No futebol, lapidar não é sinónimo de melhorar

20 out 2023, 21:14
Ruben Neves e Lopetegui (Jack Thomas - WWFC/Wolves via Getty Images)

«Quem é que defende?», o espaço de opinião de Sofia Oliveira no Maisfutebol

Foi-se estabelecendo a estranha ideia de que os treinadores estão para o futebol como Midas está para a mitologia grega. O rei da Frígia transformava em ouro qualquer coisa na qual tocasse, os treinadores, ainda que desprovidos de magia na ponta dos dedos, são, na actualidade, os indivíduos mais vezes comparados ao personagem mitológico, por isso é que quem utiliza a expressão ‘toque de Midas’ para se referir à ascensão de um determinado jogador junto de um certo treinador já não é visto como um criativo, mas como um cansativo. Não se deixou de acreditar na ideia, o excessivo uso da analogia é que vai maçando as pessoas.

Importa dizer que o sucesso de um treinador é directamente proporcional à percepção criada em torno da sua arte de lapidação, logo jogadores sem provas dadas que não vinguem juntos desses são tratados como pernas-de-pau, tal como aconteceu, em tempos, a Kevin De Bruyne ou Mohamed Salah. Qualquer pergunta que procure, através do futebol, encontrar explicações para esses ou semelhantes insucessos faz ricochete em respostas-modelo que nunca contestam o poder do toque do treinador que está em causa. Ou te enumeram os títulos conquistados pelo Midas que está em causa, ou te nomeiam todos os alegados pernas-de-pau que se fizeram jogadores à conta do Midas que está em causa, ou te lançam aquele exercício muito burlesco: “Na altura, quem é que o Midas que está em causa tirava daquela equipa para pôr jogadores sem provas dadas?”, que é como quem diz: em 2013/14, quem é que era Bernardo Silva na fila do pão?

Noutra perspectiva, hoje, Mikel Arteta é o pintor de Martin Ødegaard, Rúben Amorim deu à luz Ousmane Diomande, Pep Guardiola esculpiu Sergio Busquets, e o talento de cada um acaba reduzido à sorte ou ao azar de se cruzarem com Midas. Sem querer subtrair importância àquele que me parece ser, cada vez mais, um dos aspectos decisivos na carreira dos jogadores - os treinadores com os quais se cruzam -, perturba-me o desdém pelo talento dos artistas que, sem os seus Midas, ao que tudo indica, seriam pedras da calçada bastante ordinárias. Curiosamente, quem pintou Ødegaard, não pintou Elneny; quem deu à luz Diomande, não deu à luz Chico Lamba; quem esculpiu Sergio Busquets, não esculpiu Kalvin Phillips. Se bastasse pegar numa espátula e seguir as instruções, o que se fez com um aplicar-se-ia com o outro e ainda hoje se produziam stocks de Ronaldo Nazário.

Claro que existe mérito quando os treinadores são capazes de adequar o talento ao contexto. Daí a influência visceral do cruzamento entre jogadores e treinadores, porque nem todos os treinadores dispõem dessa competência e nem todos os jogadores possuem o mesmo grau de adaptabilidade, que não deve ser confundido com nível de talento.

Pegando num exemplo que está aí na berra, fica fácil de entender que o grau de adaptabilidade de Aursnes não o torna no jogador do plantel do Benfica com maior nível de talento. Contudo, o mérito do enquadramento do talento ao contexto não pressupõe que o jogador esteja a melhorar; indica, sobretudo, que o talento do jogador está a adaptar-se àquele contexto.

Também não pressupõe que aquela seja a única ou a melhor versão do jogador, mesmo em casos de sucesso. Aliás, há vários jogadores que se esforçaram tanto para ir ao encontro daquilo que lhes era pedido que acabaram por alterar os seus perfis. Rúben Neves é, para mim, um dos exemplos mais óbvios. Os anos passados ao lado de treinadores que lhe pediam variações de flanco às cegas, de modo a que as equipas pudessem aproveitar situações de vantagem em corredor lateral, transformou-o numa espécie de quarterback futebolístico, de médio valorizado, acima de tudo, pelo passe longo.

Se Rúben Neves tinha sucesso nessa tarefa? Tinha. Se Rúben Neves cumpria o que o treinador de lhe pedia? Cumpria. Se Rúben Neves rendia? Rendia. Se essa versão de Rúben Neves enquanto médio à la Lopetegui prejudicou a sua evolução? Prejudicou, pois quem conhecia Rúben Neves sabia que só se estavam a aproveitar de uma pequeníssima parte do seu talento e isso, geralmente, traz consequências. Imagine-se que a Jimmy Page só lhe ofereciam o Guitar Hero - com as devidas distâncias entre o génio de Jimmy Page e Rúben Neves.

Para os treinadores, lapidar um jogador é modelá-lo em prol dos seus sistemas. Face à complexidade de cada sistema, à qual se junta a vasta especificidade inerente a cada posição, abre-se um alargado leque de contingências dentro do processo de modelação. Ou seja, o Otávio que chegou ao FC Porto, proveniente do Vitória SC, não é o mesmo Otávio que saiu do FC Porto. Ganhou alguns atributos, perdeu outros, mas decerto que a actual versão de Otávio não corresponde à sua única versão, nem necessariamente à melhor. Esta é a versão mais fiel a Sérgio Conceição, sendo que nas mãos de Sean Dyche podia ter-se tornado na versão mais fiel a um tanque de guerra.

Para um jogador, a velocidade que o treinador privilegia em momento ofensivo, a zona do terreno que tende a pisar, a existência ou a ausência de liberdade no que toca à perscrutação de espaços, as características dos colegas de equipa e a dimensão e a zona espacial que costumam ter de cobrir em transição defensiva são, apenas, cinco de centenas de filtros pelos quais passa durante o desenvolvimento do seu futebol dentro de um sistema de jogo. Tornam-se hábitos.

Infelizmente, nunca saberemos que jogador teria sido Rúben Neves se, aos 18 anos, não se tivesse cruzado com Julen Lopetegui na equipa principal do FC Porto. Podia ter tido o azar de se ter cruzado com algum que não lhe tivesse dado a oportunidade de, naquela idade, se estrear, mas também podia ter tido a sorte de se ter cruzado com um que tivesse moldado melhor o seu talento. Aquele cruzamento foi como oferecer o Guitar Hero a um menino de dois anos - com as devidas distâncias entre a diversão de jogar Guitar Hero e a diversão de assistir ao futebol praticado pelas equipas de Lopetegui. Com certeza, Lopetegui não tinha unhas para tocar aquela guitarra (lamento ter finalizado com uma expressão cansativa).

«Quem é que defende?» é um espaço de opinião de Sofia Oliveira no Maisfutebol. A autora escreve pelo acordo ortográfico antigo

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