Do tratamento milionário aceite em dois dias à nacionalidade em "tempo recorde". Seis mistérios do caso das gémeas tratadas no Santa Maria

Henrique Magalhães Claudino , Com Nuno Guedes - Notícia atualizada às 14:18
2 dez 2023, 08:00

À CNN Portugal, vários especialistas explicam como os contornos do caso que envolve o tratamento de milhões de duas gémeas luso-brasileiras revela "uma falta de normalidade" perante a realidade da indústria dos medicamentos. Advogado da família das gémeas reitera que mãe “contatou, de forma legal, sem pressões e qualquer tipo de uso de influências, todas as entidades que a poderiam orientar no alcance de uma solução a que considerava ter direito”

Uma autorização especial para o uso de um medicamento milionário aprovada em dois dias; a obtenção da nacionalidade portuguesa “em tempo mais que recorde” e a aquisição de cadeiras de rodas topo de gama num rápido procedimento. São estes detalhes da história das gémeas luso-brasileiras que receberam um tratamento de quatro milhões de euros no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, que indicam haver ainda muito para esclarecer.  Os mistérios que envolvem todo este processo, que surgiu depois de os pais terem escrito ao Presidente da República, continuam a cercar este caso. 

Toda a situação está, desde o início do mês de novembro, a ser investigada pelo Ministério Público e outros processos foram, entretanto, iniciados pela Inspeção-Geral em Atividades de Saúde e pela Ordem dos Médicos. Isto depois de, ao longo de dois meses, o programa Exclusivo com Sandra Felgueiras, na TVI, ter vindo a adensar a polémica com pistas que deixam os juristas e especialistas que falaram à CNN Portugal com várias dúvidas relativamente ao caso.

Mistério 1: o pedido de uso do medicamento foi aprovado em dois dias

Chama-se Zolgensma. É utilizado para o tratamento da atrofia muscular espinhal, uma doença rara, e custa para cada doente dois milhões de euros, o que lhe deu o apelido de medicamento mais caro do mundo. Está no mercado desde outubro de 2021, data em que foi aprovado pela Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed). 

Mas em 2019, altura em que as duas gémeas luso-brasileiras vieram a Portugal - diretamente para o Hospital de Santa Maria - para receber o tratamento, este ainda não tinha tido autorização de introdução no mercado, pelo que foi feito um pedido de Autorização de Utilização Especial (AUE) para que pudesse ser administrado às bebés.

“Há uma falta de normalidade”, sublinha José Aranda da Silva, ex-presidente do Infarmed e ex-Bastonário da Ordem dos Farmacêuticos. “O tempo normal varia entre duas a três semanas para este tipo de casos em que os medicamentos ainda não tinham sido aprovados, mas que os médicos acreditam que haja um sentido de oportunidade, que foi o caso destas gémeas.”

De facto, de acordo com o Index Nacional do Acesso ao Medicamento Hospitalar de 2023, o tempo médio de pedidos de AUE é de 17 dias. Os dados, revelados pela Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares e pela Associação Portuguesa de Farmacêuticos Hospitalares na última semana, indicam ainda que demora em média 14 dias até à posterior aquisição dos medicamentos.

Mistério 2: o procedimento foi aceite a um sábado, no dia 29 de fevereiro 

Segundo o antigo presidente do Infarmed, Aranda da Silva, o facto de o processo ter sido finalizado a um sábado também não é uma prática normal. “O Infarmed está fechado ao sábado e ao domingo e só num caso de vida ou de morte, que não parece ser este, é que isso poderia ser uma realidade.”

Além disso, o ex-presidente do Infarmed sublinha que este tipo de autorizações “normalmente necessita de um parecer da Comissão Nacional de Farmácia e Terapêutica, que é um órgão responsável por elaborar e aprovar os critérios de utilização dos medicamentos e tem um enorme poder dentro dos hospitais”. Isto para que se consiga "garantir equidade no acesso à terapêutica".  "Não pode haver para uns e depois nada para outros”, acrescenta.

Ainda assim, o Infarmed garantiu à TVI/CNN Portugal que já teve processos a serem tratados mais rapidamente do que no caso das gémeas, sublinhando que existem alguns “tramitados no próprio dia”.

Mistério 3: gémeas obtiveram nacionalidade portuguesa em tempo considerado “recorde”

Entre os advogados e juristas contactados pela CNN Portugal, a opinião começou por parecer unânime. O processo de nacionalidade teria sido feito em tempo "recorde", depois do Ministério da Justiça ter dito que “os dois processos tiveram início no Consulado em São Paulo a 2 de setembro de 2019” e que “nessa mesma data foram remetidos à Conservatória dos Registos Centrais (Lisboa), tendo sido registado o assento de nascimento no dia 16 de setembro de 2019” - etapa final de reconhecimento da nacionalidade.

