"Ainda ninguém viu o poder que têm na mão". Enfermeiros estão cansados, exaustos e com pouca paciência para o Governo (qualquer que seja)

27 nov 2023, 07:01
Enfermeiro (Freepik)

Sentem-se prejudicados, desvalorizados e cansados. Querem melhores condições e este ano fizeram um sem-fim de greves a exigir isso mesmo, mas não hesitam em acusar o Governo de “ludibriar” as suas lutas. Dois enfermeiros explicam o estado real da classe

Há muito que as queixas se multiplicam: horas de trabalho a mais, colegas a menos, má remuneração e um sentido de descrença por parte dos sucessivos governos. Os enfermeiros andam cansados e temem pelo futuro, o deles e o da profissão, mas não se acanham em prometer um 2024 de luta, com greves e protestos já planeados por alguns, mas com um possível braço-de-ferro com o Governo, seja ele liderado por que partido for.

Os enfermeiros estão descontentes e não podem continuar a ser ignorados, somos a maior classe do país e a OCDE confirma que os enfermeiros portugueses continuam a ganhar menos do que na fase pré-troika. O que queremos é um serviço público de saúde que funcione, mas não pode ser à conta dos nossos baixos salários”, diz Mário A. Macedo, enfermeiro, mestre em Saúde Pública e especialista em saúde infantil e pediátrica.

Segundo os dados mais recentes da OCDE, divulgados no Health at a Glance 2023, “a remuneração dos enfermeiros diminuiu em termos reais entre 2010 e 2019 na Grécia, em Itália, em Portugal, na Finlândia e Reino Unido”, indica o organismo, excluindo fatores mais recentes e com impacto no poder de compra, como a inflação. 

A OCDE diz ainda que o rácio de salário médio, em 2021, dos enfermeiros hospitalares portugueses era de 1.0, quando a média na OCDE é de 1.2 - e a falta de profissionais foi um dos motivos pelos quais centenas de enfermeiros apresentaram, este ano, escusas de responsabilidade. Também o rácio de enfermeiros por médicos é inferior: por cá é de 1.3 e a bitola da OCDE é de 2.5.

A questão salarial é um dos grandes motes reivindicativos da classe, que lutam por um contrato coletivo de trabalho e pela atualização salarial, estagnada há largos anos e que não diferencia os enfermeiros especialistas dos generalistas e pouco ou nada se destaca, em início de carreira, daquilo que atualmente é pago no salário mínimo nacional.

“O salário de entrada na profissão continua a ser demasiado baixo, tendo em conta a subida do salário mínimo, que por si só já era bastante baixo. A diferença entre um enfermeiro que começa hoje a trabalhar e alguém que tenha o salário mínimo, em termos líquidos, pode ser uma diferença de apenas 150 a 200 euros e isso desvaloriza muito a profissão”, lamenta Mário A. Macedo.

Para João Gaspar, enfermeiro de reabilitação, a exercer no Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, e membro da Associação dos Enfermeiros Portugueses de Ortopedia e Traumatologia, este “retorno financeiro inferior face às classes paralelas” é apenas um dos motivos do descontentamento da classe, embora se apresse a mostrar o cenário atual da classe: “Os enfermeiros começam a trabalhar com 1.200 euros, estagnados há muito tempo. São 1.200 euros brutos, não limpos”, sublinha, alertando ainda para o não retorno do investimento numa formação (até agora paga sempre pelos próprios enfermeiros).

Eu, com 28 anos de profissão, a exercer função de especialista, ganho o mesmo do que um colega com os mesmos anos de profissão sem especialidade. O meu investimento não trouxe retorno financeiro”, lamenta.

Enfermeiros acusam excesso de trabalho

Mário A. Macedo atende-nos o telefone pelas 14:30, cerca de meia hora depois do combinado. Mas avisou por mensagem: “Dá-me +/- 30 minutos. Só consegui acordar agora mesmo. [A] noite foi má.”

Os enfermeiros hospitalares estão 24 horas por dia nos serviços, trabalham por turnos e revezam-se uns aos outros, até mesmo nas greves, cujos mínimos são impostos tendo em conta o número de enfermeiros escalados no fim de semana anterior. E, para eles, o fim de semana é como qualquer outro dia. O resultado é notório: dizem-se cansados, desmotivados e revoltados.

“Somos os recordistas de horas extra, são milhares e milhares”, como nos disse Gorete Pimentel, enfermeira obstetra no Hospital de Braga e presidente da direção do SITEU - Sindicato Independente de Todos os Enfermeiros Unidos.

