O discurso "muito duro" e o ainda "preso político". Passos Coelho e Sócrates apareceram no tribunal em pré-campanha

19 dez 2023, 21:00

Pedro Passos Coelho diz que este não é o seu tempo, mas não se inibe de criticar António Costa e de deixar a porta do PSD aberta a uma coligação com o Chega. José Sócrates prefere esperar para ver quem fez "má figura". No dia em que Manuel Pinho se sentou no banco dos réus no processo da EDP, os focos, à porta do tribunal, voltaram-se para os antecessores do primeiro-ministro

António Costa "apresentou a sua demissão por indecente e má figura": estas foram as palavras do antigo primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, que começou por desejar que "o PSD possa estar preparado para os tempos que aí vêm" e acabou a comentar o fim inesperado do governo de António Costa, na sequência da divulgação da Operação Influencer: “Espero que o país saiba identificar no atual governo que está a cessar funções responsabilidades graves na situação a que o país chegou. Suficientemente graves para que o primeiro-ministro tenha sido o único, que eu tenho memória, que se tenha sentido na necessidade de apresentar a demissão por indecente e má figura”, afirmou o antigo presidente do PSD.

Estas declarações foram feitas aos jornalistas, esta terça-feira, à entrada de um tribunal em Lisboa, onde Passos Coelho prestou depoimento como testemunha no julgamento do caso EDP. Na sala do tribunal, o antigo ministro da Economia (entre 2005 e 2009) Manuel Pinho, que está em prisão domiciliária desde dezembro de 2021, respondia em julgamento por um crime de corrupção passiva para ato ilícito, outro de corrupção passiva, um crime de branqueamento de capitais e um crime de fraude fiscal. Também a sua mulher, Alexandra Pinho, será julgada por um crime de branqueamento e outro de fraude fiscal - em coautoria material com o marido -, enquanto o antigo presidente do BES, Ricardo Salgado, vai a julgamento por um crime de corrupção ativa para ato ilícito, um crime de corrupção ativa e outro de branqueamento de capitais.  Mas, cá fora, as declarações mais importantes do antigo primeiro-ministro não foram sobre o caso EDP mas sobre a atual situação política do país.  

Passos Coelho começou por dizer que este não é o seu tempo para intervir no espaço político - "Cada um tem o seu tempo e este tempo não me pertence" - mas aproveitou para manifestar a expectativa de que o PSD possa estar preparado e seja "liderante nesta fase nova": "O país vai precisar seguramente de um governo que tenha não apenas um rumo bem definido, mas que possa inspirar confiança às pessoas para inverter uma degradação extraordinária de uma boa parte das politicas públicas que são importantes para o crescimento da nossa economia precisamos de um governo esclarecido e que tenha força, que é como quem diz autoridade moral, para conduzir uma política diferente". 

"Pedro Passos Coelho foi muito duro, muito crítico sobre a governação de António Costa", avalia o politólogo José Filipe Pinto. "Não podemos esquecer que há uma ferida em aberto. Passos Coelho não esquece a forma como o seu Governo caiu e António Costa conseguiu montar a geringonça", recorda este analista à CNN Portugal. "O que transparece das palavras de Pedro Passos Coelho é alguém que ainda se mostra incomodado pela forma como foi arredado do poder."

Depois, o que o antigo líder social-democrata quis fazer, nestas declarações, foi "explicar que, ao contrário do que António Costa quis fazer passar - que o Governo tinha todas as condições para continuar  e que tinha havido uma precipitação, uma decisão errada do Presidente da República - na verdade, o ónus da culpa da demissão é de António Costa, como líder de uma maioria absoluta que conseguiu delapidar toda a legitimidade eleitoral.  Ele pretende desmistificar a narrativa socialista e mostrar que António Costa foi vítima apenas de si mesmo".

E isto acontece "numa altura em que o PS acaba de mudar de secretário-geral, numa transição que foi tão pacífica que acabou com o novo secretário-geral a assumir-se honrado por ter pertencido aos governos de António Costa, omitindo todos os desencontros - e foram vários (por exemplo a questão do aeroporto, em que Pedro Nuno Santos foi desautorizado pelo primeiro-ministro) - e o facto de ter saído do Governo em rota de colisão", sublinha José Filipe Pinto. 

