Entre o "francamente não me lembro" ao "apurou-se que o meu filho me enviou um email" passou-se um mês. Marcelo fez um levantamento aos servidores da Presidência da República e encontrou o registo das intervenções no caso das gémeas tratadas com um medicamento milionário no Santa Maria. Este é o filme desses dias
“A minha nora ou o meu filho, se falaram comigo, eu francamente não me lembro”. Foi desta forma que o Presidente da República abordou as suspeitas que sobre si recaem de ter interferido no processo do tratamento milionário administrado no Hospital de Santa Maria, numa investigação inicialmente divulgada pela TVI (do mesmo grupo da CNN Portugal). Esta declaração viria a seguir-se de outra um dia depois da emissão da reportagem do Exclusivo sobre este tema. “Até agora ainda ninguém apareceu a dizer, olhe eu, no dia tantos tal, o Presidente falou-me sobre isto”, referiu a 4 de novembro.
Mais tarde, a 29 de novembro, quando o Ministério Público anunciou a abertura de um inquérito contra desconhecidos por suspeitas de favorecimento neste processo, o Presidente da República garantiu estar “satisfeito” e que não se iria “pronunciar sobre este inquérito”. “Foi sempre a minha orientação”, assumiu, antes de voltar a tocar no assunto três dias mais tarde: “Eu espero pela investigação e respeito sempre os processos e não me pronuncio sobre eles. Naturalmente, como em tudo na vida, se vier alguém que diga que eu contactei, fiz qualquer pressão ou empenho ou pedido, como eu disse, aí eu sou o primeiro a ir a tribunal para esclarecer isso”, afirmou a 2 de dezembro.
Três dias depois, já com a garantia dada de que não se iria pronunciar mais sobre o assunto até à conclusão da investigação, chamou de surpresa os jornalistas ao Palácio de Belém para regressar ao tema. E para assumir aquilo que um mês antes tinha dito que não se lembrava. Não só existiu um email do filho a alertá-lo para a situação das gémeas, como foi esse email que ditou o início da intervenção - a palavra é do próprio Marcelo Rebelo de Sousa - da Presidência da República para esta matéria.
“Apurou-se que, no dia 21 de outubro de 2019, o Dr. Nuno Rebelo de Sousa, meu filho, me enviou um email, em que dizia que um grupo de amigos da família das duas crianças gémeas se tinha reunido e estava a tentar, a todo o transe, que elas fossem tratadas em Portugal. Era uma corrida contra o tempo”, começou por dizer o chefe de Estado.
Este email, obtido após um levantamento pedido aos servidores da Presidência da República ditou, nas palavras de Marcelo, o início de um período de dez dias que marca a intervenção “neutral” da mais alta figura da Constituição portuguesa neste processo. “Como é que foi? O que se passou a seguir? Por que tramitação saiu? Não tenho a mínima das ideias”.
Do email do filho à resposta ao pai das crianças. Os dez dias que abalaram Marcelo
O dia em que Nuno Rebelo de Sousa enviou um email ao pai, a perguntar-lhe “se era possível o tratamento” no Santa Maria - hospital que até então não tinha dado resposta à família -, coincidiu com a altura em que António Costa foi a Belém para apresentar a lista dos 50 secretários de Estado que viriam a integrar o XXII governo. Esse email, no qual Nuno Rebelo de Sousa questionava se “é possível saber se há resposta possível ou não há resposta possível sobre a matéria”, foi despachado pelo Presidente da República no mesmo dia.
No despacho, que Marcelo remeteu para a Casa Civil, o presidente interrogava: “Será que Maria João Ruela, assessora para assuntos sociais, pode perceber do que se trata?”.
Marcelo realçou que este despacho foi o "mais neutral" - "igual ao que deu a N casos", mas não esclareceu se, na informação que reencaminhou para Maria João Ruela, constava a indicação de que o tema tinha sido levantado pelo seu filho.
