Inimigos, adversários ou rivais? China e EUA moveram as peças no tabuleiro do jogo diplomático - e porque é que "o mundo agradece"

19 jun 2023, 22:00
Antony Blinken reúne-se com Xi Jinping em Pequim (Foto: EPA/XINHUA/Wang Ye)

Xi Jinping recebeu o secretário de Estado norte-americano e permitiu um aliviar das tensões entre Washington e Pequim. Mas a abertura de canais de diálogo não significa que estejamos mais longe de uma nova Guerra Fria - que, segundo alguns analistas, até já começou

"Sempre depositámos as nossas esperanças no povo americano". A frase é de Xi Jinping e parece inusitada, mas certamente que não foi dita ao acaso. Xi falava durante um raro encontro com Bill Gates, o fundador da Microsoft, que na semana passada esteve em Pequim para se reunir com o presidente chinês. Recebido como "amigo", na qualidade de presidente da Fundação Bill e Melinda Gates, e num contexto de fortes tensões diplomáticas entre Washington e Pequim, o fundador da Microsoft esteve com o presidente chinês dois dias antes da visita à China do secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken. A frase pode ter sido um sinal: "São muito relevantes as palavras de Xi, a disposição chinesa para falar com americanos. Não vimos isso nos últimos encontros", diz Jorge Tavares da Silva, especialista em assuntos internacionais.  

Do lado americano, também pode ter havido sinais que proporcionaram esta abertura de Pequim, nomeadamente no que diz respeito ao balão-espião chinês abatido sobre os EUA em abril: "Reconheceram que a questão foi muito exaltada, de forma excessiva. Foi dar aos chineses um sinal de que a situação se descontrolou. Estamos a ver sinais de um lado e do outro, e julgo que também pode ter a ver com o conflito na Europa", continua Jorge Tavares da Silva. "Os Estados Unidos e a China precisam um do outro. Ao hostilizarem-se, estão a prejudicar-se mutuamente. E a China está numa nova fase, acabou o isolamento", recorda o especialista - Pequim só reabriu portas ao mundo há seis meses, depois de quase três anos de encerramento devido às medidas para controlar a pandemia de covid-19. "O conflito na Ucrânia está a prolongar-se, a situação está difícil e, nos últimos meses, Rússia e China acabaram por ter um alinhamento muito forte. Os Estados Unidos têm interesse em fragilizar essa ligação e trazer a China para o lado de cá", reflete Tavares da Silva. 

Bill Gates reúne-se com Xi Xinping em Pequim (Foto: EPA/XINHUA)

E se o encontro entre Blinken e Xi, que nem sequer estava confirmado na agenda e acabou por realizar-se, é sem dúvida "positivo e relevante", o especialista admite que não é mais do que um "reajuste", um trabalho feito sobretudo do lado da diplomacia americana - "com a China mais expectante e estática" -  já que Washington e Pequim continuam a encarar-se mutuamente como "um competidor". 

"Não nos vamos iludir. Os Estados Unidos continuam a olhar para a China como um competidor, não como um inimigo, e este é o momento de dizerem que não querem escalar, que não devem escalar, porque isso poderia levar a um conflito armado. Julgo que a ideia seja colocar aqui linhas vermelhas", sugere Tavares da Silva, olhando para as movimentações num "tabuleiro do jogo diplomático". "Esta viagem de Blinken é exatamente este reajustamento, para não deixar descontrolar a situação. E o mundo agradece", resume. 

Uma nova Guerra Fria?

Em declarações após o encontro com Xi, o secretário de Estado norte-americano declarou que a conversa com o presidente chinês foi "robusta" e construtiva em alguns temas, admitindo que noutras áreas ainda há "trabalho para fazer".

"As expectativas eram muito baixas", diz Diana Soller, especialista em assuntos internacionais, assinalando que esta reunião serviu para "reabrir um diálogo que estava praticamente fechado desde que começou a guerra na Ucrânia", situação agudizada precisamente pelo episódio balão-espião, que Pequim sempre garantiu tratar-se de um balão meteorológico.