"Pedro Nuno Santos classifica António Costa em termos que podemos considerar demasiado elogiosos e diz que Costa pode contar com ele, depreendendo-se que irá continuar a desempenhar cargos na política ativa, seja como candidato a Presidente da República ou como presidente do Conselho Europeu." Portanto, afirma José Filipe Pinto, "é evidente que este discurso de Pedro Passos Coelho é para chamar os portugueses à realidade, lembrar que, afinal de contas, António Costa é o responsável pela situação de instabilidade que o país vive. E nesta circunstância em que a figura de António Costa aparece dourada pelo seu sucessor, Passos Coelho faz questão de sublinhar que, se Pedro Nuno Santos assume tanto orgulho no legado de António Costa, haverá uma evolução na continuidade e o acréscimo de energia só aumentará a dimensão do desastre".

"Foram declarações muito frias, que têm uma dimensão pessoal e uma dimensão política, quer na crítica ao Governo de António Costa, quer, já, entrando na pré-campanha eleitoral, apontando ao novo secretário-geral do PS", conclui o politólogo. "O que ele quer dizer é que quem se honra deste passado não representa uma alternativa para o país e não pode ser primeiro-ministro. Isto são palavras que pretendem fragilizar a nova liderança do PS e fortalecer Luís Montenegro."

Passos Coelho volta a levantar a hipótese de coligação com o Chega

Anselmo Crespo concorda que "Pedro Passos Coelho entrou definitivamente na pré-campanha" e que "as palavras de hoje vão servir para o PS consolidar a narrativa, que Pedro Nuno Santos já começou a construir, que com o PSD de regresso ao poder regressa o 'passismo', mesmo que encarnado em Luís Montenegro, e tudo aquilo que significou o governo do PSD-CDS nos anos da troika".

Mas Passos Coelho foi ainda mais longe nas suas declarações e, falando sobre o cenário pós-eleitoral e questionado sobre um eventual acordo entre o PSD e o Chega após as eleições de março, respondeu que não lhe compete abordar esse tema, mas que isso "vai depender das estratégias que os partidos venham a definir e das condições que os portugueses ofereçam aos partidos que terão a responsabilidade de governar". Ou seja, ao contrário de Montenegro, Passo Coelho não excluiu taxativamente a hipótese de uma coligação, limitando-se a dizer: "Espero que ambos tenham uma aguda consciência dos tempos que aí vêm e que, portanto, seja possível fazer um governo que tenha autoridade moral, que tenha força, e a força só pode ser dada pelos eleitores, para que se faça aquilo que é necessário fazer."

Estas declarações causaram logo uma reação de Mariana Mortágua, líder do Bloco de Esquerda, que considerou que Passos Coelho veio “desautorizar Luís Montenegro” e “assumir que o projeto do PSD é mesmo um acordo com o Chega”. “Não é de estranhar: Portugal conhece Pedro Passos Coelho. Sabe que André Ventura era o seu acólito, o seu protegido, na mesma altura em que Luís Montenegro era líder parlamentar do PSD. Trata-se, portanto, de uma grande família”, sustentou. 

Já André Ventura, presidente do Chega, considerou obviamente que as palavras de Passos Coelho foram importantes porque "apelaram à consciência do espaço não socialista". Para Ventura, "se toda a oposição tivesse a mesma firmeza, assertividade e clareza de raciocínio que vimos hoje em Pedro Passos Coelho, teríamos já uma oposição muito mais forte ao PS". "Passos Coelho deixa claro que o que é importante é criar uma alternativa à governação socialista", disse.

Na opinião do politólogo João Pacheco, "estas declarações de Passos Coelho revelam uma postura mais indecente do que aquela que ele critica em Costa" e "revelam uma falta de sentido de estado e de moderação de um antigo primeiro-ministro que comenta outro primeiro-ministro, que ainda está em funções". Segundo este analista, as palavras de Passo Coelho "hostilizam uma franja da direita", daí deixar uma pergunta no ar: "O que terá Luís Montenegro a comentar sobre estas declarações radicais de um militante do PSD tão destacado como é Pedro Passos Coelho?".

