Greves, paralisações, ameaças… nunca houve tanta confrontação na Saúde. Mas estes 7 resistentes falam pelos que não desistem do SNS
Reportagem médicos SNS (vários fotógrafos)
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Greves, paralisações, ameaças… nunca houve tanta confrontação na Saúde. Mas estes 7 resistentes falam pelos que não desistem do SNS

Vestem orgulhosamente a camisola do SNS mas queixam-se da falta de progressão na carreira, dos salários estagnados e da carga de trabalho. Dos médicos aos enfermeiros, dos técnicos de diagnósticos aos farmacêuticos hospitalares, nunca os profissionais de saúde do setor público se fizeram ouvir assim: 2023 fica marcado por greves, manifestações e paralisações de serviços. Apesar da luta, continuam a resistir. Sete profissionais de saúde falam do seu sentido de missão e dos motivos pelos quais não desistem do SNS, mesmo quando sentem que o SNS está a desistir deles.

Por Daniela Costa Teixeira, CNN Portugal 

Marisa Silva é o que quis ser: médica no setor público. Desde 2005 que está no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. A Medicina Interna, na qual se especializou, é um dos pilares de qualquer hospital, diz, e isso basta-lhe como motivo para se manter fiel ao Serviço Nacional de Saúde (SNS). “É no público onde encontro pessoas com maiores necessidades e carências, e onde posso ajudá-las, e também onde encontro o doente crítico e mais complexo – e ao fim e ao cabo esse é o objetivo da Medicina Interna”.

Marisa Silva tem 53 anos e exclusividade com o Serviço Nacional de Saúde, escolha feita logo após a obtenção do grau de assistente hospitalar, em 2003, estava então no Hospital de Santiago do Cacém. Uma exclusividade que lhe dá o conforto que desde cedo sentiu que iria necessitar. Uma exclusividade que, desde 2009, os médicos deixaram de poder ter. Para alguns, há uma porta de saída sempre aberta.

Segundo a Administração Central do Sistema de Saúde, em 2022 saíram 1.488 médicos e 1.782 enfermeiros do Serviço Nacional de Saúde. A “sangria” não é de agora, mas a pandemia tornou-a mais viva, mais notória, mais fraturante. Nos primeiros dois anos de pandemia (2020 e 2021), saíram do setor público da saúde 1.285 médicos especialistas e 3.647 enfermeiros do SNS. Em três anos, os números arredondam: 2.467 médicos e 3.642 enfermeiros.

Marisa Silva era criança quando o SNS nasceu e, como desde cedo quis ser médica, acompanhou a evolução do sistema que, desde o primeiro dia, prometia revolucionar o acesso aos cuidados de saúde. Quando começou a carreira, “não tinha motivo para sair e acreditava no SNS”, conta. E agora, ainda tem motivos para acreditar? “Sim”, responde, “mas…”. Há sempre um mas quando o assunto é o SNS.“Eu acredito, mas tem de haver alguma reinvenção, alguma modernização, um acompanhamento dos tempos”.

Marisa Silva é médica interna e está no Hospital de Santa Maria há 18 anos. Atualmente, é responsável pela enfermaria de Medicina 2B. (Fotografia: Rodrigo Cabrita)

“O que limita mais e faz pensar em optar pelo setor privado ou outro, além da questão da remuneração, é, às vezes, não haver um equilíbrio entre a nossa vida profissional e pessoal, não haver uma flexibilidade de horários, haver muitas horas consumidas no hospital e na prestação de cuidados sem serem contabilizadas. Há uma certa desvalorização do nosso papel enquanto médicos”.

Essa desvalorização tem sido, nos últimos 18 meses, lamentada e criticada por parte dos sindicatos médicos, que estiveram em negociações intensas com o governo nas últimas semanas em busca de um acordo, defendendo melhores condições salariais e laborais. Ao longo destes meses, a situação do setor público da saúde continuou a degradar-se, em particular nas urgências, com a entrega em massa de milhares de minutas de recusa à realização de mais horas extraordinárias do que estas impostas por lei, o que levou a sérios constrangimentos nos hospitais de norte a sul do país, com encerramentos programados ou anunciados no momento.