Por cada mil habitantes, Portugal tem um rácio de enfermeiros na ordem dos 7.4, quando a média da OCDE é 9.2. No entanto, o próprio organismo reconhece que o valor pode estar sobrevalorizado, uma vez que inclui “enfermeiros que trabalham no sector da saúde como gestores, educadores, investigadores e similares”, lê-se no relatório.

“Temos enfermeiros descontentes com a questão laboral, a condição de trabalho, com a pressão no SNS, a pressão dos turnos”, reconhece João Gaspar. Para o enfermeiro especialista em reabilitação, falta consciência daquilo que é, de facto, o trabalho de um enfermeiro - e o que o uso custa em horas de funções. “A presença do enfermeiros é de 24 horas, desde o nascimento à morte, do trauma à reabilitação, somos nós que estamos mais tempo e que acompanhamos os doentes neste ciclo de vida”, adianta, lamentando que os enfermeiros, “independentemente de tudo e das qualificações, têm vindo a ser prejudicados face a outras classes” e parte desse prejuízo é sentido na própria pele.

Sentimo-nos prejudicados, nem coloco muitas vezes a questão salarial, conta muito, mas há outras coisas. Temos uma profissão de desgaste rápido, muitas noites, turnos, uma sobrecarga psicológica muito grande e continuamos a ter a idade de reforma aos 66 anos. Quantos são os enfermeiros aos 66 anos capazes de tratar [a este ritmo]?”, questiona João Gaspar. “Costumo brincar e dizer que quando tiver 66 anos venho fazer reabilitação de canadianas. Mas com 66 anos não terei a capacidade física para fazer o que faço hoje aos 50. Isso desanima e causa-me medo.”

João Gaspar já reconheceu que a idade da reforma, atendendo ao ritmo e quantidade de trabalho a cargo dos enfermeiros, é algo que o “desanima” e causa “medo”. E como ele, tantos outros se encontram na mesma situação: alguns desistem de seguir a “vocação” e optam por outros turnos, os que já andam no terreno, por vezes, atiram a toalha ao chão e abandonam a carreira. E se soubesse o que sabe hoje, possivelmente, nem aquilo que chama de “vocação” o teria levado para a enfermagem.

Se hoje fosse tomar a decisão [de escolher enfermagem] não vinha [para esta profissão]. Vim pelo gosto pela profissão, por poder ajudar o outro, ver a recuperação do doente. Achei que era uma vocação que me daria alento, mas digo aos miúdos para pensarem bem, porque no futuro irão ter piores condições”, admite João Gaspar.

Independentemente de quem chegar a São Bento, situação tem de mudar, dizem

Tanto João Gaspar como Mário A. Macedo reconhecem que o sector público da saúde necessita de uma reforma e que os enfermeiros devem ser incluídos, vendo as suas condições laborais e salariais melhoradas.

O enfermeiro especialista em reabilitação reconhece que será uma “conquista” difícil, mas ironiza com uma solução: “Vai ser difícil [a classe] ter esse reconhecimento nos próximos tempos, são muitos enfermeiros, a reivindicação [do salário] tem um gasto enorme para o Orçamento do Estado, mas o dinheiro da TAP dava para pagar isso tudo.”

Já Mário A. Macedo é taxativo quando diz que “um dos desafios para o futuro Governo é que terá necessariamente de ouvir os enfermeiros”, sob pena de as lutas se intensificarem, cenário que diz que é o mais provável que aconteça.

“Sem dúvida [que haverá mais protestos], estou confiante que haverá mais greves para o ano que vem se não houver abertura ou real necessidade de negociação [por parte do Governo]. Se assim for, para o ano teremos um ano repleto de greves e manifestações”, vinca Mário A. Macedo.

E sobre as lutas deste ano - e foram dezenas as greves feitas de norte a sul do país, convocadas pelos vários sindicatos de enfermeiros -, João Gaspar diz que foram importantes, mas lamenta que a visibilidade nem sempre seja a merecida.

“Quando fazemos greve, a imagem que aparece é que somos tantos [enfermeiros no ativo] e aparecem tão poucos. Mas isso acontece porque quando fazemos greve, não podemos todos sair do nosso local de trabalho. Os mínimos são prestados e os enfermeiros permanecem no local do trabalho, ao contrário dos médicos que fecham serviços”, explica.

João Gaspar diz que “o Ministério da Saúde ludibria todas as nossas lutas com grande traquejo”, mas deixa o aviso: “No dia em que os enfermeiros resolverem entregar as cédulas profissionais na Ordem dos Enfermeiros e disserem que não querem ser mais enfermeiros, o SNS morre. Ainda ninguém viu o poder que os enfermeiros têm na mão.”

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