Fica claro que Passos Coelho discorda de Luís Montenegro - que já disse que "não é não" - e "antevê que isso possa vir a ser um problema no cenário pós-eleitoral", mas a comentadora da CNN Portugal Raquel Abecassis não acredita que o atual líder do PSD se deixe influenciar. "Vai levar seguramente a que as as perguntas voltem a ser feitas a Luís Montenegro, mas eu creio que, com a assertividade com que ele já disse que não o faria, essa determinação é para manter". Isto significa, acredita Raquel Abecassis, que "num cenário pós-eleitoral em que a direita tem a maioria mas precise de contar com o Chega", uma vez que Montenegro disse que não o faria, o PSD "terá de encontrar uma alternativa para levar avante esse entendimento" - "essa é uma leitura que existe nalguns bastidores do PSD", afirma esta comentadora. 

José Sócrates, o "animal ferido" que ataca o Ministério Público

Passos Coelho não foi o único ex-primeiro-ministro a prestar declarações no julgamento do caso BES. Também José Sócrares e Durão se apresentaram como testemunhas neste processo. Instado a comentar as palavras de Passos Coelho, Sócrates não se inibiu de defender António Costa: "Poupe-me por favor ao ataque político disfarçado de reflexão. Isso não tem nada que ver com análise, isso trata-se de um ataque político”, disse Sócrates. "Estamos para ver quem fez má figura, se foi o primeiro-ministro, se foi o Ministério Público ou se foi a oposição, mas daqui a uns meses saberemos”, afirmou ainda o antigo primeiro-ministro socialista.

De resto, as declarações de Sócrates à porta do tribunal foram sobretudo para criticar o sistema judicial. Sobre o caso BES, garantiu: “Eu estou muito contente comigo próprio, tenho a sensação que sobre esta mentirola que o MP arranjou sobre a relação do Governo com Ricardo Salgado não ficou pedra sobre pedra”. O antigo governante afirma que a ideia de que “o doutor Salgado era amigo dos socialistas não tem a mínima sustentação”: “É falso, isso é uma mentira […], é um revisionismo histórico que o MP pretendeu desenvolver ao longo destes últimos 12 anos contra mim, querendo vender aos portugueses a ideia de que o doutor Ricardo Salgado era próximo de mim. Isso é falso, absolutamente falso”, disse.

Já sobre o caso Marquês, no qual é acusado de 31 crimes, nomeadamente corrupção passiva, branqueamento de capitais, falsificação de documentos e fraude fiscal, e que está prestes a prescrever, José Sócrates afirmou que, a acontecer, a prescrição não será, como o Ministério Público quer fazer crer, "perder na secretaria", mas sim uma derrota real para o MP que durante dez anos de investigação não conseguiu provar a sua culpabilidade: "O falhanço do processo Marquês deve-se à inocência das pessoas".

"Sócrates manteve um estilo arrogante que lhe é característico", avalia José Filipe Pinto, sublinhando que o antigo governante "quando começou a ter problemas com a justiça, assumiu uma postura de animal ferido e fez do Ministério Público o seu agressor, assumindo uma postura de vitimização em relação à justiça".

Também José Sócrates guarda algum ressentimento em relação a António Costa, que foi seu ministro da Justiça mas que se afastou de Sócrates quando este foi acusado. "Sócrates nunca desculpou esta posição de Costa. Ele continua a sentir-se como um preso político", comenta o politólogo José Filipe Pinto.

Não deixa de ser curioso que, neste momento, José Sócrates e António Costa tenham em comum o facto de serem investigados pelo MP. Mas "enquanto António Costa diz que acredita no sistema de justiça, não se sentido vítima de uma perseguição, Sócrates ataca todo o sistema, sobretudo o Ministério Público, e tem um discurso amargo e agressivo. Mais do que de defesa, é um discurso de ataque. Daí a forma desabrida, quase ofensiva, como reage sempre que as perguntas o incomodam", afirma José Filipe Pinto.

Dos três ex-primeiro-ministros, só Durão Barroso se manteve à margem de polémicas: "Durão Barroso teve a postura que se esperava", comenta o politólogo. "Os anos como presidente da Comissão Europeia, afastado da politica interna, deram-lhe a estaleca para perceber que não se deve imiscuir em problemas alheios."

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