Soller recorda que tanto as declarações de Blinken como as do chefe da diplomacia chinesa, com quem o norte-americano se reuniu antes do encontro com Xi, não foram no sentido das partes se congratularem com o eventual desanuviamento das relações, mas evidenciando que cada um dos atores está "entrincheirado na sua posição", declarando as suas "linhas vermelhas". 

"E porque é que esta relação entre EUA e China é importante para o mundo? Por um lado, estamos a falar da relação dominante no século XXI e, por outro lado, falamos de uma relação que é muito confrontacional, muito conflituosa. E isso não me parece que vá mudar nos próximos tempos. Do meu ponto de vista, está a dar-se início a uma nova Guerra Fria que opõe EUA e China", diz Diana Soller. 

"Os EUA criaram à volta da China um cerco de estados que querem conter a China. Por outro lado, a China criou com a Rússia uma aliança sem limites que tem por principal objetivo, como os próprios dizem, acabar com a hegemonia e a multipolaridade americana. E as medidas de ambos os lados para manterem os seus planos de contenção relativamente ao outro lado mantêm-se e não há nenhum indício de que vão abrandar. Uma Guerra Fria, por definição, acaba por envolver todos os estados poderosos do sistema internacional, especialmente neste contexto em que há uma transição de poder, com os EUA a declinarem e a China a tornar-se mais importante", assinala a especialista, que admite que nos próximos anos deveremos assistir às tentativas da criação de uma nova ordem internacional por parte da China e, por oposição, às tentativas de Washington de manter esta ordem tal como está.

"Vamos ver uma batalha em capítulos por essas visões alternativas, a não ser que um dos contendores desista, o que me parece muito pouco provável", atira. "Este tipo de movimento internacional é muito volátil, com momentos muito tensos", diz ainda Diana Soller. "Estes momentos de desanuviamento são importantes porque podem evitar conflitos armados que não interessam a ninguém", conclui. 

Jorge Tavares da Silva, por seu lado, considera que não é possível falar numa nova Guerra Fria porque os "parâmetros não são os mesmos" do século passado e o contexto mudou. "Estamos a falar de duas potências que são interdependentes, precisam uma da outra", defende. "Um bom entendimento entre os dois atores é fundamental", acrescenta ainda, referindo que esta reabertura dos canais de diálogo entre Washington e Pequim traz um clima mais favorável em termos internacionais mas pode deixar a Rússia "mais nervosa". 

"Julgo que, aqui, as grandes questões são as do digital, da tecnologia, da inteligência artificial e outros domínios onde a China e os EUA competem. Temos de pensar nas sanções aos chips, a questão de Taiwan e do Indopacífico, do Mar do Sul da China. Mas não nos vamos iludir: esta é uma viagem de reajustamento e os Estados Unidos continuam a olhar para a China como um competidor e não como um inimigo", assegura. 

Jorge Tavares da Silva aponta mesmo que os EUA passaram a usar a linguagem europeia quando dizem que é necessário um "baixar de risco", o "derisking" que Bruxelas defende nas relações com o gigante asiático. "Temos de perceber que a economia americana precisa muito da economia chinesa. Estou a lembrar-me de Kissinger, uma voz importante, que disse que os EUA têm de se aproximar da China porque é importante para o mundo e para os EUA. Como são interdependentes, precisam um do outro", aponta, acrescentando que também há razões de política interna para as movimentações de Washington. "Ainda temos o cenário das eleições nos EUA, que pode trazer dividendos para os democratas, cedendo mas não tanto que possam exaltar os republicanos, até que digam que Biden está a ser brando a China", diz o especialista em assuntos internacionais. A viagem de Blinken à China, que agora se realizou, estava prevista para o passado mês de fevereiro, mas acabou adiada devido às consequências diplomáticas do abate do balão-espião. 

Ucrânia e Taiwan 

Diana Soller recorda que, na cimeira do ano passado, a NATO inscreveu no seu conceito estratégico para os próximos dez anos a China como desafio sistémico para a Aliança Atlântica, uma ameaça a longo prazo. "Pelo menos a nível retórico e documental, há uma ligeira mudança da Europa em relação à China", esclarece a especialista, com os países europeus a seguirem naturalmente as posições americanas, dominantes na NATO. "Veja-se a Alemanha, que sempre se posicionou relativamente à China como se fosse um parceiro económico mas, neste momento, além de dizer que é um rival sistémico da Europa, admite que a sua própria política económica vai mudar e ser subordinada à política de segurança", acrescenta. "Paulatinamente, a Europa está a chegar-se aos EUA e a afastar-se da China", considera.