Marisa Silva defende a causa do SNS e as lutas dos profissionais, sobretudo dos mais novos: “a luta continua e esta luta é também deles, eles querem seguir os nossos passos”, diz-nos, já no rescaldo da reunião de sexta-feira passada entre sindicatos e o Governo, da qual não saiu qualquer acordo. E é para contrariar essa “desvalorização” que diz existir e, mais do que isso, para dar um novo alento aos jovens que estão a escolher a especialidade, que Marisa Silva também se diz fiel ao SNS - e “até à reforma”. 

“O que me faz também continuar [no SNS] é o facto de estar a formar internos. A especialidade é de cinco anos, mas pode ser superior se entrarem num projeto de doutoramento ou por maternidade e paternidade. A possibilidade de eu mudar para outro setor e deixar o meu interno é uma coisa que, para mim, é complicada de gerir, quanto mais para o interno. É disruptiva aquela interrupção e às vezes é uma escolha do próprio interno, que continua no hospital de formação a fazer a sua especialidade porque quer um determinado orientador. Isso limita-nos muito e os anos vão passando”, reconhece.

A médica Marisa Silva não hesita em classificar-se como uma resistente do Serviço Nacional de Saúde. A formação de internos, os pacientes e a saúde sem discriminação são o que a fazem permanecer fiel. (Fotografia: Rodrigo Cabrita)

Marisa Silva admite que sempre se sentiu “mais útil no setor público” do que se sentiria no privado, mas é apologista do equilíbrio e da livre escolha de cada um. “Optar pelo privado não implica que não se vá trabalhando em parceria com o público ou que não se vá voltar ao público”, sugere, defendendo que, independente do setor, o foco deve estar sempre no doente e esse compromisso, assegura, mantém-se mesmo com as dificuldades que já se sentem e que, reconhece, poderiam agravar-se sem  acordo entre médicos e Executivo.

“Vamos passar por períodos difíceis, em que vamos ter de nos adaptar a novas condições de trabalho e a nova reestruturação, mas como médicos vamos continuar a trabalhar e a ver doentes, a dar o nosso melhor, quer a nível hospitalar ou de cuidados de saúde primários, mas acho que se está já a ver os próximos tempos não se avizinham fáceis”, lamenta.

Ainda assim, questionamos: é uma resistente do Serviço Nacional de Saúde? “Sim, sim, sim”, responde enquanto ri. “Atendendo à história do SNS, acho que é obrigatório continuar nele e tentar melhorar, tentar dar o exemplo o melhor que pudermos até para outras pessoas poderem continuar a exercer funções no público, mas o mais importante é trabalharmos todos para o futuro da saúde”.

Três décadas de diferença, um mesmo sentido de missão

Álvaro Ayres Pereira conhece todos os cantos do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN). É lá que está desde 1995, primeiro no Hospital Pulido Valente, depois no Hospital de Santa Maria, onde se mantém. Já Nuno Malafaia está prestes a completar a sua primeira década de contrato no Hospital Santo António, do Centro Hospitalar Universitário do Porto, numa casa que diz que é sua.

São mais de três décadas que separam os dois profissionais de saúde: Álvaro tem 63 anos, Nuno tem 32. Mas ambos partilham não só a cidade-natal, o Porto, como também um espírito de missão. E fazem-no mantendo-se fiéis ao Serviço Nacional de Saúde.

“Eu vejo o trabalho como uma missão, no sentido rico da palavra. estou aqui para servir uma população, uma população frágil, a precisar de ajuda. E também no sentido de ajudar os mais novos a formarem-se, contribuir, de alguma maneira, para que o SNS não vá abaixo, até que os políticos resolvam fazer as alterações necessárias para melhorar um bocadinho o SNS”, diz Álvaro Ayres Pereira.

