Novo ano até pode começar “com uma normalização nas urgências, mas já não vai ser o que era antes de tudo isto começar”

2 jan, 07:00
Ambiente hospitalar em tempos de pandemia

Depois de um final de ano negro nos hospitais portugueses, com serviços de urgência ora encerrados ora a rebentar pelas costuras, 2024 até pode começar de uma forma menos caótica neste setor, mas longe de pacífica. Profissionais no terreno reconhecem dificuldades, atrasos e pedem que sejam apresentadas soluções para que os cidadãos continuem a evitar ir às urgências por falta de alternativa. Pelo meio, há greves já planeadas para os primeiros meses do ano, uma delas prevista logo para a primeira segunda-feira após as eleições legislativas

A contagem a partir do zero das 150 horas extraordinárias a que os médicos estão sujeitos promete estabilidade nas escalas para o serviço de urgência, mas o cenário estará longe de ser o de total acalmia nos hospitais portugueses: à corrida contra o tempo das consultas e cirurgias que ficaram por fazer, há agora a ameaça de demissão dos diretores de serviço por causa do regime da dedicação plena e médicos que vão usar a lei para deixar de fazer urgências (como aqueles que têm mais de 55 anos), numa altura em que é esperada uma maior afluência aos hospitais devido aos vírus respiratórios, sobretudo a Gripe A, mas incluindo o SARS-Cov-2, que tem uma nova variante de “interesse” e rápido contágio.

A juntar a tudo isto, estão já programadas paralisações, desta vez levadas a cabo por enfermeiros - com o SITEU a prometer entregar um pré-aviso de greve durante a campanha eleitoral e com uma greve já pensada para a “primeira segunda-feira depois das eleições” - e farmacêuticos, com estes últimos a arrancar o ano com uma greve, que começa esta terça-feira. 

Em janeiro, fevereiro e março vai haver uma normalização nas urgências, mas já não vai ser o que era antes de tudo isto começar”, alerta Susana Costa, médica e porta-voz do movimento Médicos em Luta.

Apesar de a partir de 1 de janeiro os médicos ficarem novamente disponíveis para trabalhar mais horas, o que ajudará a completar as ainda desfalcadas escalas nos serviços de urgência, Susana Costa adianta que vai ser preciso correr atrás do prejuízo porque muitas consultas e cirurgias ficaram por fazer e vários clínicos irão bater o pé às urgências, tornando esta tarefa não tão simples como o desejado.

A partir de janeiro, continua a médica, “não vamos ter o SNS que tivemos, de todo. Há vários colegas que faziam urgência e que vão deixar de o fazer, perceberam que o seu esforço não tem significado. Vai haver certamente muita dificuldade, apesar da tendência a maior normalidade”, adianta a médica, referindo-se aos colegas que, “pela idade [têm 55 anos ou mais] ou circunstâncias previstas na lei”, podem já não fazer urgências ou escalas noturnas, mas fizeram-no na mesma até agora para colmatar a escassez de recursos humanos.

Em alguns locais podemos observar pequenas melhorias, pelo menos nas escalas médicas, mas sempre melhorias curtas e a curto prazo”, reconhece Mário A. Macedo, enfermeiro, mestre em Saúde Pública e especialista em saúde infantil e pediátrica, descartando a ideia de que a contagem do zero das horas extraordinárias dos médicos vá ser a tábua de salvação do SNS nos primeiros meses do ano: “A carência de profissionais de saúde é tão grande que já ultrapassa muito as 150 horas extra, poderiam até ser 300 horas que o resultado seria sempre o mesmo. Há uma carência enorme de profissionais de saúde, mais médicos, mas também enfermeiros e técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica”.

Sónia Portugal Viegas, do Sindicato Independente de Todos os Enfermeiros Unidos (SITEU), não hesita quando diz que “o caos no SNS vai continuar enquanto não se resolverem situações de fundo”, perspetivando um 2024 complexo e repleto de reivindicações e lutas. Este sindicato tem já planeada a publicação de um “pré-aviso de greve durante a campanha eleitoral”, como nos diz a enfermeira Gorete Pimentel, presidente do SITEU. Este pré-aviso será entregue caso a greve que termina esta terça-feira não leve “a qualquer resultado”.

Durante a campanha eleitoral, que é como quem diz, nos primeiros três meses do ano, os enfermeiros do SITEU ainda estão a avaliar se “é necessário  e conveniente fazer alguma ação sindical para além dos protestos que temos planeados”, continua Gorete Pimentel, sem adiantar detalhes para “não retirar o efeito surpresa”.

Sónia Portugal Viegas, enfermeira do no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte adianta que a “falta de recursos humanos” é transversal às várias classes profissionais, seja médicos ou enfermeiros, mas, no caso destes últimos, é já uma questão crónica e que no início deste ano poderá ser mais grave, até porque, diz, bastava que os enfermeiros não fizessem mais horas do que aquelas que constam nos seus contratos para que mais serviços hospitalares ficassem comprometidos. E basta que continue a não haver melhorias nas suas condições de trabalho e salário para que muitos batam a porta.