Já sobre o impacto que a abertura do diálogo sino-americano pode ter na guerra na Ucrânia, Diana Soller é contundente: "Não será nada de positivo", aponta. "Os EUA envolveram-se na guerra na Ucrânia porque entendem que são os líderes do mundo livre e, como tal, não podem deixar que a Ucrânia seja invadida de forma revisionista e imperialista pela Rússia porque essa invasão, se for bem sucedida, põe em causa o mundo com base em regras que os EUA querem preservar". Já a China, "viabiliza o crescimento ou a continuação da existência económica e política da Rússia, que estaria isolada se a China não estivesse a interferir, porque tem como principal objetivo, juntamente com Moscovo, enfraquecer a hegemonia americana", declara a especialista, que não antevê qualquer alteração para Kiev após este encontro de governantes ao mais alto nível. 

Jorge Tavares da Silva aponta que, se a relação entre Washington e Pequim melhorar, a Rússia poderá ficar numa situação mais vulnerável no que diz respeito ao conflito ucraniano. "Isto já aconteceu no passado, quando tivemos na década de 70 uma aproximação EUA-China, a União Soviética ficou agastada. Quando duas potências se aproximam, a outra fica a descoberto", aponta. "E, se essa aproximação acontecer, pode sair reforçada a posição americana e europeia e poderá haver cedências". Mas o especialista não deixa de sublinhar que esta tese é especulativa e que há sempre diálogos informais ou secretos, pelo que não será possível saber o nível de compromisso a que chegaram americanos e chineses.

"Sabemos que há aspetos em que nenhum vai ceder", garante Tavares da Silva, seja no domínio tecnológico seja na questão de Taiwan: "Em termos de diálogo com a China, Taiwan é inegociável, para eles é um princípio e não abdicam da questão da soberania e de recuperar a ilha para os seus domínios. Mas os EUA já usaram Taiwan para se aproximar, como um brinde", garante. "Se tiverem objetivos económicos mais alargados, podem comprometer-se a não hostilizar, a não enviarem armas ou fazerem visitas oficiais" explica. 

Tavares da Silva diz mesmo que existe uma "politização de Taiwan", em que os EUA não abdicam da resolução pacífica e os chineses não prescindem da reunificação, pela força se necessário. "Mas se forem ditas coisas que os chineses gostarem de ouvir, ficam mais recetivos a outras questões. Às vezes, hostiliza-se de um lado para ter ganhos noutro", sugere ainda.

"Nenhum dos lados está disponível para abdicar dos seus próprios interesses, sendo que o interesse da China é a reunificação com Taiwan, pela força se necessário, e o dos Estados Unidos a manutenção do status quo, que tudo continue como está, porque Taiwan é uma democracia", corrobora Diana Soller. "Há indícios da parte desta administração americana de que, se a China tentar integrar Taiwan pela força, haverá efetivamente uma intervenção dos EUA", acrescenta. Na batalha por capítulos para uma nova ordem mundial, Taiwan é e será sempre um "assunto sensível" e de "maior perigosidade", aponta a especialista. E não se trata só de soberania territorial: Taiwan é líder mundial na exportação de semicondutores, microcomponentes essenciais para smartphones, computadores ou automóveis, cuja produção abrandou com a pandemia, expondo a dependência das grandes potências industriais da produção de Taipei. Os EUA começaram a investir e têm procurado aumentar a sua quota na produção global, com a administração Biden a impor novas restrições às exportações para restringir o acesso da China a semicondutores avançados feitos com equipamentos norte-americanos.