Mas os mais novos nem sempre conseguem encontrar logo esse espírito de missão, tal é a desordem no SNS. Há dezenas de vagas que ficam recorrentemente por preencher e zonas do país cada vez mais precárias a nível de cuidados de saúde.

O diretor do Serviço de Infecciologia CHULN, também especialista em Medicina Intensiva, é bastante crítico ao estado atual do Serviço Nacional de Saúde e à forma como as carreiras estão desenhadas, um ‘rabisco’ que quem não é da área da saúde nem sempre percebe e que nada mais faz do que afastar os jovens profissionais de saúde. 

“Quando eu comecei a trabalhar, os médicos e os enfermeiros eram mais bem pagos do que são atualmente”, afirma. “Ainda tenho um contrato à antiga”, acrescenta, a rir-se. Mas o médico infecciologista sabe que esse tipo de contratos são agora uma utopia, e que a atratividade das propostas é escassa. E, adianta, são muitos os fatores neste jogo que afasta os profissionais de saúde do setor público, sendo a “falta de equidade” aquele que mais o inquieta. “Há na mesma instituição pessoas com tratamento diferente e dentro do SNS nem todos os hospitais pagam o mesmo”, justifica.

“Há hospitais que deveriam ser deitados abaixo".

No entanto, não é apenas àquilo a que chama “problema da injustiça” que aponta o dedo.  “Há hospitais que deveriam ser deitados abaixo. Há hospitais com sistemas informáticos que são completamente do século passado, até a nível da arquitetura. Há hospitais onde se fazem redes dentro do hospital para se conseguir usar o telemóvel”, exemplifica.

Há 28 anos no setor público da saúde, o infecciologista Álvaro Ayres Pereira assegura que nunca se sentiu tentado em abandonar o barco. (Fotografia: Rodrigo Cabrita)

Mas nada disto afasta Álvaro Ayres Pereira do SNS - nem vai afastar, garante, voltando a destacar a sua missão de mensageiro da próxima geração. “Onde se aprende neste momento é no serviço público, isso ainda vai mudar, mas o serviço público é uma grande escola e tão cedo o privado não vai conseguir equiparar”. 

E o que quer é ensinar, ensinar Medicina, ensinar os cantos do local onde passou mais tempo nas últimas décadas, o seu sentido de compromisso. “Para quem começou há 20, 30 anos é diferente de quem começa agora, porque as coisas eram diferentes. A gente veste a camisola, o que já não se verifica nas camadas mais jovens”, lamenta. “Havia uma progressão natural na carreira e isso acabou”. 

O decreto que definia as carreiras médicas - Decreto-Lei 310/82 - foi publicado pela primeira vez a 3 de agosto de 1982. Quatro décadas depois, este diploma está no centro das atenções dos médicos e das suas reivindicações - e só este ano já houve uma mão-cheia de greves de médicos. Só desde 2017 estão 272 médicos a aguardar a homologação para a progressão na carreira e 27 ainda em fase de avaliação.

Tal como Álvaro, Nuno dá uso à palavra missão, qual cola que mantém unidos os fragmentos de um SNS em luta desde a sua fundação. “Tive como mentores pessoas que me incutiram muito este espírito de missão, esta entrega à causa, a entrega ao hospital, esta entrega ao Serviço Nacional de Saúde, o trabalhar pelo doente, o trabalhar pelo hospital”, conta-nos.

Nuno Malafaia é técnico de farmácia no Hospital Santo António, onde está desde o estágio, e estudante de doutoramento em Ciências Biomédicas no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto - ICBAS. É um defensor acérrimo do SNS. Diz-se orgulhoso por ter participado e assistido em “primeira mão àquilo que foi o surgimento da reivindicação dos TSDT [técnico superior de diagnóstico e terapêutica]”, numa “greve que durou 24 dias” em 2017, e que estará sempre pronto para dar continuidade à luta - seja à da sua carreira ou do próprio SNS. Até, porque, garante que mais depressa muda de país do que sai do setor público da saúde. 

