Rebelião ou guerra civil? Um guia para se perceber o que está a acontecer na Rússia

24 jun 2023, 13:23

Em menos de 24 horas o grupo que era um forte aliado de Putin entrou na Rússia para ir até Moscovo. O que se segue ninguém sabe

Rebelião? Golpe militar? Estará o fim de Vladimir Putin enquanto presidente da Rússia próximo? São as questões que se levantam nas últimas horas, depois de o grupo paramilitar Wagner, um conjunto de mercenários altamente treinados, e que sempre foi leal ao chefe de Estado russo, se ter virado contra Moscovo. Mas vamos por partes. Esta é a fita do tempo.

Prigozhin parte a corda

Durante meses, foram várias as críticas do líder do Grupo Wagner, o milionário Yevgeny Prigozhin, que sempre foi um forte aliado de Vladimir Putin. Críticas sobre a falta de armamento ou de apoio logístico às posições dos mercenários que combatiam na guerra da Ucrânia fizeram abrir uma outra guerra, com o Ministério da Defesa e o exército da Rússia.

Guerra essa que foi declarada já depois de a noite de sexta-feira cair na Rússia, por volta das 21:00 locais (menos duas horas em Portugal Continental). Prigozhin acusava a Rússia de ter ordenado um ataque que matou "um grande número" de soldados do Grupo Wagner. O ministério russo da Defesa, liderado por Sergei Shoigu, ainda negou, mas os mercenários tinham tomado a sua decisão.

"Isto não é uma rebelião, mas uma marcha de justiça", afirmou Yevgeny Prigozhin, já depois de divulgar um vídeo em que criticava a intervenção da Rússia na Ucrânia, sugerindo que a mesma só serviu o propósito de alguns "canalhas", e que Shoigu só queria elevar o seu posto a marechal.

Prigozhin foi mais longe: a guerra na Ucrânia não era necessária; não havia qualquer necessidade de desnazificar o território. As primeiras declarações que já iam para lá de críticas à Defesa e ao exército, e que começavam a atingir também o presidente da Rússia. Segundo o próprio líder dos mercenários, foram estas palavras que provocaram o alegado ataque aos mercenários, e que espoletaram toda a situação.

Rússia contra-ataca e defende-se

Cerca de uma hora mais tarde, o Kremlin vinha fazer a primeira declaração oficial. O porta-voz da presidência russa, Dmitry Peskov, anunciava que Putin tinha sido informado de tudo o que estava a acontecer, acrescentando que estavam a ser tomadas medidas.

E uma dessas medidas foi o primeiro comunicado do Serviço Federal de Segurança da Rússia (FSB), que exigiu o "fim imediato das ações ilegais", falando numa "rebelião armada" contra o regime e instaurando um processo criminal contra Prigozhin.

A Procuradoria-Geral da Rússia confirmava esse cenário, acusando Prigozhin de "tentativa de organizar uma rebelião armada", um crime que todas as agências estatais russas fizeram questão de vincar que poderia resultar em 20 anos de prisão.

Ao mesmo tempo, a Rússia começava a preparar-se para todas as eventualidades. Em Moscovo, onde amanheceu por volta das 03:00 locais, foi acionado o plano "Fortaleza", sendo possível ver a presença de militares nas ruas e uma Praça Vermelha, no coração da cidade, totalmente vazia.

Cerca das 09:00 locais foi declarado o regime de operação antiterrorista em Moscovo, para "para evitar possíveis atos terroristas na cidade".

Começavam também a notar-se falhas no acesso à informação na Rússia, com o impedimento da população em aceder ao Google.

Entrada na Rússia

Passava pouco da meia-noite em Portugal quando Prigozhin fazia nova atualização. O Grupo Wagner tinha entrado na Rússia, depois de realizar um caminho de cerca de três horas entre Donetsk e Rostov-do-Don, na região de Rostov.

"Neste momento, já atravessámos todos os pontos de fronteira com a Ucrânia. Os guardas cumprimentaram-nos e abraçaram os nossos combatentes. Agora, estamos a entrar em Rostov", disse Prigozhin, culminando: "Se alguém ficar no nosso caminho, vamos destruir tudo!".

Com ele levava uma coluna composta por 400 veículos e milhares de militares (não se sabe quantos, mas o Grupo Wagner tem um contingente com cerca de 25 mil soldados).