Todos os profissionais [de saúde] fazem horas extra, não é de agora, e fazem de uma forma irregular. O trabalho extraordinário está a ser usado de uma forma ilegal, já sai em muitas escalas de base. Se os profissionais cumprissem só o seu contrato, as 35 horas semanais, havia serviços que fechavam”, assegura Sónia Portugal Viegas.

Inverno, utentes sem médico de família e mudanças que vêm complicar as regras do jogo

Mário A. Macedo lamenta o “caos sistemático nestes serviços de urgência”, mas culpa o sistema por este cenário que se repete ano após ano. “Há em Portugal um excesso de procura destes serviços, Portugal é o país da OCDE com mais procura de ajuda nas urgências e não somos mais doentes do que os outros, o nosso sistema é que empurra para as urgências”, diz. E problema das urgências hospitalares não é de agora e há anos que se agrava pela falta de resposta dos cuidados de saúde primários, que continuam com recursos humanos escassos e incapazes de dar assistência a todos os portugueses - e 2023 terminou com mais de um milhão e 700 mil portugueses sem médico de família atribuído.

João Gouveia, diretor do serviço de urgência do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, mostra-se um tanto ou quanto otimista com o início do próximo ano, mas ainda assim cauteloso por saber que rapidamente o cenário pode mudar, como já aconteceu no final de 2023, com os hospitais a apresentar sérias dificuldades por causa de uma enorme afluência às urgências à boleia de um pico de casos de gripe A. 

“Espero que as coisas corram melhor, vamos ter vantagem por termos horas [extraordinárias] a zero, há escusas que deixam de fazer sentido. Espero que se consiga ter mais serviços abertos e mais serviços disponíveis para atender os doentes”, diz-nos, reconhecendo, porém, o inverno e os vírus respiratórios podem complicar as contas (como já o estão a fazer, com hospitais sem capacidade para internamentos nos cuidados intensivos), aumentando a afluência aos serviços de urgência tanto por parte de crianças como de adultos, mas garante que “não podemos nunca faltar ao que é mais urgente”, que é o atendimento de situações de emergência. 

“Este pico de afluência às urgências no inverno repete-se todos os anos, pode estar mais afetado pela falta de pessoal, é que sem condições de trabalho dignas, os colegas procuram outras soluções, seja no setor privado ou abandonam mesmo a profissão”, lamenta a enfermeira Sónia Portugal Viegas, revelando que “à conta da falta de enfermeiros já se têm fechado camas [de internamento] para ajustar à lotação que é possível”, cenário que diz que poderá manter-se ainda no próximo ano.

João Gouveia, diretor da urgência do maior hospital de Lisboa, diz que seria importante “aprender com o que fizemos com este em funcionamento em rede, que correu bem, para que se possa manter algumas características”. Além disso, destaca aquele que foi o comportamento de muitos portugueses neste outono: ligar para a Saúde 24 antes de se dirigirem às urgências, defendendo que esse é um hábito que se deve manter, de modo a evitar um fluxo desmedido nas urgências e até riscos para o próprio utente.

É muito inseguro um doente grave em risco de vida vir pelos seus próprios meios para o hospital e o problema das urgências resolve-se fora das urgências, temos de arranjar alternativas”, atira João Gouveia, chutando a bola para o Executivo e para a sua capacidade de tornar o SNS mais atrativo, pois, diz, a abertura de vagas para médicos de Medicina Geral e Familiar, apesar de importante, poderá não ser suficiente.

No entanto, da parte dos médicos de família, otimismo é palavra que não existe, nem mesmo quando são abertas novas vagas para contratar médicos recém-formados: “podemos abrir todos os concursos e colocar todas as vagas, mas se não tivermos profissionais motivados, os concursos serão um fracasso, nada foi feito para estimular os médicos de família. Continuamos sem ser uma real prioridade, isso deixa-nos preocupados, tristes e desanimados”, lamenta Nuno Jacinto, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF). 

Não conseguimos estar otimistas neste momento, os médicos, em particular os médicos de Medicina Geral e Familiar, não estão a ser tratados da forma adequada, tem de haver valorização e respeito pelo nosso trabalho. E os colegas, sobretudo os recém-formados, olham para o SNS como algo que é pouco atrativo e procuram outras opções”, reconhece Nuno Jacinto, dizendo que, por ano, são formados “cerca de 500” médicos de família e que são poucos os que ficam no setor público, o que impede a solução deste já antigo problema.

Também a entrada em vigor de uma forma generalizada das Unidades Locais de Saúde (ULS) é, para quem está no terreno, um risco de perpetuar algumas das dificuldades mais sentidas no SNS: a capacidade de dar resposta. “Vai haver mais dificuldade devido às ULS [unidades locais de saúde], isso é que vai levar à demolição do Serviço Nacional de Saúde”, alerta Susana Costa, adiantando que este novo modelo que junta cuidados de saúde primários e hospitais tem sido alvo de duras críticas e poderá aumentar ainda mais as assimetrias no acesso aos cuidados de saúde, pois “estas unidades serão financiadas com o valor por utente” e “aqueles que estarão em locais mais distantes das zonas cosmopolitas são cidadãos que valem menos”.