“Não me vejo a trabalhar noutro setor que não o da saúde pública, não me vejo a ir trabalhar para o setor privado, para a indústria, mas pondero, se calhar, que poderei vir a ter de sair do país porque a incerteza a nível nacional começa a ser alarmante e preocupante. Agora que estou na casa dos trinta, é agora ou nunca, ou fico ou saio”.

A “falta da valorização, a desigualdade, o desrespeito que há pelos profissionais de saúde, que são o garante do direito à saúde do doente” são o que mais o entristece, que o faz pensar, mas são também tudo o que quer contrariar, e garante que isso é possível quando são os próprios profissionais do SNS a dar o exemplo e a mostrar que é preciso mudar. E foi isso o que os farmacêuticos hospitalares fizeram ao voltar novamente às greves este ano.

Se Álvaro Ayres Pereira, há décadas no setor público, se mostra reticente em afirmar-se como um resistente do Serviço Nacional de Saúde, Nuno Malafaia, no embalo do entusiasmo de início de carreira, é perentório: “completamente, sim, completamente”. E dá voz por todos os seus colegas do setor público, independentemente da profissão, dos anos de casa, das “tripas coração” que fazem dia após dia. 

“Nós damos diariamente provas da nossa missão, da nossa devoção e da nossa resiliência. Diariamente temos de enfrentar desafios, trabalhar em contrarrelógio e fazer verdadeiros truques de mágica. Mas acho que tudo vale a pena e acaba-se por conseguir dar a resposta certa, no momento certo”. E isso entusiasma-o todos os dias, qual efeito mágico que o setor tem em (quase) todos aqueles que nele resistem.

Nuno Malafaia está no Hospital de São João desde abril de 2013. “Acabei o curso e fiquei logo lá”. E não se vê no setor privado ou da indústria. (Fotografia: Rui Oliveira)

Magia é o termo usado para descrever o SNS. “É mágico porque as pessoas que lá estão são mágicas”, atira, reconhecendo, em tom de brincadeira: “sou suspeito”.

“Nós operamos todos os dias em condições super desfavoráveis, num ritmo contrarrelógio, com mil e um percalços. Mas ao final do dia as coisas fazem-se e tudo se consegue e toda a gente consegue. A cada dia que passa, temos de fazer mais um esforço e mais um esforço e mais um esforço, e cada vez se produz mais e cada vez melhor. As coisas andam para a frente e conseguimos sempre dar a melhor resposta no melhor momento”.

Apesar de o caminho que tem pela frente ser ainda longo, Nuno sabe que é no SNS que vai querer continuar. “Eu tive a certeza, e se calhar foi das poucas certezas que tive na minha vida, mas naquela primeira semana de estágio, naquela primeira semana de contacto com o ambiente hospitalar, eu tive a certeza que era ali que eu pertencia, que era naquelas paredes que eu queria fazer a minha história, o meu percurso da vida profissional, era aquele o meu objetivo, desde os tempos da faculdade, aquela coisa de querer ajudar as pessoas, querer ajudar os doentes, combater a doença”.

Uma casa, duas realidades distintas - mas um mesmo sentido de compromisso

“Há sempre aquela sensação de ‘este não é o momento mais propício para tentar outros voos, para tentar outras coisas’”. Eloísa e Mário são casados, ambos trabalham em hospitais públicos. (Fotografia: Rodrigo Cabrita)

Do Seixal para Lisboa, mais concretamente para Alcântara e Amadora. Todos os dias o percurso é o mesmo: Eloísa segue para o Hospital Egas Moniz, onde é técnica de análises; Mário ruma ao Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, onde é enfermeiro especialista em saúde infantil e pediátrica. 

Eloísa Macedo, de 41 anos, está na unidade que integra o Centro Hospitalar Lisboa Ocidental desde 2006 e é por lá que se vê continuar. Ao contrário de outras áreas da saúde, como a Medicina e a Enfermagem (como já iremos ver), as condições no setor privado para um técnico superior de diagnóstico e terapêutica nem sempre são as mais apelativas e aqui a vantagem (ainda?) vai para o SNS.

