Farmacêuticos dos hospitais voltam à greve. Preparação, avaliação e distribuição de medicamentos ficam em risco. “Todos os serviços ficam comprometidos”

22 jun 2023, 06:58
Farmacêutico hospitalar (Pexels)

Encerramento das farmácias hospitalares e adiamento de tratamentos oncológicos são apenas algumas das possíveis consequências da greve. Mas farmacêuticos do SNS avisam: “Em mínimo estamos nós todos os dias”

A greve está marcada. Começa esta quinta-feira e repete-se nos dias 27 e 29 deste mês. Pela segunda vez em 30 anos, os farmacêuticos do SNS prometem paralisar serviços em reivindicação da valorização profissional e da melhoria salarial. Na última greve, foram assegurados os serviços mínimos e questões urgentes, mas Henrique Reguengo, presidente do Sindicato Nacional dos Farmacêuticos, apressa-se a dizer que essa é a realidade da classe há largos anos. “Em mínimos estamos nós todos os dias”, lamenta.

Na greve do ano passado, mesmo com a garantia de resposta em casos urgentes, o impacto existiu, sobretudo a nível de tratamentos oncológicos, tendo havido o adiamento de alguns deles, como o próprio IPO de Lisboa reconheceu em comunicado. Esta situação valeu críticas por parte do ministro da Saúde, Manuel Pizarro, críticas essas que foram devolvidas pelo Sindicato dos Farmacêuticos.

“Qual a posição do Governo? Nem falam connosco, recusam a abordar o tema”, acusa o dirigente sindical, destacando que os “problemas reais que os farmacêuticos enfrentam implicam que o a Administração Pública e Ministério das Finanças estejam nas reuniões” e não apenas o Ministério da Saúde.

Mas uma greve dos farmacêuticos hospitalares pode ter impactos a vários níveis e não apenas nos tratamentos oncológicos. Como noticiou o Público, a paralisação destes profissionais também levou ao encerramento das farmácias de ambulatório dos hospitais. Estes profissionais estão envolvidos em três especialidades: farmácia hospitalar, análises clínicas e genética humana. E Henrique Reguengo avisa que “todos estes serviços ficam comprometidos” com a greve, sobretudo se atingir uma taxa de adesão igual ou superior à do ano passado, que rondou os 93%.

Pense o que é um SNS sem medicamentos e análises clínicas. Não funciona. Para funcionar há mil tipos que não são vistos, trabalhamos na retaguarda, na segunda linha, mas se lá não estivemos, nem médicos nem enfermeiros têm os meios para exercer o que nos compete”, frisa Henrique Reguengo.

“Toda a medicação é revista por nós”

O farmacêutico hospitalar é responsável pela parte farmacológica do tratamento, seja de um paciente em ambiente hospitalar (internamento ou cirurgia) ou em ambulatório. E a área de ação vai do planeamento, à produção, avaliação e distribuição. “Estamos sempre presentes onde existe um medicamento”, diz Patrícia Cavaco, presidente da Associação Portuguesa de Farmacêuticos Hospitalares.

“Estamos presentes na distribuição, em internamento ou ambulatório, de fármacos para transplantados renais, cardíacos, hepáticos e doentes oncológicos. Também fazemos a vertente da produção, área eminentemente farmacêutica. Todos os dias fazemos preparações de nutrição parenteral associada à neonatologia, de citotóxicos e de fórmulas magistrais associadas à pediatria”, enumera Patrícia Cavaco, adiantando ainda que estes funcionários também trabalham “na adaptação da terapêutica de cada doente” fazendo sugestões sobre ajustes de doses com clínicos e que estão presentes “na equipa multidisciplinar” e fazem “parte de comissões técnicas”.

A maioria dos pacientes que fazem quimioterapia não sabem que é sob a alçada do farmacêutico que esta é preparada”, reconhece Patrícia Cavaco. 

Todo o medicamento “é preparado sob a alçada de um farmacêutico”, reitera a presidente da Associação Portuguesa de Farmacêuticos Hospitalares, explicando que o fármaco “é feito pelos técnicos de diagnóstico e terapêutica, mas há sítios em que são os farmacêuticos que os fazem”. De qualquer modo, destaca: “toda a medicação é revista por nós”.