A resposta do Ministério da Justiça ignora, contudo, uma outra parte do processo iniciado em São Paulo no Consulado que é tutelado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros.

A pedido do Exclusivo da TVI, do mesmo grupo da CNN Portugal, o MNE refez os passos dados pela família no consulado, concluindo que o agendamento para pedir a nacionalidade foi feito a 16 de abril de 2019, ou seja, antes do diagnóstico.

Já a ida ao consulado na sequência do agendamento aconteceu a 23 de julho para pagamento dos emolumentos, algo que segundo o MNE dá início ao processo.

Neste momento, segundo explicou um advogado à CNN Portugal, após a submissão de um processo, a informação que consta no próprio site do Ministério da Justiça é que para “pedidos de menores de idade, filhos de pai português ou mãe portuguesa e declarados diretamente pelos pais” , estes “são tratados com prioridade, pelo que o tempo útil de análise e decisão pode durar entre dois e quatro meses”.

Assim, os 13/14 dias indicados pelo Ministério da Justiça “não têm nada a ver com a realidade”, diz a jurista Ana Borges, sublinhando que este é um processo “demorado”, com a necessidade de se juntar “várias certidões de nascimento e obrigação de fazer prova de ligação à comunidade portuguesa”.

Esta jurista dá o caso de uma rapariga grávida, com pai português, que veio para Portugal fazer o mestrado e só obteve cidadania “passado oito meses”.

Igualmente, Patrícia Baltazar Resende, advogada com experiência nesta área, sublinha que o prazo para a obtenção de cidadania por estas gémeas “não é nada normal”. “Depois de se colocar todos os papéis e o processo estar perfeitamente devido e correto, mesmo assim, a entidade só consegue começar a avaliar o pedido ao final de um ano.”
“Mesmo sendo menores”, continua a advogada, “o processo eventualmente pode ser menos diluído, mas nunca serão os 14 dias” - “isso nunca aconteceu num processo meu”, garante.

Por sua vez, fonte do Ministério da Justiça contraria a ideia anterior e garante que "a tramitação é mais onerosa para os serviços em Portugal, uma vez que não há uma análise jurídica e documental prévia". "Todo o processo ocorre na conservatória", esclarece, sublinhando ainda que "os processos relativos a menores, pela via atributiva, ou seja, descendentes originários, independentemente da proveniência, são considerados prioritários, para evitar que permaneçam indocumentados".

Já o advogado da família das gémeas, fazendo a conta desde a data do agendamento (16 de abril) para ir ao consulado em julho refere, por escrito, que o pedido de nacionalidade demorou quase 6 meses, e teve início muito antes do diagnóstico de atrofia muscular espinhal, garantindo que as crianças obtiveram mesmo "o seu cartão de cidadão cerca de um mês antes do diagnóstico” que as levaria a viajar para Lisboa à procura do tratamento contra a doença.

Mistério 4: medicamento de dois milhões de euros que “em termos de eficácia não acrescenta nada”

A frase é de Miguel Guimarães, ex-bastonário da Ordem dos Médicos que, em entrevista ao Exclusivo, sublinhou que “o próprio estudo do Infarmed e das outras autoridades reguladoras do medicamento mostram exatamente isso”. Ou seja, que em termos de eficácia o medicamento mais caro do mundo neste caso não acrescenta nada. O argumento é também defendido por José Pedro Vieira, neuropediatra que, ao mesmo programa, sublinhou que “nenhum tratamento para atrofia muscular espinhal reverte a doença”. “A expectativa de cura é irrealista e a deficiência que existia permanece no essencial.”

Então, porque é que o hospital avançou para este tratamento? José Aranda da Silva afirma que não se trata de “uma vantagem terapêutica”, mas sim de “uma vantagem de utilização” - “é mais cómodo e deve estar reservado para os doentes mais graves”. Dessa forma, “tem de haver uma muito boa justificação para provar a necessidade de se aplicar um medicamento tão caro”. 

Até porque, como explica este especialista, a diferença para os outros tratamento é que no Zolgensma é só aplicada uma injeção em vez de o tratamento ser feito ao longo da vida do doente.

Mistério 5: Estado pagou quatro cadeiras elétricas, duas não foram sequer levantadas

Os gastos do Hospital de Santa Maria com as gémeas, que entretanto regressaram ao Brasil, já supera os quatro milhões de euros iniciais. A TVI/CNN Portugal teve acesso a todas as faturas, onde se verifica que foram pagas quatro cadeiras elétricas no valor de 58 mil euros para as duas irmãs. Até agora, nenhuma criança com a mesma doença recebeu cadeiras deste tipo e, neste caso, duas delas não foram sequer levantadas.