“O setor público não é o melhor empregador no meu caso ou no nosso caso dos TSDT. Mas a realidade é que a nossa carreira no privado é ainda um bocadinho pior”, admite. “Quando nos comparamos com colegas que estão no privado percebemos que estamos numa situação melhor, embora, lá está, tenhamos sempre os problemas de falta de progressão na carreira, a não atualização salarial e todas essas coisas todas”.

Eloísa está efetiva, diz que o seu vencimento está “acima da média”, e domina a sua área profissional. “Vou-me sentindo um bocadinho segura e acomodada”, confidencia. Mas essa segurança não vem apenas do salário, a eterna reivindicação dos profissionais de saúde. Eloísa garante que “sempre” teve “uma chefia que nunca pôs em causa” os seus direitos como trabalhadora e como estudante, nem mesmo quando tirou o mestrado. 

Embora, no seu caso, o setor público seja mais atrativo do que o privado, Eloísa reconhece falhas e necessidade de “melhorias”. “Não há sistemas perfeitos”, afirma, apressando-se a dar o exemplo do esquecimento de “quem estava nos bastidores” durante a pandemia, como é o caso dos TSDT, também esquecidos na hora de progredir na carreira.

“Eu tenho colegas com muitos mais anos de serviço do que eu e que só agora é que viram alguma alteração no seu estatuto remuneratório. Podiam pensar ‘pagam mal, não me vou estar aqui a chatear’, mas não, as pessoas dão o litro, dão a cara, dão o corpo e é isso o que eu vejo no SNS, vejo muita vontade das pessoas de fazerem mais e melhor e de servirem o outro. Porque, no fundo, o SNS não é só de nós, profissionais de saúde, para os outros, é para nós também”.

Eloísa considera que para o TSDT, “muitas vezes, comparando com o privado, o público continua a ser, no nosso, caso o melhor empregador”. (Fotografia: Rodrigo Cabrita)

Eloísa Macedo descreve o SNS como essencial e esse é o motivo que a leva a ter sempre a camisola vestida, a dar continuidade à luta por uma saúde pública. “Acredito no Serviço Nacional de Saúde, acredito nos seus profissionais. No meio de todo este descontentamento, toda esta desvalorização, nós estamos sempre aqui prontos para fazer do Serviço Nacional de Saúde aquilo que ele é, que é um pilar da nossa sociedade”.

Eloísa e Mário são casados e a comparação entre setor de saúde público e setor de saúde privado não é um tabu lá em casa - mas nenhum pondera ir para ‘o lado de lá’. O próprio Mário, tal como tantos outros enfermeiros em Portugal, já teve de dar a dita ‘perninha’ ao setor privado, uma “necessidade” de outros tempos que agora, “felizmente”, já não tem, pelo menos de forma tão vincada. “Estou no SNS ininterruptamente desde dezembro de 2008”, diz, adiantando que vai apenas “meia dúzia de horas por mês” para o departamento médico de uma fábrica. 

“Gostaria imenso de não acumular trabalho noutros lados ou, pelo menos, que fosse mais por gosto e não tanto por necessidade, que me pudesse focar a 100% no setor público e que o resto fosse apenas por gosto ou para trabalhar um projeto específico e não a tentar que aquele rendimento venha a dar jeito para pagar a faculdade ou as despesas dos miúdos”.

Mário A. Macedo, de 39 anos, já recebeu propostas do setor privado para lá trabalhar a tempo inteiro. Pensou nelas mas, até hoje, recusou todas. Afinal, a atratividade de que tanto se fala nem sempre é como se diz ser. Quando entrou no Hospital Amadora-Sintra, Mário foi incluído num acordo-empresa, assinado entre a unidade hospitalar e o sindicato em 2007, que logo à partida lhe deu garantias.

