O que falhou no SNS? Planeamento e uma "teimosia preconceituosa" em relação ao privado. Ainda é possível salvá-lo, mas "não há reformas fast food na Saúde"

16 jan, 07:00
Médico (Getty Images)

No ano em que completa 45 anos de existência, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) enfrenta um dos seus momentos mais críticos, não únicos na sua história, porém cada vez mais complexos. Mas isso não significa que seja impossível salvá-lo: dois antigos ministros da Saúde, um antigo bastonário da Ordem dos Médicos e um antigo diretor-geral da Saúde fazem um raio-x ao setor público da saúde (com prognósticos para o futuro)

O caos que se vive no Serviço Nacional de Saúde (SNS) não é de agora, nem tão pouco diz apenas respeito às urgências. O encerramento de serviços por falta de recursos humanos já é um problema crónico, assim como as longas filas de espera por atendimento, consulta ou cirurgia. As saídas de diretores clínicos e de especialidade pela falta de condições de trabalho e de material já aconteceram no passado e há hospitais onde tudo falta há largos anos. E também há muito tempo que os médicos ameaçam emigrar pela falta de atratividade da carreira pública, algo que mais de três mil enfermeiros já fizeram nos últimos quatro anos. É neste cenário que o número de utentes sem médico de família atribuído cresce de mês para mês e 2024 começa com mais de um milhão e 700 mil pessoas nesta condição, empurrando quem mais precisa para o hospital, esteja ele a meio-gás ou não, portas abertas ou fechadas. 

A culpa de tudo isto, dizem antigos ministros, bastonários e médicos, está na consecutiva falta de planeamento e estratégia (até mesmo para cenários facilmente antecipáveis, como as aposentações dos profissionais de saúde) e numa “teimosia, não apenas ideológica, mas mais preconceituosa” face à importância da colaboração com outros setores, sobretudo o privado. A salvação ainda é possível - mas fica o aviso: “não há reformas fast food na saúde”.

“Temos um sistema de saúde muito fragmentado, o que gera desequilíbrios: há zonas do país com cuidados mais, outras com menos, e há problemas de acesso. E juntou-se a isto uma teimosia, não apenas ideológica, mas mais preconceituosa, de que o trabalho colaborativo e a utilização dos recursos de outros setores significa desvalorizar o SNS ou favorecer o privado, ideia que tem prejudicado muito o acesso dos doentes. Este preconceito tem-se sobreposto à providência de cuidados de saúde”, começa por dizer Adalberto Campos Fernandes, ministro da Saúde entre 2015 e 2018, num governo socialista conduzido por António Costa.

Luís Filipe Pereira, também antigo ministro da Saúde, tendo liderado a pasta em dois governos sociais-democratas, um comandando por Durão Barroso (2002 e 2004) e outro por Pedro Santana Lopes (2004 e 2005), é taxativo na hora de afirmar que “é evidente que o SNS sempre teve dificuldades”, mas apressa-se também a dizer que “nada foi feito para travar, nestes últimos anos, este agravamento” que agora se sente. “Pelo contrário”, atira, apontando o dedo em riste aos dois governos de António Costa. “Foram tomadas medidas que deram grandes desvantagens para a população”, continua, referindo-se ao fim de parte das parceiras público privadas (PPP) na saúde, “que trouxeram um melhor atendimento, custos mais baixos e uma capacidade de resposta, e o governo [de António Costa], por questões ideológicas, acabou com elas”.

Para Constantino Sakellarides, antigo diretor-geral da Saúde, cargo que ocupou entre 1997 e 1999, o SNS tem um problema de acesso. “Para um cidadão não lhe serve ter um SNS quando não consegue aceder, esse acesso é muito condicionado pela incapacidade de reter profissionais” e pode ser solucionado com a “colaboração” com o setor social e privado, mas defende que uma solução no imediato é difícil. “As pessoas têm a ideia de que gerir o SNS é canja, mas isso é mito”, vinca o antigo diretor-geral da Saúde, reconhecendo, no entanto, a necessidade de reformulação de um sistema que, a seu ver, parou há 45 anos e não se adaptou aos novos tempos, às novas necessidades e à mudança demográfica no país.

O SNS está inserido num estado marreta, não é inovador, é centralizado, não é flexível, não se adapta à realidade, não evoluiu”, frisa Sakellarides, dizendo que é preciso também mudar o “modelo de governação”. 

Um SNS que deixou de ser casa

Apesar de ter sido sob a tutela socialista que o SNS enfrentou um dos mais tremendos desafios da sua existência e que ainda hoje tem feridas abertas, a pandemia, o certo é que parte das questões de fundo vêm dos tempos da sua fundação, tendo sido agravadas pela constante falta de visão para o futuro e pela crise financeira, que culminou com a entrada da Troika nas contas portuguesas. E Constantino Sakellarides reconhece que o financiamento do SNS fica “mais difícil quando há uma crise, como as financeiras que cortam o gasto público ou criam dívida que é preciso financiar, isso interfere logo na capacidade de financiar o próprio SNS”. 