Esta foi, inclusive, a primeira vez que o maior centro hospitalar do país prescreveu um produto de apoio deste tipo. “À data, a mãe negava dispor deste tipo de produtos de apoio”, disse Francisco Sampaio, diretor do Serviço de Medicina Física e Reabilitação. 

À CNN Portugal, o advogado da família das gémeas diz que, ao Hospital Santa Maria, "foram solicitadas duas cadeiras manuais, que pesam 5 kg cada, para que as crianças possam ter locomoção em ambientes menores e podem ser dobradas e levadas em qualquer carro" e que ao Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, foi "solicitado uma cadeira elétrica, através de preenchimento de formulário próprio, para que as crianças, que tinham 96% de limitação, pudessem ter o mais próximo de uma vida digna, protegido por lei"

O advogado sublinha ainda que as cadeiras "apenas serão entregues no hospital na segunda quinzena de dezembro". "A informação não procede que as cadeiras estão disponíveis, pois não estão", acrescenta. 

Mistério 6: o “enigma” de Belém

Ao longo de todo o caso, o nome do Presidente da República tem sido sequencialmente citado nos trabalhos de investigação do Exclusivo. Há a suspeita de que o tratamento das gémeas no Hospital de Santa Maria terá acontecido por influência de Marcelo Rebelo de Sousa, que já negou qualquer interferência no processo.

A própria mãe das crianças, segundo imagens a que a TVI/CNN Portugal teve acesso, assumiu a existência de uma cunha presidencial. “Nós usámos os nossos contactos. Foi aí que entrou o pistolão. Eu conhecia a nora do Presidente, que conhecia o ministro da Saúde, que mandou um e-mail para o hospital e disse: 'E o caso das meninas? Começaram a receber ordens superiores'", afirmou.

Confrontado com as declarações da mãe das gémeas que garantiu que tinha recorrido a uma cunha. Marcelo Rebelo de Sousa diz não se lembrar do contacto, mas assegura que não fez qualquer favor.

Já a ex-ministra da Saúde sublinhou que o tratamento dado às gémeas no Santa Maria está dentro da lei e, em entrevista ao jornal Público e à Renascença, rejeita qualquer envolvimento no caso. “Não tive qualquer contacto com o Presidente da República relativamente a este caso, nem dei qualquer orientação sobre o tratamento destas crianças”, disse Marta Temido.

Marcelo confirmou entretanto que foram enviadas duas cartas sobre este caso, uma para o chefe de gabinete do primeiro-ministro e outra para o gabinete do secretário de Estado das Comunidades Portuguesas. E, numa nova reportagem do programa Exclusivo com Sandra Felgueiras, foi revelado que na carta enviada para o gabinete do primeiro-ministro era referido que o tratamento com o medicamento mais caro do mundo seria “a única esperança de cura” para as crianças. Uma “cura” que os médicos que falaram à TVI/CNN recusam existir.

Mas antes da confirmação de Marcelo Rebelo de Sousa, o Chefe da Casa Civil do Presidente da República começou por dizer “que não havia nenhuma carta, apenas dois relatórios médicos”, explicou Sandra Felgueiras esta sexta-feira no TVI Jornal. A jornalista refere mesmo que “este será o primeiro caso, até hoje, em que São Bento desconhece a origem de uma carta” e crê que “a resposta possível para este enigma” é a seguinte: “De alguma forma, chegou a Belém algo por uma via não oficial, que se tentou oficializar.”

E, continua Sandra Felgueiras, “oficializando-se desta maneira, deu-se origem a um processo que legalizou este procedimento”, porque “se Belém legaliza a forma como recebe e passa para o primeiro-ministro, já está a fazer tudo bem”. “O país inteiro começa a questionar-se sobre quem, quando e onde mandou o quê para Belém?”, conclui.

À CNN Portugal, o advogado da família das gémeas refere que a “mãe de duas crianças com uma doença gravíssima, antevendo a possibilidade de um tratamento promissor a que tem direito, buscou por todos os meios legais a possibilidade de haver para as suas filhas o tratamento. Essa busca passou por enviar comunicação para todas as instituições e entidades nacionais  que pudessem decidir  e agilizar o procedimento de toma da medicação”.  

A mãe, continua o advogado, “contactou, de forma legal, sem pressões e qualquer tipo de uso de influências, todas as entidades que a poderiam orientar no alcance de uma solução a que considerava ter direito”.

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