“Não podemos conceber o hospital que não tenha capacidade de dar acesso a medicamentos, nenhum hospital funciona sem o acesso adequado a medicamentos”, sublinha Hélder Mota Filipe, bastonário da Ordem dos Farmacêuticos, lamentando que os farmacêuticos sejam “uma profissão muito pouco visível para a opinião pública e para os políticos” e que isso demonstre “a impreparação e ignorância dos nossos decisores políticos na área da saúde”, sobretudo a nível de medicamentos hospitalares, uma das maiores fatias do Orçamento do Estado e que está sob a alçada destes profissionais de saúde.

“Quem gere o SNS, nomeadamente a tutela, não está completamente ciente da situação a que chegamos e das implicações que esta situação tem para o funcionamento adequado do SNS”, acusa o bastonário.

Três dias de luta. “Não há razão para não se fazer greve”

Os farmacêuticos do SNS fizeram apenas uma greve em toda a sua história, mas a insuficiência de recursos humanos não é uma questão de hoje. A falta de profissionais levou a que os farmacêuticos do IPO Porto tivessem apresentado, em junho do ano passado, uma escusa de responsabilidade, alegando falta de condições para garantir a segurança dos cuidados farmacêuticos prestados, como noticiou a Rádio Renascença à data. Mas o cenário é transversal a todos os farmacêuticos, trabalhem ou não nos hospitais do Estado. Nessa mesma altura, a Ordem dos Farmacêuticos sentiu a necessidade de elaborar uma minuta, tal era o aumento de pedido de escusas - “uma situação nunca antes vivida na história da OF”.

A par do reduzido número de farmacêuticos hospitalares, a questão da carreira, seja a nível salarial ou de acesso à mesma, é também um dos motivos que leva estes profissionais a fazer greve. De momento, como noticiou a TVI (do mesmo grupo da CNN Portugal), mais de uma centena de farmacêuticos do SNS estão impedidos de aceder à especialidade.

“As carreiras estão mais do que estagnadas. Outras carreiras já tiveram oportunidade de negociar as suas condições, nomeadamente com atualizações remuneratórias, a nossa tabela é a de 1999”, lembra Henrique Reguengo. Além disso, diz que atualmente “há cerca de mil” farmacêuticos hospitalares, número que considera claramente insuficiente para aquelas que são as tarefas diárias. “Há uma falta de atenção do Governo, estamos em rutura”, lamenta.

Hélder Mota Filipe, bastonário da Ordem dos Farmacêuticos, diz que a entidade “compreende quais os motivos desta greve”. “A degradação das condições de trabalho, quer em termos materiais, mas principalmente em termos de recursos humanos, faz com que haja no SNS neste momento uma sensação de impotência relativamente a alteração dessas condições”, reconhece.

Os farmacêuticos hospitalares trabalham nos bastidores e sentem que isso nem sempre lhes dá o reconhecimento devido: “não temos uma visibilidade que passe para o doente”, lamenta Patrícia Cavaco. “Mas fazemos parte do SNS, existimos”, reivindica.

O Sindicato Nacional dos Farmacêuticos acusa ainda o Governo de protelar “as datas para um início de negociação efetiva sobre os temas fundamentais”, incluindo um calendário negocial. A inexistência deste é também um dos motivos para a greve, que Henrique Reguengo espera que tenha uma adesão igual ou superior à anterior.

“Espero que a adesão seja boa, em 30 anos apenas fizemos uma grave com mais de 90% de adesão e de lá para cá rigorosamente nada foi feito para resolver os problemas. Não há razão para não se fazer greve, a única razão é a falta de expectativa e confiança no Governo. Só se as pessoas entrarem em desespero e acharem que o governo não está minimamente interessado [é que não fazem greve], só estiverem de tal modo indignadas”.

Esta nova greve dos farmacêuticos hospitalares começa hoje, dia 22, e abrange todo o território continental e regiões autónomas. No dia 27 decorrerá nos distritos de Beja, Évora, Faro, Lisboa, Portalegre, Santarém, Setúbal e nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira. Já no dia 29 irá decorrer nos distritos de Braga, Bragança, Porto, Viana do Castelo e Vila Real, Aveiro, Castelo Branco, Coimbra, Guarda, Leiria e Viseu.

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