Mário defende que o SNS “tem coisas muito boas e tem coisas que precisam de uma reforma e de uma mudança rápida”. (Fotografia: Rodrigo Cabrita)

“Apesar de os valores terem sido acordados em 2007, em 2023 ainda são valores bastante bons, o que faz com que o hospital tenha uma capacidade diferente dos outros para reter os seus profissionais”, diz, sugerindo que esta poderia ser uma solução para outros hospitais.  

A questão remuneratória não é a única a entrar na equação de Mário. É no público que sabe que consegue fazer a diferença. 

“Eu trabalho numa urgência de pediatria e atrai-me saber que todos os dias consigo fazer a diferença na vida de alguém, de uma família e, especialmente, de uma criança. Nós temos ali uma porta aberta para o público. Uma urgência, então do setor público, socorre desde situações emergentes, como situações crónicas, como também situações sociais. E uma das coisas que mais me atrai é isso, é saber que nós estamos a fazer a diferença na vida dessas pessoas”. 

Eloísa diz-se uma “participante ativa, alguém que quer fazer o SNS crescer”, que dá a voz pelo que deve ser feito. “Mas ainda me faltam alguns quilómetros para me considerar uma resistente. Mas já faltou mais, já faltou mais”, ri-se. E Mário? “Vejo-me mais como alguém que está satisfeito mas inconformado”.

A eterna procura por estabilidade

Gisela Duarte de Almeida é enfermeira no IPO Coimbra desde março de 2007 e estudante de doutoramento em Ciência Política no ISCTE. Tal como tantos outros enfermeiros em Portugal, não está a 100% no setor público da saúde: “a questão remuneratória”, tanto no “início da carreira” como “últimos anos”, tem sido um dos fatores que a fazem estar também no setor social e educacional, uma sinergia que vê como positiva e não como uma traição ao SNS. É, adianta, uma forma de encontrar “motivação, trazer novas ideias e acrescentar valor ao meu trabalho”.

Para os enfermeiros, estar apenas no SNS não é fácil - o facto de não haver exclusividade e de os salários estarem há anos estancados, para não falar na sobrecarga de trabalho, não ajuda, nem mesmo a querer ficar em Portugal. Desde o início de 2020, a Ordem dos Enfermeiros recebeu 3.364 pedidos de declarações para efeitos de emigração. E muitos dos que ficam ponderam sair. Só no ano passado, segundo a ACSS, foram 1.782 os enfermeiros a abandonar o SNS.

“Ponderei sair da profissão. Em 2009 fiz uma pausa na formação em Enfermagem e fui fazer formação em Direito, candidatei-me até pelo regime do contingente normal à licenciatura em direito, mas depois acabei por não progredir, porque era muito difícil, aqui em Coimbra não tinham a questão do pós-laboral e eu estava em turnos. Mas se tivesse tido o [regime] pós-laboral teria abraçado provavelmente outra carreira, ou não”.

O “ou não” de Gisela vem pela sua paixão pela área da saúde, e que a levou à Enfermagem, apesar do sonho de menina de ser médica de família. E é a paixão que vai mantendo a chama acesa, assim como estar na área da Oncologia, onde dá um novo alento aos mais doentes e onde o setor público consegue fazer a diferença. Mas a dúvida acaba por estar sempre lá.

“Sempre tive muito o gosto pela Enfermagem, mas depois o sistema acaba por esgotar-nos um bocadinho. Em todos estes momentos que duvidei, eu nunca duvidei da minha capacidade ou do que gostava de fazer, o próprio sistema e a própria forma de organização e o sentir que nunca iria ter uma carreira justa, ou perante as minhas expectativas, leva-me a duvidar um bocadinho”.

Gisela, de 39 anos, lamenta o desgaste da profissão e o facto de - como tantas outras - obrigar a escolhas que nem sempre são fáceis de fazer. “A minha escolha de ser mãe veio muito mais tarde, veio só aos 32 anos, também por isso, pela instabilidade, pela dificuldade da não progressão de carreira que nos permitiria almejar uma melhor remuneração, apesar de fazermos muita formação. Acabei sempre por investir, mas é um investimento pessoal e investir ainda na carreira é um esforço hercúleo mesmo”, diz.