Recorde-se que é em Rostov que fica uma das principais bases logísticas da Rússia no apoio ao esforço de guerra na Ucrânia, sendo a outra em Belgorod. Especialistas militares admitem que a passagem pela zona pode ter servido para isso mesmo: reabastecer veículos e recolher equipamento.

Cerca de duas horas depois de Prigozhin ter anunciado a entrada da coluna militar na Rússia, o mesmo mercenário fazia nova acusação ao exército, desta vez ao chefe do Estado-Maior da Rússia, Valery Gerasimov. O mercenário acusava o chefe de todas as operações militares russas de ordenar um ataque aéreo "no meio de carros civis", com o objetivo de deter a coluna militar.

"O chefe do Estado-Maior acaba de dar ordem para levantar os aviões e abrir fogo contra as colunas que se deslocam entre veículos civis e camiões", disse. "Ele não se importa com quem mata. Há um ano e meio que andam a matar os seus civis em vez de combater o inimigo", acrescentou, afirmando que havia pilotos russos a recusarem cumprir as ordens dadas.

Prigozhin acusou mesmo a Rússia de colocar no caminho do Grupo Wagner "crianças" de 18 de anos, garantindo que não ia entrar num conflito armado com estes soldados. Mas a Força Aérea russa terá mesmo avançado sobre a coluna militar, o que levou os mercenários a abaterem um helicóptero, de acordo com o próprio líder do grupo.

Já este sábado de manhã, poucas horas depois da entrada do Grupo Wagner na Rússia, era anunciado o primeiro sucesso. Vários vídeos surgiram com dezenas de militares a cercarem a sede do Distrito Militar do Sul, em Rostov e, pouco depois, Prigozhin soltou um vídeo em que era visto a falar com o vice-ministro da Defesa, Yunys-bek Yevkurov. Nesse mesmo vídeo o mercenário pedia para falar com Shoigu e Gerasimov, os seus grandes rivais.

"Queremos o Gerasimov e o Shoigu. Até eles estarem aqui, continuaremos aqui, a bloquear Rostov e a seguir para Moscovo", disse o líder do Grupo Wagner.

Wagner a meio caminho

Os dois líderes do exército russo não responderam e o Grupo Wagner continuou a avançar, utilizando a famosa autoestrada M-4, que liga Rostov à capital da Rússia.

Por volta das 10:00 locais os mercenários anunciavam a sua presença na cidade de Voronezh, já na região acima de Rostov. "As instalações militares em Voronezh foram tomadas pelo Grupo Wagner. O exército passou para o lado do povo", escreveu o grupo, numa informação depois confirmada pelos serviços de segurança russos à Reuters.

É lá que estão os mercenários neste momento, a meio caminho entre o início do percurso e o seu objetivo final: Moscovo, que já está só a 500 quilómetros de distância.

E foi precisamente em Voronezh que o Grupo Wagner anunciou: "Na região de Voronezh, uma das colunas está a ser atacada. A guerra civil começou oficialmente".

Acautelando o que se pode seguir, a região de Lipetsk, a que se segue no caminho para Moscovo, já pediu aos seus habitantes que não saiam de casa.

Putin vs Prigozhin

Se as críticas de Prigozhin ao Ministério da Defesa e ao exército da Rússia não são de agora, havia uma linha que o mercenário nunca tinha ultrapassado, a dos ataques diretos ao presidente da Rússia, até então seu forte aliado. Mas essa linha foi ultrapassada, confirmando que o que está a acontecer na Rússia é algo sem retorno para o Grupo Wagner e os seus combatentes, começando pelo líder.

Apesar de todos os pedidos de união, que vieram desde importantes militares e até do líder religioso da Igreja Ortodoxa Russa, o patriarca Cirilo, Prigozhin dirigiu-se a Putin: "Putin fez a escolha errada. Tanto pior para ele. Em breve teremos um novo presidente".

"O gatilho da guerra civil foi premido por Putin. Em vez de mandar um ou dois degenerados para a reforma, deu a ordem para neutralizar a unidade mais pronta para o combate na Rússia. A vida de um ou dois traidores foi colocada acima de 25 mil heróis. Quem é o mau neste conflito já é óbvio. A vitória será do Wagner", escreveu ainda o grupo.

