM. Professores, enfermeiros e outros profissionais da função pública têm feito várias reivindicações que contavam ver atendidas pelo Governo que entretanto caiu.

Nos termos da lei, explica Jorge Pereira da Silva as negociações já iniciadas "podem continuar desde que não haja uma alteração demasiado grande aos termos que já começaram a ser ajustados". No entanto, esta é uma das "zonas cinzentas" do Governo de gestão.

A privatização da TAP pode acontecer antes das eleições?

Entre os constitucionalistas, é consensal que o projeto de reprivatização da TAP, que foi vetado pelo Presidente da República no final de outubro, é "para esquecer". Não se trata de um tema "inadiável", consideram os especialistas ouvidos pela CNN Portugal.

E o TGV vai mesmo avançar?

De acordo com o Expresso, o Governo quer lançar o concurso para o primeiro troço da nova linha de alta velocidade Lisboa-Porto no próximo mês de janeiro. A candidatura do projeto a fundos europeus tem de obedecer a prazos específicos o que levou o primeiro-ministro em exercício a "sinalizar a necessidade de acordo com Luís Montenegro e novo líder do PS".

Segundo o jornal, o projeto do TGV está apenas à espera que a Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos (UTAP) conclua o trabalho técnico sobre a viabilidade jurídica e financeira do projeto. Assim, o concurso avançará no prazo previsto, em janeiro de 2024, cumprindo o calendário e com "isso fortalecendo a candidatura aos fundos europeus ao abrigo do Connecting Europe Facility", refere o jornal.

Esta, porém, não é uma decisão consensual. O constitucionalista José Bacelar Gouveia considera que esta "é um decisão política com alguma complexidade e que envolve muitos milhões de euros", pelo que não deveria ser tomada por um Governo em gestão. "Acredito que, dada a situação política, os prazos poderão ser negociados com a União Europeia", defende. 

O projeto de alta velocidade não é o único que pode derrapar com a queda do Governo. Também a decisão do local para o novo aeroporto de Lisboa - que deveria ser tomada em janeiro - e o arranque do novo hospital de Lisboa Oriental - cujo contrato com a Mota-Engil ainda não foi assinado - irão muito provavelmente sofrer atrasos.

"Boys & girls": as nomeações e contratações vão continuar? 

Marcelo Rebelo de Sousa já deixou o aviso:  "É muito simples, tudo o que diga respeito ao PRR eu serei muito aberto e generoso. Tudo o que for lançar e aplicar no terreno essas verbas vai seguir. Tudo o que for diplomas novos do Governo, depois de dissolvida a Assembleia da República, vou analisar decreto-lei a decreto-lei para saber ser é mesmo muito importante nos dois meses e meio que falta até às eleições para a economia do país e, sobretudo, para a aplicação do PRR."

"Nesta fase é muito importante o papel do Presidente da República na fiscalização dos atos do Governo, é ele que tem de promulgar ou não as leis. No entanto, as portarias e decretos do conselho de ministros não têm de passar pelo PR e é aí que se decidem, por exemplo, a abertura de concursos e as contratações e nomeações", explica José Bacelar Gouveia. "Há limitações jurídicas, mas, depois, politicamente tem que haver alguma auto-contenção, é uma questão de bom senso", sublinha.

"Se houver concursos para lugares que já estejam a decorrer ou com prazos que têm de ser cumpridos, o Governo terá de dar seguimento aos processos, mas penso que se deveria abster de fazer outras nomeações e contratações", diz este constitucionlista, lembrando o que acontece nas autarquias, que, de acordo com a Lei n.º 47/2005, de 29 de Agosto, estão impedidas de, entre outras coisas, fazer contratações e nomeações durante o período de "gestão corrente".

Quando é que teremos um novo Governo?

O primeiro-ministro e respetivo executivo continuam em funções até à posse do seu sucessor e do novo Governo, e só nesse momento são exonerados. Assim, e uma vez que as eleições estão marcadas para 10 de março, o executivo funcionará com restrições durante cerca de quatro meses até à tomada de posse de um novo Governo, o que só deve acontecer em abril.

Os deputados continuam em funções?

O Parlamento continua a funcionar normalmente até ao dia 15 de janeiro. Os deputados aprovaram o Orçamento do Estado de 2024 e vão continuar o seu trabalho habitual para concluir os diplomas que ainda seja possível até à data prevista para terminar a legislatura.

Mas, durante esta fase, não haverá debates com o primeiro-ministro nem debates setoriais com os ministros.

O que fará a Assembleia da República até janeiro?

"A redação final do Orçamento começa a ser feita no dia 14 e vai até perto do Natal, espero que não seja até final do ano", disse o Presidente da República. "Até lá os deputados devem estar em funções. Por outro lado, é importante porque uma das condições do reembolso do próximo PRR, que são muitos milhares de milhões, é o estatutos das ordens profissionais serem concluídos. Chegaram a Belém há uma semana, são 29, estou a apreciá-los. Já promulguei oito ou nove, provavelmente vou vetar outros tantos e tenho de dar à Assembleia da República tempo para apreciá-los e depois eu promulgá-los", explicou Marcelo Rebelo de Sousa em relação ao prazo que definiu para o Parlamento.

"Para não prejudicar a economia portuguesa, a Assembleia mesmo até ao fim, mesmo em janeiro, se for necessário, tem plenários para votar essas e outras leis, mas essas são muito importantes para o PRR", defendeu.

E depois da dissolução do Parlamento?

Depois de publicado o decreto da dissolução do Parlamento, entrará em funcionamento uma comissão permanente, composta pelo presidente e vice-presidentes da Assembleia da República e 42 deputados indicados pelos partidos, de acordo com a representação parlamentar. Este é um órgão sem competêncaias legislativas, a não ser em casos excecionais.

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