Demorou dois dias até ser dada uma resposta. Ruela contactou o Hospital de Santa Maria e, no dia 23 de outubro, respondia a Nuno Rebelo de Sousa nos seguintes termos: “O processo foi recebido e estão a ser analisados vários casos do mesmo tipo. Estando a ser analisados doentes internados e seguidos em hospitais portugueses. Sendo que a capacidade de resposta é, naturalmente, muito limitada. E depende inteiramente de decisões médicas do hospital e do Infarmed”, esclareceu Marcelo.
Nesta altura, o Zolgensma, que é utilizado para o tratamento da atrofia muscular espinhal tipo 1, a doença rara de que sofrem as gémeas e cujo medicamento custa dois milhões de euros por doente, ainda não tinha tido autorização para entrar no mercado português. Mas existiam formas de ele chegar às doentes, nomeadamente através de uma Autorização de Utilização Especial que, neste caso específico, em fevereiro de 2020, acabaria por ser pedida e aprovada em dois dias (a um sábado, dia de fecho do Infarmed).
Mas naquele dia, 23 de outubro de 2019, Nuno Rebelo de Sousa não se contentou com a primeira resposta da assessora e, segundo esclareceu o Presidente da República, “voltou a perguntar à Dra. Maria João Ruela, que confirmou, nos mesmos e exatos termos, aquilo que tinha dito por escrito”. Não esclarecendo se esse contacto foi presencial ou por telefone, Marcelo explicou que o filho dirigiu-se, depois, “ao chefe da Casa Civil, que confirmou a informação recebida da consultora (MJR), numa altura em que “já tinha sido dada a indicação dos pais das bebés que era uma situação muito angustiante”.
“A prioridade”, respondia então o chefe da Casa Civil, “é dada aos casos que estejam a ser tratados nos hospitais portugueses. Daí que ainda não tenham sido contactados. Nem é previsível que o sejam rapidamente. O Serviço Nacional de Saúde cobre, em primeiro lugar, as situações de pessoas que residam ou se encontram em Portugal”.
Mesmo depois de ter tido um esclarecimento por parte do Hospital de Santa Maria, no dia 31 de outubro de 2019, o chefe da Casa Civil enviou para o gabinete do primeiro-ministro e para o do secretário de Estado para as Comunidades Portuguesas uma carta, onde integrava a identificação das gémeas e os exames respetivos, na qual estava a expressão ‘chapa’ “para os efeitos que tiver por convenientes”.
Termina aqui, segundo Marcelo, a intervenção da Presidência da República no caso. E sobre tudo o que aconteceu a seguir, o Presidente diz não ter qualquer informação. Aliás, "é para isso que há a investigação da Procuradoria-Geral da República", disse aos jornalistas num auditório descaracterizado no Palácio de Belém, pouco habitual nas suas comunicações ao país, e que não tinha qualquer sinal identificativo da Presidência, para além do homem que a exerce.
Filho de Marcelo não responde, mas mãe das gémeas assume 'pistolão'
Se esta foi a quinta vez que Marcelo Rebelo de Sousa se pronunciou publicamente sobre o caso, de Nuno Rebelo de Sousa ainda nada se ouviu. Confrontado pela CNN Portugal no dia 24 de novembro sobre o seu conhecimento da família das gémeas, o filho do Presidente da República ignorou as perguntas, respondendo apenas “não, obrigado” e “não tenho nada a comentar, obrigado”.
No entanto, uma gravação obtida pelo programa Exclusivo com Sandra Felgueiras, mostra a mãe das gémeas a assumir a existência de uma cunha/pistolão presidencial. “Nós usámos os nossos contactos. Foi aí que entrou o pistolão. Eu conhecia a nora do Presidente, que conhecia o ministro da Saúde, que mandou um email para o hospital e disse: 'E o caso das meninas? Começaram a receber ordens superiores'", afirmou.