O enfermeiro Mário A. Macedo também está reticente com as ULS. Embora acredite que, “se for bem implementado, o modelo conseguirá incentivar a promoção em saúde”, Mário A. Macedo receia que esta mudança traga “mais confusão” ao setor público da saúde. “A curto prazo não deixa de ser uma revolução muito rápida sem envolvimento dos profissionais e das autarquias”, afirma. E isto, “somado ao facto de estarmos em pleno inverno, época de infeções respiratórias, é a tempestade perfeita” para o SNS.

Estou muito preocupado com a anunciada reorganização. quando temos quase dois milhões de pessoas sem acesso aos cuidados de saúde primários e um sistema que historicamente sempre empurrou para a urgência, não se deve começar a reorganização por dificultar o acesso às urgências, mas sim por reforçar os cuidados de saúde primários”, continua o enfermeiro.

Médicos prometem novas recusas, greves de zelo e até demissões. Enfermeiros já preparam lutas (e uma delas começa ainda este ano)

Susana Costa, porta-voz do movimento Médicos em Luta - que junta mais de sete mil profissionais -  deixa claro que o grupo vai manter-se “unido” e que a entrega de novas recusas a mais horas extraordinárias para lá das impostas por lei (150 horas) irá acontecer assim que essas horas forem esgotadas.

“Manteremos o protesto logo que esgotemos as 150 horas extra anuais, mas temos vindo a estudar outras formas de luta dos médicos face a este desmantelamento do SNS”, adianta a médica.

Em cima da mesa e em discussão entre todos os profissionais que estão neste movimento está a demissão em bloco a nível nacional de diretores de serviço devido à entrada em vigor, a 1 de janeiro, do regime de dedicação plena, ao qual ficam obrigados. Mesmo que este regime traga um aumento salarial, os médicos condenam-no pelo impedimento de trabalhar ao mesmo tempo no setor privado e por implicar uma jornada de trabalho diária de nove horas e um aumento das horas extraordinárias anuais para 250 horas.

O ano 2024 traz um problema seríssimo que é a dedicação plena, que prevê a obrigatoriedade de todos os diretores de departamento e de serviço em aderir, o vai levar a uma debandada dos diretores de serviço por não aceitarem. E a grande maioria não aceita. Vamos ter serviços sem diretores, departamentos sem diretores. Vamos ter uma degradação gravíssima do Serviço Nacional de Saúde”, diz Susana Costa, que adianta ainda que estão a ser pensadas “greves de zelo também”.

A saúde pública em 2023 ficou marcada pelo constante cenário de caos no SNS e por um braço-de-ferro sem fim à vista entre os sindicatos médicos e o Ministério da Saúde, mas o próximo ano promete também trazer luta por parte dos enfermeiros, que já começaram as reivindicações ainda este ano e que começam a acusar o cansaço de serem o balão de oxigénio dos hospitais.

Os enfermeiros iniciaram no final de dezembro uma greve de quase duas semanas, que se prolonga até 2 de janeiro, esta terça-feira. O objetivo da paralisação prende-se com a exigência da paridade com a carreira técnica superior da Administração Pública, o que representa um aumento de 52 euros mensais. “Daqui a bocadinho os enfermeiros estão a ganhar o ordenado mínimo nacional, não estamos muito longe disso e com a responsabilidade das vidas que temos nas mãos”, lamenta Sónia Portugal Viegas, do Sindicato Independente de Todos os Enfermeiros Unidos (SITEU), responsável pela greve de duas semanas e que logo no primeiro dia teve uma adesão superior aos 90%.

E Gorete Pimentel, do SITEU, já tinha deixado o aviso em declarações à CNN Portugal: “Temos duas greves bem planeadas e estruturadas para fazer no próximo ano se a situação dos enfermeiros se mantiver e não houver evolução”. Agora, deixa claro: “Os protestos serão inovadores e inesperados. Serão realizados nos principais hospitais do país”.

Claro que sim, que vai haver mais lutas, esta foi a primeira luta de muitas, desde que começamos não podemos parar”, adianta Sónia Portugal Viegas, revelando que o SITEU prepara uma “grande luta” para o próximo ano, deixando em aberto outras formas de protestos ou outras greves em cima da mesa. “Se a próxima será feita ou não antes ou depois das eleições, não está ainda decidido, mas a luta que temos pensada, a grande forma de luta, será para depois das eleições, mas não quer dizer que não haja lutas antes”, conclui.

Também da parte do Sindicato dos Enfermeiros, o tempo para agir já lá vai. “Vamos ter manifestações antes [das eleições], numa altura de pré-governo”, diz Pedro Costa à CNN Portugal, a propósito das lutas dos enfermeiros, defendendo que, “os sindicatos têm de se posicionar” durante a campanha eleitoral dos partidos, sendo as “greves direcionadas para determinados cuidados de saúde” um dos caminhos em cima da mesa. “Podemos ter movimentos organizados para urgências, cirurgia, cuidados de saúde primários”, conclui.

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