Há mais de 1,7 milhões de portugueses sem médico de família. E anúncio para contratar quase mil médicos arrisca ser mais um “fracasso”

26 dez 2023, 07:00
Saúde

O número de utentes sem médico de família atribuído cresceu de forma constante ao longo do ano e nem a abertura de um concurso para a contratação de clínicos recém-formados parece melhorar o cenário, alerta o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF)

O ano 2023 termina com 1.711.982 portugueses sem médico de família atribuído, um número que veio a crescer nos últimos meses e que representa 16% do total de pessoas inscritas nos cuidados de saúde primários, que são 10.562.560. 

Nuno Jacinto, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), reconhece que 16% até pode soar a uma percentagem pequena num universo de 100%, mas apressa-se a dizer que o cenário é mais complexo: “Não podemos dizer mesmo que é um número pequeno, nem dizer que é apenas 16%, é uma fatia muito grande”, diz.

Estamos a falar de 1 milhão e 700 mil pessoas. É um número muito, muito significativo, há enormes assimetrias, há regiões onde a falta de médicos de família representa grande parte da população, como em Lisboa”, onde, segundo os dados do Portal da Transparência, que são apenas referentes ao mês de novembro, 30% dos utentes não têm médico de família atribuído. Mas não só: dos 15 centros de saúde sem médico de família em Portugal, 14 pertencem à região de Lisboa e Vale do Tejo.

Nuno Jacinto diz que o elevado número de utentes sem médico de família atribuído traz sérias consequências ao próprio Serviço Nacional de Saúde (SNS). “O acesso da população aos cuidados de saúde está comprometido, os cuidados de saúde primários têm de ser a porta de entrada no setor de saúde e não havendo esta porta as pessoas procuram soluções de recurso e nem sempre há”, diz, referindo-se à ida às urgências, mesmo em situações não urgentes, havendo sempre o risco de não serem atendidas ou de o serviço estar fechado, ou de não terem disponibilidade financeira para recorrer ao setor privado da saúde.

No final deste ano, o Governo anunciou a abertura de um concurso para contratar 924 médicos recém-formados em Medicina Geral e Familiar, mas, face ao que tem acontecido nos anos anteriores, Nuno Jacinto prevê mais um “fracasso”.

“Não conseguimos estar otimistas neste momento, os médicos, em particular os médicos de Medicina Geral e Familiar, não estão a ser tratados da forma adequada, tem de haver valorização e respeito pelo nosso trabalho. E os colegas, sobretudo os recém-formados, olham para o SNS como algo que é pouco atrativo e procuram outras opções”, reconhece Nuno Jacinto, dizendo que, por ano, são formados “cerca de 500” médicos de família e que são poucos os que ficam no setor público.

“É positivo que as vagas sejam abertas e colocadas, mas podemos abrir todos os concursos e colocar todas as vagas, mas se não tivermos profissionais motivados, os concursos serão um fracasso, nada foi feito para estimular os médicos de família. Continuamos sem ser uma real prioridade, isso deixa-nos preocupados, tristes e desanimados”, lamenta o representante dos médicos de família.

Ainda assim, o preenchimento de todas as vagas agora colocadas a concurso pode não ser suficiente. Segundo as contas da Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiar (USF-AN), faltam 1.125 médicos de família e o preenchimento total das vagas resultaria, ainda, num buraco de 201 clínicos.

Mas Nuno Jacinto diz que “não basta atribuir doentes a médicos”. “Temos de ter um médico capaz de dar resposta, quando temos listas muito grandes e muita burocracia, essa resposta fica comprometida”, vinca.

Reformulações podem tornar o cenário ainda pior

Em outubro, mais de mil médicos de família do SNS de todo o país assinaram uma carta em que se opõem às propostas do Governo que vão regular o funcionamento das Unidades de Saúde Familiar (USF). Sobre este ponto, Nuno Jacinto junta-se às vozes críticas, reconhecendo que receia que os médicos de família acabem por ‘pagar a fatura’ com mais trabalho, tapando eventuais buracos dos serviços hospitalares. E que isso poderá ser mais uma porta de saída dos profissionais do SNS, agravando a situação de utentes sem médico de família atribuído.

O que importa é que não coloquemos os cuidados de saúde primários ou médicos de família numa posição secundária, não queremos ser mais do que ninguém, mas não vamos colmatar as dificuldades dos hospitais, se assim for, não vamos conseguir prestar cuidados à população”, alerta Nuno Jacinto.

Para Nuno Jacinto, “tem de haver uma aposta clara nos recursos humanos, mais médicos de família, essa tem de ser a maior preocupação, não são os edifícios, a reforma teórica”. “A solução”, diz, “passa pela valorização do nosso trabalho, de salários, uma verdadeira carreira médica, flexibilidade de horários, haver sistemas de informático que nos ajude e termos condições físicas e materiais que nos permitam exercer a nossa atividade com dignidade”.

Também as “reformas da generalização do modelo B” são alvo de críticas por parte do presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, que se apressa a dizer que “não há uma generalização, o que há é o acesso a um novo modelo com um regime remuneração que a nosso ver é muito perigoso, como a associação do rendimento à prescrição de medicamentos”, exemplifica. Um dos objetivos do governo para fixar médicos no SNS e até fazer frente ao elevado número de portugueses sem médico de família é transformar todas as unidades dos cuidados de saúde primários em USF modelo B (unidades de saúde familiares), em que estas insitituições passarão a ter a sua remuneração associada ao desempenho.

O especialista diz que é preciso ir mais a fundo nesta questão, começando por avaliar o trabalho concreto de um médico de família, que vai além da consulta com o paciente. A burocracia, um dos calcanhares de Aquiles mais antigos da classe, continua a ser um entrave à fluidez do trabalho, comprometendo o tempo de consulta e o número de pacientes atendidos, resultando, muitas vezes, em mais horas de serviço.

“Há que reconhecer que foram dados nesse sentido [da desburocratização], pequenos e tênues, como as baixas [prescritas por privados] e a autodeclaração de doença [pedida via linha SNS24], mas continuamos a ter demasiado burocracia que devia basicamente ser eliminada e sistemas de informática melhorariam muito essa questão”, diz. 

Mas, ainda assim, há mudanças que, pelo contrário, apenas dificultam o trabalho dos médicos, como a referente à medicação para doença crónica, cujo programa informático agora é mais complexo e detalhado - e com falhas constantes -  e o paciente apenas pode levar medicamentos para dois meses, mesmo que tenha receita para um ano. “A prescrição de medicamentos implica que perdemos muito mais tempo para passar medicamentos para doença crónica, temos muito mais cliques”, diz. “Não é prático, não é eficaz, não traz ganhos para o doente, muito pelo contrário”, atira.

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