Antony Blinken reúne-se com Xi Jinping em Pequim (Foto: EPA/XINHUA/Wang Ye)

A guerra tecnológica e económica

"Os encontros são sempre positivos para apaziguar hostilidades", comenta o economista João Rodrigues dos Santos, mas sobre a reunião entre Blinken e Xi Jinping assume que foi "mais de forma do que de conteúdo". "Estamos a assistir a uma espécie de Guerra Fria entre um conjunto de países, liderado por um grupo tripartido - China, Índia e Rússia - contra o Ocidente", aponta, também ele favorável à tese do mundo dividido em polos que se hostilizam. O economista vê mesmo uma "guerra tecnológica" entre a China, que precisa de chips e de semicondutores - produzidos por Taiwan - e os EUA, que têm assumido preponderância na produção, mas ainda assim atrás da economia de Taipei. Pequim, por seu lado, produz componentes fundamentais para a transição energética, diz o economista: "Cerca de 90% dos componentes para a produção solar fotovoltaica, fundamental para atingirmos a neutralidade carbónica, vêm da China".

Em resposta às restrições norte-americanas das exportações de semicondutores para a China, Pequim já prometeu retaliar restringindo acesso ao ocidente destes componentes para produção de energia. "Quem estiver à frente, do ponto de vista tecnológico, vai marcar as regras. Os semicondutores são fundamentais para a Inteligência Artificial, por exemplo", esclarece Rodrigues dos Santos, que aponta que a China é, declaradamente, um parceiro da Rússia, que por sua vez promete não facilitar a vida aos países ocidentais. 

"A Rússia é hoje o principal exportador de petróleo para a China e também para a Índia, ultrapassou a Arábia Saudita e esta relação não se vai desconstruir", aponta o economista, até porque as sanções e as tentativas da Europa para se libertar da dependência russa levaram Moscovo a vender os seus produtos petrolíferos a preço de saldo, impulsionando as economias dos seus países parceiros - como a China, naturalmente.

Por causa da guerra da Ucrânia, diz João Rodrigues dos Santos, "vamos ter com certeza, à escala da Europa, um novo Plano Marshall que vai impactar negativamente ainda mais na vida de todos nós, mais do que a subida das taxas de juro diretoras, vamos ser nós a financiar tudo isto. E a China faz parte da equação no lado que está contra nós, contra o Ocidente. Pequim tem interesses económicos mas está a beneficiar muito desta relação com a Rússia, Putin tem sido muito estratega deste ponto de vista e esta relação não se vai desconstruir nem desvanecer. Os EUA estão mais fragilizados e a sua hegemonia é colocada cada vez mais em causa", defende o economista.

Para Rodrigues dos Santos, a China está cada vez mais empoderada, até porque vende na região asiática os recursos energéticos que consegue da Rússia a baixo custo e todos os aliados da China "estão a beneficiar da conjuntura atual". Contra o ocidente, aponta o economista, correm também alguns líderes mundiais que insistem em posições de "neutralidade" perante Estados Unidos e China, como é o caso do francês Emmanuel Macron, que Rodrigues dos Santos acusa de dar um "sinal contraproducente face aos objetivos de progresso civilizacional por que a humanidade deve pugnar, já que fragiliza claramente o ocidente, que não pactua com conflitos bélicos".

Apesar das sanções aplicadas à Rússia, a economia de Moscovo continua a resistir e, de acordo com as previsões do Fundo Monetário Internacional, deverá crescer este ano 0,7%, em vez dos 0,4% previstos no início do ano. "Enquanto o mundo carecer de petróleo e gás, a Rússia continuará a ter o poder que estes recursos lhe conferem", reflete Rodrigues dos Santos. "Os recursos fósseis acabam por encontrar o caminho até onde são necessários, mesmo que deem a volta ao mundo. Sabemos que parte dos refinados de petróleo consumidos na Europa vêm da Índia e são refinados a partir de petróleo em bruto que vem da Rússia", lamenta. E, enquanto Moscovo continuar a sua aliança ilimitada com a China, prosseguindo no objetivo de "afirmação de uma nova ordem mundial", resultará destes encontros, como o de Xi e Blinken, "pouca substância para contrariar a situação que vivemos", diz Rodrigues dos Santos, que prevê mesmo uma agudização das dificuldades económicas "a curto ou médio prazo".

Relacionados

E.U.A.

Mais E.U.A.

Patrocinados