Porque a crise dos balões chineses pode ser um momento decisivo na nova Guerra Fria

CNN , Análise de Stephen Collinson
7 fev 2023, 09:00
Balão espião chinês (AP)

A saga do balão chinês ameaça ser um momento de viragem na perigosa nova rivalidade das superpotências: pela primeira vez, os norte-americanos testemunharam um símbolo evidente do desafio que Pequim coloca à segurança nacional.

O aparelho, descrito pelos serviços secretos dos EUA como um balão de vigilância, representou uma ameaça de segurança relativamente modesta e de baixa tecnologia em comparação com a espionagem multicamadas, a rivalidade económica, cibernética, militar e geopolítica que aumenta todos os dias.

Mas enquanto percorria os céus americanos antes de ser abatido, no sábado, ao largo das Carolinas [Carolina do Norte e Carolina do Sul], o balão criou um momento súbito em que a ideia de uma ameaça da China à pátria dos EUA não era nem distante, nem teórica, nem invisível, nem no futuro. E mostrou como na América polarizada de hoje, a primeira reação de Washington perante uma ameaça é apontar o dedo em vez de unificar.

Não foi a primeira vez que balões chineses cruzaram o espaço aéreo dos EUA durante esta administração ou a anterior - autoridades militares disseram à CNN que esta não era vista como uma ameaça particularmente grave de inteligência ou de segurança nacional. Mas a forma como andou descontraidamente a passear desde o Montana até à Costa Leste provocou um frenesim mediático e um tumulto em Washington.

No que foi simultaneamente um momento de alto risco geopolítico e grande comédia, a Casa Branca lutou para explicar porque não tinha rebentado imediatamente o balão, uma vez que as autoridades da Carolina do Sul avisaram as pessoas para não dispararem contra o intruso chinês com as suas espingardas.

Tudo isto deixou o presidente Joe Biden numa posição profundamente vulnerável à medida dos seus críticos republicanos. O balão não podia ser simplesmente ignorado - especialmente porque o secretário de Estado Antony Blinken estava prestes a embarcar numa viagem a Pequim que foi rapidamente cancelada quando a tempestade política irrompeu.

"Não devíamos ter deixado a República Popular da China fazer troça do nosso espaço aéreo", disse o líder republicano do Senado, Mitch McConnell, numa declaração no domingo.

Enquanto Pequim expressou pesar incomum pela incursão do que alegou ser um aparelho de monitorização meteorológica, os seus críticos veem o incidente como o mais recente exemplo de uma vontade descarada de flexibilizar o poder fora da sua região, de espezinhar regras estabelecidas entre nações e mais uma prova de uma tentativa agressiva de expandir a sua influência e operações de inteligência em todo o mundo, que têm visado empresas, universidades e sino-americanos, bem como alvos tradicionais.

"Os EUA deixaram claro que esta é uma intromissão inaceitável na soberania americana", observou o secretário dos Transportes Pete Buttigieg, domingo, na CNN. Enquanto a China tem dezenas de satélites espiões apontados para os EUA - tal como Washington faz com o seu rival - a audácia visível do voo de balão desencadeou fúria em Washington. Isto, por sua vez, ameaça desencadear forças políticas, militares e diplomáticas em ambas as nações que, embora manejáveis a curto prazo, mostram como será difícil impedir que esta rivalidade crescente atinja um ponto de ebulição e cause uma guerra numa das ameaças definidoras do século XXI.

Até o balão ter atravessado o espaço aéreo dos EUA, havia uma pequena janela entre o presidente chinês Xi Jinping, que garantiu um terceiro mandato, e as próximas eleições presidenciais dos EUA, quando uma política mais fria em Washington e Pequim poderia ter facilitado um abrandamento das tensões diplomáticas. Essa oportunidade pode agora ter sido desperdiçada.

Perguntas imediatas para Biden

O rescaldo da crise coloca perguntas difíceis a Biden e é uma distração indesejável do discurso do "Estado da União" desta terça-feira [madrugada de quarta-feira em Portugal], que será o lançamento de uma campanha de reeleição em tudo menos no nome.

Os republicanos rapidamente classificaram Biden como inútil, facilmente intimidado pela China e lento a defender o território dos EUA. Embora tais críticas sejam fáceis para aqueles que não têm responsabilidades, o tumulto político criará um ambiente traiçoeiro para futuras políticas dos EUA destinadas a evitar um confronto com a China.

As Forças Armadas dos Estados Unidos devem explicar porque é que o balão não foi abatido antes de atravessar o continente, e o incidente ameaça abrir tensões entre o Pentágono e uma Casa Branca sob fogo acerca do incidente, bem como o debate sobre o que fazer da próxima vez.