Mas este “esforço hercúleo”, transversal a todos os seus colegas, começa a deixar mossas. Tal como os médicos, também os enfermeiros batem este ano o pé a mais horas extraordinárias, estando agendada uma greve ao trabalho extraordinário em novembro e dezembro, convocada pelo Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (Sindepor).

Para Gisela, as reivindicações deste ano são uma espécie de copo a transbordar de anos de descontentamento, que começou a pesar no bem-estar e na carteira dos profissionais de saúde ainda em tempos da troika e que a pandemia apenas veio deixar ainda mais a nu.

“O contexto da pandemia despertou na sociedade e nos profissionais de saúde a necessidade de reconhecimento pelo esforço realizado em prol do SNS, acabando por tardar, então, as políticas de retenção de talento e também o reconhecimento da importância da progressão na carreira para o plano de desenvolvimento profissional e académico”, explica, chutando a responsabilidade por tal para o Governo: “No último ano, temos assistido a medidas de gestão da saúde de um carácter muito pontual, mas necessitamos de um plano estruturado e sensível”.

Gisela Duarte de Almeida diz que a não progressão na carreira e os salários são dois dos principais problemas de um enfermeiro que está no Serviço Nacional de Saúde. (Fotografia: Sérgio Azenha)

Sobre o Serviço Nacional de Saúde, onde gostaria que os enfermeiros tivessem melhores condições, Gisela é crítica, mas sempre defensora. “Fui daquela geração que testou o SNS, nasci em 84, acabei por testar os seus primórdios. Neste momento, estando dentro dele, acho que realmente é um sistema fantástico. A sua incapacidade é mais estrutural e organizativa do que propriamente o capital humano que temos”, destaca.

Para Gisela a estabilidade é uma prioridade e diz que, para já, consegue tê-la, até a nível de horários e conciliando a vida profissional com a docência - conquistas que considera que devem ser transversais a todos os profissionais de saúde. E, se tudo assim continuar, vê-se fiel ao SNS. “Acho que vou estar sempre aqui”, revela, otimista.

Um caso que foge à regra, mas que quer mudar as regras do jogo

Nuno Jacinto é o exemplo do que muitos médicos de família gostariam de conquistar: tem contrato de exclusividade, está numa unidade de saúde de modelo B, consegue conciliar a sua vida profissional com a pessoal e consegue ter tempo, sobretudo para lutar pela classe.

Aos 40 anos, é presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF)  e tem plena consciência de que a sua realidade está longe de ser aquilo que grande parte dos seus colegas tem. 

“Infelizmente essa não é a realidade da maioria dos colegas, as dificuldades por que muitos passam são totalmente diferentes, não estão num modelo B, a remuneração é diferente, não têm este apoio, não têm este estímulo, não têm equipas completas como eu tenho, portanto, tudo isso acaba por condicionar muito aquilo que são as nossas opções ao longo da nossa carreira”.

Nuno Jacinto é natural de Lisboa, mas foi em Évora que decidiu fazer a sua carreira profissional, uma escolha que aconteceu por amor. Évora era a cidade mais próxima da sua área de residência onde poderia fazer o internato juntamente com a sua mulher, na altura colega de curso e que escolheu Pediatria. E a escolha rapidamente se tornou numa “boa surpresa”.

“Encontrei uma USF, uns cuidados primários e um SNS que na altura foram muito apelativos para mim e obviamente me deram condições para fazer um internato de excelência”. E ainda são apelativos aos dias de hoje? “São, se calhar um bocadinho menos”, reconhece, mas adianta-se a dizer que conseguiu uma qualidade de vida pessoal que nunca grande cidade dificilmente teria. 

“Ao longo dos anos a situação foi-se deteriorando, a reforma dos cuidados de saúde primários atingiu uma grande estagnação, diria que se foi perdendo e as próprias condições de trabalho foram-se deteriorando. Se olharmos para trás, era muito mais apelativo naquela altura permanecer no SNS do que hoje em dia”, diz, destacando que esta é uma realidade transversal em todo o país.