A resposta do presidente da Rússia não se fez esperar. Perto das 09:00 locais Putin falou à nação, afirmando que o país estava a "combater uma ameaça neonazi" e apelidando as ações do Grupo Wagner de "facada nas costas" e "traição" ao Kremlin.

"Vou fazer tudo em meu poder para defender o país e a constituição. Aqueles que organizaram este golpe serão responsabilizados", afirmou o presidente russo.

Vladimir Putin reafirmou que a Rússia está "a lutar pela sua vida, soberania e independência" e que tem contra si "todo o poder militar, económico e informacional do Ocidente", e afirmou que são "interesses pessoais" o motivo pelo qual as Forças Armadas russas estão em conflito.

"Devemos pôr de lado todas as diferenças que os nossos inimigos usam e podem usar para nos perturbar a partir de dentro", concluiu.

Prigozhin reagiu pouco depois, garantindo que nenhum dos membros do grupo se vai render às ordens de Putin. "Relativamente à traição à pátria, o presidente está profundamente enganado. Nós somos patriotas. Lutámos e estamos a lutar, todos os combatentes do Wagner. E ninguém se vai render às exigências do presidente, do FSB, ou de quem quer que seja. Porque não queremos que o país viva ainda mais na corrupção, na mentira e na burocracia", disse Yevgeny Prigozhin.

Como a Ucrânia vê o que está a acontecer

Se há quem acompanha esta situação com o máximo interesse é a Ucrânia. O país que está sob invasão russa há mais de um ano tem estado ao corrente de tudo o que se passa no lado de lá da fronteira, tentando, desde a primeira hora, aproveitar o conflito em pleno solo russo.

Logo nas primeiras horas da rebelião do Grupo Wagner foi anunciada uma contraofensiva ucraniana em Bakhmut, cidade que tinha sido precisamente conquistada pelos soldados de Prigozhin, e que é logisticamente importante para as operações em Donetsk.

Mais tarde o próprio presidente da Ucrânia pronunciou-se sobre o caso: "Todo aquele que escolhe o caminho do mal destrói-se a si próprio. (...) Durante muito tempo, a Rússia utilizou a propaganda para mascarar a sua fraqueza e a estupidez do seu governo. E agora o caos é tão grande que nenhuma mentira o consegue esconder. E tudo isto por causa de uma pessoa que, uma e outra vez, assusta com o ano de 1917, apesar de não ser capaz de conseguir mais nada senão isto. A fraqueza da Rússia é óbvia. Fraqueza em grande escala. E quanto mais tempo a Rússia mantiver as suas tropas e mercenários na nossa terra, mais caos, dor e problemas terá para si própria mais tarde", escreveu Volodymyr Zelensky no Twitter.

Já o ministro dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia aproveitou toda a situação para fazer nova pressão sobre o Ocidente para a entrega de armas. "Aqueles que disseram que a Rússia era demasiado forte para perder: vejam agora. É altura de abandonar a falsa neutralidade e o medo de uma escalada; dar à Ucrânia todas as armas necessárias; esquecer a amizade ou os negócios com a Rússia. É altura de pôr fim ao mal que todos desprezavam mas que tinham demasiado medo de derrubar", disse Dmytro Kuleba.

Como o resto do mundo vê o que está a acontecer

Desde o início da rebelião que a Casa Branca garantiu que a administração dos Estados Unidos estava a acompanhar atentamente os desenvolvimentos ocorridos na Rússia.

Já na Europa, e pelas primeiras horas da manhã, vários governos e a própria União Europeia reuniram-se para avaliar a situação, sendo que a Organização do Tratado Atlântico Norte (NATO, na sigla original) também está a acompanhar todos os acontecimentos.

Quanto a Portugal, a embaixada em Moscovo recomendou a todos os cidadãos nacionais que estejam na Rússia para evitarem locais públicos e deslocações desnecessárias.

“A embaixada de Portugal recomenda aos cidadãos nacionais que se encontrem na Rússia que evitem locais públicos, grandes aglomerados e deslocações desnecessárias, especialmente nas regiões do Sul do país, em particular Rostov-on-Don”, deu conta uma nota publicada no Portal das Comunidades.

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