O fim desonroso do balão - rebentado por um míssil disparado por um caça americano - também afeta a volátil política chinesa. Representa um novo embaraço para Xi, cuja consolidação de um terceiro mandato foi ensombrada por um esforço mal feito para combater a pandemia de covid-19, por protestos antibconfinamento sem precedentes e agora com uma grande crise com os Estados Unidos. Isto levanta a questão de saber se o voo foi um ato deliberado para provocar os EUA ou se foi um erro. Ou será que as forças armadas chinesas queriam embaraçar a liderança de topo, ou atrapalhar as tentativas de acalmar os ânimos com os EUA antes da visita de Blinken?

O episódio é um lembrete de que embora o Partido Comunista Chinês seja implacável e repressivo, a política de alto risco é tão traiçoeira em Pequim como em Washington. E, tal como nos Estados Unidos, a política de grande tensão nas relações EUA-China pode levar a decisões que causem uma escalada.

Retaliação americana

A decisão de Biden em não abater o balão até que o mesmo estivesse sobre a costa atlântica facilitou a tarefa aos republicanos determinados em rotular como fraco o presidente antes da sua esperada recandidatura.

"Como é habitual quando se trata de defesa nacional e política externa, a administração Biden reagiu inicialmente de forma demasiado indecisa e depois demasiado tarde", disse McConnell.

O senador da Florida, Marco Rubio, classificou o incidente como um desafio gritante ao poder americano, e sugeriu que a ação moderada de Biden levantou questões sobre se ele enfrentaria ameaças chinesas piores, por exemplo, sobre a democrática Taiwan.

"A mensagem para o mundo é: 'podemos sobrevoar o espaço aéreo dos Estados Unidos da América com um balão e não poderão fazer nada para nos impedir'", criticou Rubio, vice-presidente da Comissão de Inteligência do Senado, na CNN.

Outros republicanos, incluindo o ex-presidente Donald Trump, atacaram o governo quando o balão não foi imediatamente abatido, apesar dos avisos de que o seu tamanho poderia causar danos ou mortes no terreno. O senador do Arkansas, Tom Cotton, afirmou, por exemplo, na Fox, que "o que começou como um balão espião tornou-se num balão de ensaio, para testar a força e determinação do presidente Biden e, infelizmente, o presidente falhou nesse teste". Os republicanos ignoraram o facto de as autoridades militares terem afirmado que vários voos de balão sobre os EUA ocorreram durante a administração Trump, embora os mesmos só tenham sido descobertos depois de Biden ter assumido a presidência, como revelou um alto funcionário da administração à CNN.

Os republicanos há muito que veem as falcatruas como arma política. Mas muitos democratas também veem a China como uma ameaça crescente, o que é susceptível de desencadear políticas de linha dura que irão aprofundar o distanciamento da América com o seu rival.

Embora a administração Biden tenha enfrentado críticas por nada ter dito do balão no início da semana, a ideia de que o presidente está na mão da China é desmentida por uma política em relação ao gigante comunista que intensificou uma postura de confronto adoptada por Trump. (O ex-presidente inicialmente aproximou-se de Xi concordando que o acordo comercial tinha falhado antes de se virar contra Pequim quando uma pandemia originada na China ameaçou a sua recandidatura).

Biden aprofundou os laços dos EUA com aliados asiáticos destinados a combater a China - assegurando um acesso alargado a bases nas Filipinas, por exemplo, e chegando a acordo com o Japão sobre a capacidade ofensiva dos fuzileiros navais dos EUA nas últimas semanas. Procurou também reforçar o acesso ocidental e o fabrico de semicondutores num golpe contra a China. Se algum autocrata estrangeiro vê Biden como alguém facilmente persuasivo, tudo o que tem de fazer é olhar para a guerra multimilionária que ele está a travar contra a Rússia na Ucrânia, na maior mobilização da aliança ocidental desde a queda da União Soviética.

Ainda assim, as consequências políticas provavelmente vão causar dificuldades a Biden, mesmo que seja difícil imaginar que os eleitores façam da sua gestão da China - na ausência de uma futura grande crise - o fator decisivo em 2024. O rebentamento do balão é o último acontecimento inesperado, incluindo a polémica de terem sido encontrados documentos confidenciais de quando era vice-presidente na sua casa em Delaware e num antigo gabinete, para frustrar a tentativa de Biden de se concentrar no forte crescimento do emprego e no extremismo da nova maioria republicana da Câmara antes da sua esperada candidatura a um segundo mandato.

A Câmara vai tentar estragar ainda mais os planos de Biden com uma possível resolução a condenar a gestão que fez do balão de vigilância, que pode ser aprovada antes do discurso do Estado da União, apurou a CNN.