Tudo isto tem consequências diretas não só no próprio funcionamento do SNS, como nos profissionais de saúde, cada vez mais cansados e mal pagos. O risco de burnout passou a ser uma realidade no próprio SNS. Uma pescadinha de rabo na boca que se arrasta há anos. No entanto, o dinheiro não é o único calcanhar de Aquiles do SNS, mas é a ferida que mais dói aos profissionais de saúde, que se vêm a braços com carreiras estagnadas, salários que não são atualizados, horas extraordinárias que se esgotam em poucas semanas, falta de perspetiva de futuro.

O que faz um serviço de saúde andar? É quem trabalha lá e quando vemos o que se paga, percebemos que é manifestamente inconsequente e que os privados pagam melhor. Cada vez se nota mais que não é atrativo”, lamenta Germano de Sousa, médico patologista e antigo bastonário da Ordem dos Médicos.

Germano de Sousa lembra mesmo um sentimento comum aos seus colegas quando começaram a trabalhar no SNS, sentimento esse que rápido desapareceu. “Tínhamos orgulho, era uma espécie de universidade máxima, mas esse orgulho passou, passámos a ser usados como carne para canhão. Pouco nos era dado”, lembra. E quando questionado se sentia que o seu trabalho não era respeitado, reconhece que sim e que os seus colegas de agora, até os mais novos, sentem o mesmo: “O respeito continua sem existir”.

A incapacidade de o Estado reter profissionais de saúde tem sido gritante e, aos olhos do antigo diretor-geral da Saúde Constantino Sakellarides, isso espelha a falta de planeamento a longo prazo e de clareza sobre o que é pretendido dos profissionais que trabalham neste que é o sistema do setor público “mais valorizado pelos portugueses”. “Na minha geração trabalhávamos que nem uns mouros, mas éramos parvos, a pessoa precisa de viver”, diz, em tom irónico. 

A crise no SNS é uma crise na confiança no seu futuro, se não conseguirmos criar confiança através de medidas que melhorem o acesso e respondam à ansiedade das populações e através uma política de profissões que mostre que há espaço para melhoria das condições de quem lá trabalha, não criamos um ambiente de segurança. E sem isso não há futuro, não há SNS”, alerta o antigo diretor-geral da saúde.

Há quem ainda resista firme no SNS,  mas são cada vez mais os que batem com a porta: em apenas dois anos, cinco mil médicos saíram do setor público da saúde, como alertou o Sindicato Independente dos Médicos, e há agora ameaças de outros por não concordarem com o regime de dedicação plena, que apesar de aumentar o salário, aumenta o número de horas extraordinárias por ano e limita o trabalho noutros setores de saúde, como o privado. 

“Há mais médicos a sair, há médicos a não querer o novo regime de trabalho [de dedicação plena], o sistema está hiperfragmentado, as oportunidades de trabalho no privado ou no estrangeiro vão crescer, temos a capacidade de exportar, a formação dos médicos com especialidade pode ser de 14 anos, os médicos agora não tem capacidade física e psicológica de viver nos hospitais como há 40 anos, têm a sua vida, o seu tempo livre”, adianta Adalberto Campos Fernandes.

Os privados não são o demónio. E podem mesmo tirar o SNS do inferno

Tanto Adalberto Campos Fernandes, como Constantino Sakellarides, Germano de Sousa e Luís Filipe Pereira são unânimes em reconhecer que o setor público da saúde precisa de uma mão externa, seja ela do setor social ou privado, seja ela sobre o regime de colaboração ou contratualização. E o facto de se demonizar esta parceria, dizem, está a comprometer a sustentabilidade e eficácia do SNS, colocando em xeque os cuidados prestados. Luís Filipe Pereira diz mesmo que “não falta apenas humildade” para reconhecer a necessidade de ajuda, trata-se de uma “cegueira ideológica”.

Isto que está agora a ser feito pela Direção-Executiva, o aumentar as unidades de saúde familiar tipo B, é uma contratualização que o Estado faz com profissionais e esses profissionais comprometem-se a atingir resultados e a receber de acordo com esses objetos alcançados”, explica o antigo ministro social-democrata, defendendo que “tudo o que seja contratualizar, seja profissionais [de saúde] ou [setores] privados” é, de momento, vantajoso para colmatar as dificuldades e os constrangimentos sentidos no SNS. 

Constantino Sakellarides lamenta o facto de que ainda “há pudor em tratar frontalmente” a questão do papel do setor privado da saúde, mas é taxativo ao afirmar que “é evidente” que é um dos culpados pelo estado atual do SNS.

É evidente que uma das falhas de governação do SNS é não ter uma estratégia de cooperação com o setor privado”, vinca Sakellarides.