“Os cuidados de saúde primários não ganharam o papel que todos nós desejávamos, e nós enquanto médicos de família também não. Fomos tendo cada vez mais tarefas burocráticas, mais tarefas administrativas, cada vez mais uma lista com maior número de utentes”, lamenta Nuno Jacinto. (Fotografia: António Carrapato)

Nuno Jacinto ainda é dos tempos dos contratos de exclusividade. “Quando acabei o internato, em 2011, fui dos últimos a ainda assinar um contrato no regime das 42 horas com exclusividade. Há de ter terminado poucos meses depois de eu ter assinado esse contrato”.

Esse mesmo contrato é um dos aspetos que destaca para se manter no SNS, sobretudo num momento como o de agora, em que os médicos de família acumulam pacientes, correm atrás do prejuízo e têm um sem fim de tarefas burocráticas, tornando as vagas cada vez menos apelativas para quem está agora a escolher o seu futuro profissional na Medicina.

“Os médicos não querem continuar assim”, diz-nos, salientando que já eram de esperar as reivindicações que se fizeram ouvir este ano por parte dos profissionais de saúde e, sobretudo, por parte dos médicos. “Sempre esteve do lado do Governo a capacidade para resolver este impasse”, vinca.

“Se não tivermos médicos satisfeitos no Serviço Nacional de Saúde, não teremos um Serviço Nacional de Saúde digno desse nome”.

A satisfação depende de vários fatores, mas “a questão salarial” acaba por ser o gatilho para os protestos atuais. “Obviamente que não é a única, mas é importante e seríamos hipócritas se não disséssemos isso e tentássemos ignorar. Sobretudo em Medicina Geral e Familiar, em que há essa disparidade, quem está num modelo B tem uma remuneração totalmente diferente dos colegas que estão numa USF modelo A ou numa UCSP [unidade de saúde pública]”.

O médico diz que o conjunto de trabalhos necessários é longo, mas que está longe de desistir do SNS e de ver a sua classe a deitar a toalha ao chão. 

“Eu fui formado no SNS e, portanto, a Medicina Geral e Familiar como eu a conheço e como a exerço faz todo o sentido ao nível público e ao nível do SNS. Não quer dizer que no privado ela também não deva existir e não esteja a fazer um caminho muito interessante, mas o que é de facto é que estas quatro décadas de história foram feitas a nível do SNS, a nível da saúde pública, só aí tem esse atrativo que ainda é importante”.

E este tom animador, onde encontra esse alento? “Temos de ser otimistas por natureza, se não desistíamos e isso aí certamente não permanecíamos no SNS, se fossemos acreditar que isto ia continuar a piorar e que ia acontecer a tão anunciada morte do Serviço Nacional de Saúde”, atira. 

“Nós lutamos todos os dias para que isso não aconteça, lutamos para melhorar as nossas condições de trabalho, para conseguirmos estar mais juntos dos nossos utentes apesar de todas estas dificuldades de sobrecarga de trabalho que temos e o meu papel enquanto presidente da associação mais é precisamente esse, é acreditar sempre que é possível melhorar a situação”.

E a pergunta da praxe chega: considera-se um resistente do SNS? Entre risos, diz: “considero-me um crente no Serviço Nacional de Saúde”. E explica que é a crença de “alguém que continua a achar que o Serviço Nacional de Saúde acaba por dever ser a resposta para a esmagadora maioria das nossas situações, sobretudo tendo em conta a população que existe em Portugal, tendo em conta o nosso rendimento e a capacidade que temos de acesso aos cuidados e as dificuldades económicas por que passam muitas famílias”.

“Enquanto existir essa luz e enquanto existir essa perspetiva, eu serei um daqueles que resistirá no Serviço Nacional de Saúde, assim que me sejam dadas as condições para continuar a trabalhar”, conclui.

 

 

 

 

 

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