"Nunca vi o SNS num período tão crítico". Como a recusa dos médicos às horas extra já está a afetar os dois maiores hospitais do país

3 out 2023, 23:46

Lisboa e Porto são o espelho de um país onde várias urgências já deixaram de funcionar. Os alertas chegam de todo o lado e pedem-se medidas rápidas

Não é um problema de agora, mas diz quem lá anda há muito tempo que esta é a pior fase do Serviço Nacional de Saúde (SNS). É esse o entendimento do diretor clínico do Hospital de Santa Maria, o maior do país e um dos que atravessa maiores dificuldades com a recusa dos médicos em trabalharem para lá das 150 horas extraordinárias anuais previstas.

Rui Tato Marinho diz à CNN Portugal que “é muito difícil haver um colapso total” do sistema, mas garante que a situação atual é de grande dificuldade. “Nunca vi o SNS num período tão crítico. Não está em coma, mas está numa situação grave e precisa de medidas imediatas a curto, médio e longo prazo”, acrescenta.

Aquele hospital de Lisboa está a sofrer com os constrangimentos que já levaram ao encerramento de sete unidades de urgência em Portugal. Mas o protesto dos médicos pode fazer com que pelo menos outras 25 unidades se juntem a Guarda, Chaves, Barcelos, Tomar, Caldas da Rainha, Santarém e Penafiel.

O que se teme é que episódios como o que aconteceu na Guarda, onde a falta de médicos inviabilizou a deslocação de uma ambulância, deixando um cidadão inglês de 53 anos sem assistência, tendo o homem acabado por morrer.

Não só as unidades disponíveis ficam mais longe para muitos, como essas mesmas unidades ficam sobrelotadas. É precisamente o caso do Santa Maria, onde Rui Tato Marinho reconhece que “há muitos doentes em macas”.

E isso não tem apenas que ver com a possível desorganização do hospital lisboeta, mas também com o encerramento de espaços de serviços de urgência em Lisboa e Vale do Tejo, além dos constrangimentos sentidos em unidades do Centro ou do Algarve.

“Santa Maria não é uma ilha. Temos alguns problemas em Lisboa e Vale do Tejo no acesso ao médico de Medicina Geral e Familiar, que podia ver 40% das pessoas que vão ao hospital, que não são urgentes a esse nível”, explica.

Roberto Roncon concorda, identificando no Hospital de São João, onde é diretor clínico, um problema semelhante. Na maior unidade do Porto, diz à CNN Portugal, “vive-se um momento delicado”.

“Temos de reelaborar escalas tendo em conta a indisponibilidade de alguns colegas para fazer horas extra para lá das 150 horas. É uma situação delicada que tem de ser gerida dia a dia”, refere, lembrando que o SNS trabalha em rede, pelo que o problema de uma unidade acaba, mais tarde ou mais cedo, por ser o de outras.

Se o problema é grave agora, espera-se que a situação só piore, caso nada seja feito em breve. Rui Tato Marinho, que tem mais de 25 mil horas de urgência em mais de 30 anos, reconhece que já passou por “períodos muito difíceis”, mas nunca assim.

“Neste mmomento estamos na fase mais difícil a que tenho assistido. Tenho uma carreira toda dedicada ao SNS, mas estamos a atingir uma fase, que era previsível há 10 anos”, sublinha, apontando a reforma de centenas de especialistas, naquilo que “não é um problema de Lisboa ou Porto, mas até mundial.

E o problema também está aí: faltam médicos em todo o mundo, o que torna a profissão mais competitiva, deixando o SNS como um local ainda menos apetecível. Não só se trabalha demais, como se ganha menos.

O grande desafio para agora

Rui Tato Marinho identifica o grande desenvolvimento da medicina privada, quer em capacidade de oferta, quer nos ordenados que paga, como um dos fatores de deslocalização dos médicos, que no SNS não encontram resposta às suas pretensões.

A isso se junta um apelo do exterior: na Alemanha ou na Austrália ganha-se muito mais, por exemplo. “Tudo isto é um apelo muito grande para os médicos do SNS de que não vale a pena formar porque no dia a seguir podem estar no privado ou no estrangeiro”, indica o diretor clínico do Hospital de Santa Maria.

“O grande desafio neste momento é a retenção de profissionais formados no SNS. Temos metade dos médicos fora do SNS. Não vale a pena aumentarem as faculdades de medicina para no dia a seguir irem para outro local do mundo”, vinca, lembrando a criação de uma faculdade privada, mas que pode vir a servir apenas para formar profissionais que acabam por não ficar no setor público.

E lá fora não se paga apenas mais. Os médicos também olham para a qualidade de vida: “Têm de ser mais bem pagos, mas também têm de ter tempo para a família. Não é a pagar o dobro que se resolve”, atira Rui Tato Marinho, ressalvando que grande parte destes médicos a quem agora se exige que façam para lá das 150 horas previstas são os mesmos que passaram por uma situação de caos durante a pandemia de covid-19.

Foi um momento que Roberto Roncon e a sua equipa viveram com "muita angústia". Neste momento a situação "não é comparável" à pandemia, mas pode vir a sê-lo caso nada mude. Apesar disso, garante o diretor clínico do Hospital de São João, "os colegas que mostraram indisponibilidade estão comprometidos com o SNS, não querem que fique decapitado", mas sim "melhorá-lo".

E isso ganha mais relevância quando pensamos que grande parte do papel do SNS é dar resposta à doença aguda, como os casos de AVC, ataque cardíaco ou similares. "Neste momento não temos grande alternativa, é a saúde das populações que está em causa", afirma o médico, garantindo que o setor privado não é capaz de dar resposta a esses casos.

"Não estamos tranquilos, mas há uma mensagem de confiança de que há vontade de melhorar o SNS e a sua capacidade de resposta. Estamos a tratar doentes cada vez mais complexos, mais graves, e temos de dar melhores condições", conclui.

O problema segue agora para a esfera governativa, esperando-se decisões a sair em breve, nomeadamente depois da reunião entre Ministério da Saúde e Ordem dos Médicos.

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