E da mesma opinião é Luís Filipe Pereira, que não hesita em dizer: “Sem dúvida, a solução mais viável a médio e longo prazo é a contratualização. O Estado contratualiza e paga por resultados. Para a população torna-se mais eficiente, mais barato, como as PPP comprovaram, com melhoria substancial. E esse é o caminho”.

Adalberto Campos Fernandes admite que “todas as reformas são demoradas, carecem de tempo e teste, não há reformas fast food na saúde, em que num ano estalamos os dedos e acabamos com os problemas de 40 anos”, mas reconhece que, a curto prazo, é possível atenuar um dos maiores problemas atuais no SNS: não conseguir dar vazão à afluência aos hospitais. A contratação de mais médicos de família é um passo óbvio, mas que tem falhado, por isso, o antigo ministro socialista defende que deveria ser adotado de uma forma mais abrangente um “sistema colaborativo e flexível” com outros setores, embora reconheça que “os problemas vão continuar”. 

Antes de reformar um sistema, é preciso pensar (e pensar atempadamente nos que se vão reformar)

Adalberto Campos Fernandes repete ao longo da conversa as palavras “planeamento e pragmatismo” e diz que são a “chave” para que a máquina que é o SNS fique bem oleada e pronta para o futuro. E diz que basta começar hoje a pensar nos objetivos a médio prazo: “podemos prometer médicos de família para todos em três anos, temos três anos pela frente”.

Para Adalberto Campos Fernandes, “o planeamento tem de ser estratégico e flexível, pois as coisas mudam de um ano para o outro”, ao contrário do que se espera, por exemplo, com as novas Unidades Locais de Saúde (SNS) ou com o regime de dedicação plena. Mas antes dessas reformas para ‘ontem’, importa evitar erros passados e o constante correr atrás do prejuízo: é preciso perspetiva a longo prazo, diz.

Temos quase um milhão de imigrantes com características diferentes e se não se fizer nada e a imigração abrandar, teremos em 30 anos um país envelhecimento e a velhice traz doença”, adverte o antigo ministro socialista.

Constantino Sakellarides aponta ainda o dedo à falta de um “plano plurianual de investimento do SNS” e acredita que “se formos capazes de desenhar isso, reconhecer que há um setor social e privado com competência para dar acesso [aos cuidados de saúde], é fácil encontrar pontos de relação e de colaboração que sejam transparentes, sistematizadas e com pontes temporais, até para o privado saber com o que conta”.

Germano de Sousa considera que “é evidente que o SNS tem problemas graves” e que esses problemas se prendem, “acima de tudo, com a incapacidade de perceber que o doente tem de estar no centro do sistema, quando não está não temos SNS, o SNS começa a falhar”. Para o antigo bastonário da Ordem dos Médicos, as mais recentes reformas implementadas no setor público da saúde podem não melhorar o estado atual do setor. Primeiro, diz-nos que é certo que vários especialistas digam que não a este novo regime - “Há colegas que não vão aceitar”, diz-nos - e, depois, acusa o Executivo de colocar em vigor ULS sem estudar primeiro o impacto da mudança, mudança essa já em vigor e que poderá deixar um próximo executivo, caso não seja PS, com uma decisão difícil em mãos.

“Vem aí a reforma do SNS, mas que reforma? Não teria sido melhor olhar para o estudo da ERS [Entidade Reguladora da Saúde] sobre os defeitos e virtudes de Unidades Locais de Saúde, como se faz uma reforma desta sem se testar primeiro?”, questiona o médico, defendendo que este assunto vai ser “complicado para qualquer executivo” que se siga, pois, “do dia para a noite foram criadas novas ULS, isso é quase como quem põe uma coleira ao pescoço do governo que vem, o que vai fazer com isso? Vai anular a nomeação dessas pessoas?”, questiona novamente. Para Germano de Sousa, a melhor decisão, “neste momento”, seria colocar “as USL em stand-by”. “Avaliaria e estudaria antes de avançar”, atira.

Mais do que reformas pensadas para hoje e colocadas em andamento no mesmo dia, os entrevistados da CNN Portugal defendem um planeamento, algo que todos reconhecem que tem falhado redondamente ao longo destas quatro décadas de Serviço Nacional de Saúde. E para o antigo ministro Luís Filipe Pereira, o buraco que a aposentação dos médicos deixou é o exemplo mais concreto de como falta uma estratégia. “Estão a reformar-se todos ao mesmo tempo, mas não descobrimos isto ontem, temos de procurar as pessoas a entrar na reforma e convencê-las a ficar mais algum tempo, para cobrir dois a três anos de crise enquanto não há um rejuvenescimento, as pessoas ficam disponíveis se as condições forem aceitáveis”, sugere Constantino Sakellarides.

Cometeram-se muitos erros, não houve planeamento que previsse a reforma dos médicos e hoje o SNS tem falta de médicos, não que haja falta de médicos em Portugal, mas não há capacidade de atrair novos médicos, não há condições de remuneração e perspetivas de carreira. Esta deveria ser uma prioridade”, conclui o antigo ministro social-democrata.

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