Você trabalha na TAP? Num hospital? Na polícia? Dá aulas? Tem de renovar o CC? Sendo assim: veja como (e se) um governo de gestão tem impacto na sua vida

8 nov 2023, 08:00
António Costa apresenta a demissão (Lusa/ José Sena Goulão)

Após demissão do chefe do Governo, o país volta a ter um governo de gestão e aquilo que pode fazer é "muito limitado". Reprivatização da TAP "é para esquecer", sublinha constitucionalista Jorge Pereira da Silva

A demissão de António Costa vai levar o país para uma nova situação de governação em gestão com “poderes limitados”, o que colocará em enorme risco dossiers estruturais, como a privatização da TAP, as negociações com os médicos ou a aprovação do Orçamento do Estado para 2024

Segundo a lei, o Governo entra em gestão “a partir do momento em que o Presidente da República aceite o pedido de demissão do primeiro-ministro”, explica o constitucionalista Jorge Pereira da Silva, ex-diretor da Escola de Lisboa da Faculdade de Direito. Algo que Marcelo Rebelo de Sousa já fez através de um comunicado divulgado na página da Presidência da República. Mas para que esta aceitação seja efetiva, o Presidente terá de a formalizar, assinando o respetivo “decreto de demissão do primeiro-ministro”, sublinha o constitucionalista.

A partir do momento que o faça, o Governo fica limitado aos atos estritamente necessários para a manutenção “do dia-a-dia do funcionamento da máquina administrativa” - o que implica, por exemplo, o pagamento de salários e a preservação dos contratos públicos já em vigor. 

No entanto, há uma exceção a esta regra, como saliente Jorge Pereira da Silva: a dos “atos inadiáveis”. Este é “um típico conceito indeterminado” que marca compromissos assumidos pelo Governo antes da demissão do seu líder e que não podem ser colocados de parte. “É o caso, nomeadamente, do aumento do salário mínimo este ano, uma medida já acordada e cujo cumprimento não extravasa as competências de um Governo de gestão”. Na mesma linha, o aumento das pensões também será levado à prática.

A classificação de uma medida como um “ato inadiável” é da responsabilidade do governo de gestão, mas tem de obedecer a uma série de regras o que deixa a interpretação “num campo aberto”, esclarece este constitucionalista. Entre elas, há a “preocupação de não executar medidas emblemáticas do programa eleitoral que não tenham sido cumpridas até agora” - isto para “evitar que sejam postas em prática medidas populistas” que depois poderiam ser utilizadas como alavanca durante uma possível corrida eleitoral.

Zonas cinzentas e zonas claras

Se há situações em que é óbvio o que um Governo de gestão pode e não pode fazer, também é verdade que há situações menos claras. A negociação do Ministério da Saúde com os médicos com vista a alcançar um acordo salarial, que já dura há 18 meses, pode, por exemplo, ser interpretada como um ato inadiável e prosseguir num futuro governo de gestão. Mas “esta é uma zona cinzenta”, sublinha Jorge Pereira da Silva. 

Nos termos da lei, “as negociações podem continuar desde que não haja uma alteração demasiado grande aos termos que já começaram a ser ajustados. Não me parece que o Governo, mesmo se quisesse, de repente pudesse oferecer tudo aquilo que as classes médicas estão a reivindicar”. O Governo, por seu lado, já garantiu que as negociações vão continuar.

Fora dessas zonas cinzentas, parece estar a decisão relativa ao novo aeroporto de Lisboa, que tem estado indefinida há mais de 50 anos. E com maior certeza estão as sete propostas de lei que o Governo apresentou para serem aprovadas na Assembleia da República: vão cair por terra.

E entre elas conta-se a proposta de Orçamento do Estado para 2024, mas também a alteração dos regimes jurídicos do Cartão do Cidadão, da Chave Móvel Digital e do Recenseamento Eleitoral e o regime penal aplicável à ofensa à integridade física dos agentes das forças e serviços de segurança. 

"As propostas de lei caducam, como regra, com a demissão dos seus autores", esclarece o fiscalista Rogério Fernandes Ferreira, acrescentando que "só não caducam as propostas de lei das assembleias legislativas das regiões autónomas se já tiverem sido objeto de aprovação na generalidade".

Mas formalmente, destaca Rogério Fernandes Ferreira, o Orçamento do Estado para 2024 terá sempre de ser objeto de uma nova proposta de lei.  "Será sempre um novo Governo e que terá o prazo de 90 dias a contar da tomada de posse para apresentar esta nova proposta de lei de Orçamento do Estado", explica.

A mesma opinião tem a especialista em direito constitucional Maria d'Oliveira Martins. “A demissão do Governo implica, nos termos do artigo 167.º, n.º 6, da Constituição a caducidade de todas as propostas de lei que este tenha apresentado (o que implica a impossibilidade de estas poderem ser discutidas e votadas). Esta caducidade também se aplica à proposta de lei de Orçamento do Estado, como resulta claro (…) da Lei de Enquadramento Orçamental”.

Por outro lado, como o Governo só fica em gestão como os seus poderes limitados após Marcelo Rebelo de Sousa publicar o decreto de demissão de António Costa, teoricamente, “o Presidente da República pode querer publicar o decreto de demissão apenas depois da aprovação do Orçamento do Estado”. Uma ideia que “não parece verosímil, mas é possível”, destaca Maria d'Oliveira Martins.

Aliás, segundo a mesma especialista, há caminhos que o Presidente pode percorrer para tentar acelerar a entrada em vigor do Orçamento do próximo ano. “O Presidente da República pode nomear um novo primeiro-ministro com base na maioria parlamentar que ainda subsiste no Parlamento e, nesse caso, o novo Governo poderia - depois de fazer passar o seu programa na Assembleia da República - apresentar novamente a mesma proposta Orçamental”. Mas seria sempre uma nova proposta de Orçamento.

Já os decretos-lei aprovados em Conselho de Ministros até agora, como o novo regime jurídico para os professores de pré-escolar, ensino básico e secundário, seguem o seu trâmite habitual, sendo que a sua execução encaixa nos limites de um governo de gestão.

Cenário diferente, por exemplo, é o do projeto de reprivatização da TAP que, como foi vetado pelo Presidente da República no final de outubro, deverá “ser para esquecer”, aponta Jorge Pereira da Silva. “O Presidente da República vetou, não há como o governo de gestão voltar a aprovar o documento porque não me parece ter nada de inadiável”.

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