Como a fúria política irá afetar a diplomacia

A tempestade política poderá criar condições nos EUA que complicarão os esforços para evitar uma perigosa queda nas relações sino-americanas - o objetivo original da missão de Blinken.

Se Biden intensificar ainda mais a reação dos EUA ao incidente, depois de abater o balão, poderá criar uma resposta furiosa de Pequim que tornará as tensões ainda piores.

Houve sinais no período que antecedeu a visita de Blinken, de que o governo de Xi, assolado por problemas domésticos, queria atenuar a tensão do relacionamento, como aconteceu quando se encontrou com Biden em Bali no ano passado. Houve mesmo especulações de que a viagem poderia levar ao anúncio de uma cimeira entre os líderes este ano.

Mas se o incidente do balão virar ainda mais a opinião pública dos EUA contra a China, o presidente terá ainda menos liberdade para a diplomacia destinada a abrandar o ritmo do confronto.

Outra complicação é uma possível visita a Taiwan do presidente da Câmara Kevin McCarthy, após a da antecessora democrata Nancy Pelosi no ano passado, que teve lugar apesar do desconforto da Casa Branca. A China reagiu furiosamente a essa viagem iniciando exercícios navais maciços perto da ilha. E já advertiu que tal visita violaria o princípio fundamental de "Uma China" que rege as relações entre Washington e Pequim - uma posição que os EUA não aceitam. Face ao tumulto político em Washington, McCarthy, que acaba de criar uma comissão bipartidária para investigar o que diz ser a ameaça da China comunista, tem ainda maiores incentivos para viajar agora para Taipé, apesar das tensões atuais. "Penso que a China não me pode dizer para ir, em que altura ou em que lugar", sublinhou McCarthy depois de se ter encontrado com Biden na semana passada.

Outro risco é que a crise dos balões possa exacerbar situações já tensas em que as forças norte-americanas e chinesas entrem em contacto próximo, inclusive no Mar do Sul da China e em torno de Taiwan. Uma falha de comunicação entre os capitães dos navios, por exemplo, pode desencadear uma escalada muito mais ampla. É por isso que os especialistas que aconselham à recuperação da calma ficaram consternados com um memorando escrito pelo general da Força Aérea dos EUA, Michael Minihan, que advertiu que o seu "instinto" lhe diz que a América precisa de estar pronta para a guerra com a China dentro de dois anos. O memorando não corresponde às avaliações dos EUA sobre as capacidades de Pequim ou avaliações sobre os seus objetivos em Taiwan. Mas aprofundou a sensação de que um conflito está a surgir e pode ser inevitável.

Crises passadas e uma China que é hoje diferente

Existem muitos precedentes de momentos desastrosos nas relações EUA-China que foram neutralizados, provas do extremo custo económico e humano que ambos os lados, e o resto do mundo, pagariam no caso de um conflito mais vasto.

Durante a guerra do Kosovo em 1999, por exemplo, bombas americanas atingiram a embaixada chinesa em Belgrado no que a NATO disse ter sido um acidente, mas que causou uma explosão de fúria na China. Em 2001, logo após a tomada de posse do presidente George W. Bush, um avião de vigilância dos EUA e um caça chinês colidiram sobre o Mar do Sul da China. O piloto chinês morreu e foi necessário um esforço intenso de diplomacia para libertar a tripulação americana, que efetuou uma aterragem de emergência numa ilha chinesa, ao fim de 11 dias retida.

Estes incidentes, contudo, aconteceram numa época diferente, quando a política dos EUA foi concebida para introduzir a China na economia mundial como concorrente mas não como adversária. Esse processo falhou depois de a China ter tomado um rumo nacionalista sob a liderança de Xi e à medida que o seu poder e ambições cresciam a um ritmo surpreendente.

Duas décadas depois, os objetivos de Pequim são cada vez mais vistos em Washington como incompatíveis com as esperanças dos EUA de promover a democracia, um sistema internacional baseado em regras e o seu próprio poder no Pacífico. Mas quando os EUA falam em colocar grades de proteção na sua relação com a China e proteger o Estado de direito apoiado pelo Ocidente, Pequim acredita que a América quer frustrar o seu próprio destino de grande potência. Como disse o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês Mao Ning a 31 de janeiro: "Somos contra a definição de todas as relações China-EUA apenas como concorrência e a utilização da competição como desculpa para conter e reprimir os outros".

É por isso que muitos observadores em ambos os países veem agora os EUA e a China em percursos inevitavelmente conflituosos - uma possibilidade carregada de desgraça que só parece mais provável depois do voo aparentemente inócuo de um balão através dos EUA.

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