O fim da hegemonia norte-americana. Rússia, China e Islão à espreita. "Vamos ter uma espécie de guerra fria"

18 jun 2023, 22:00
Globo (Photo by Robert Alexander/Getty Images)

ENTREVISTA | José Filipe Pinto. A hegemonia norte-americana está em declínio e “não vai conhecer um travão”. Neste momento, a Ordem Euroasiática, liderada pela Rússia, e a da Rota da Seda, encabeçada pela China, juntaram-se para pôr fim ao mundo unipolar, mas as sementes do caos podem já estar semeadas entre elas. Tudo isto enquanto o Islão espreita em busca de um líder capaz de chefiar uma nova ordem. O mundo em profunda mudança

A invasão russa da Ucrânia foi “o ano zero” de um novo mundo, com várias ordens, cada uma delas com diferentes princípios e valores próprios. Vladimir Putin decidiu pôr em curso a expansão da ordem Euroasiática, com a conivência da ordem da Rota da Seda, liderada pela China. O propósito é claro: acabar com o mundo unipolar, liderado pelos Estados Unidos da América. José Filipe Pinto, professor catedrático e investigador-coordenador da Universidade Lusófona, lançou o livro "O Fim da Hegemonia Americana: Um Mundo de Múltiplas Ordens", onde analisa os verdadeiros objetivos dos principais atores da política mundial, perante um declínio acelerado da maior potência. 

Numa entrevista à CNN Portugal, o especialista em Diplomacia e Relações Internacionais, explica quais os interesses e os princípios destes novos blocos, o papel dos países neutrais e desvenda também que existe no Islão a possibilidade da criação de uma nova ordem, capaz de competir com as três já existentes.  

O que é o mundo de múltiplas ordens?

É um mundo diferente do mundo multipolar. Para haver uma ordem mundial tem de haver uma partilha e aceitação de princípios, de valores. E o mundo de múltiplas ordens é um mundo onde não há essa partilha de princípios e de valores. 

Dito de uma forma mais simples, as Organização das Nações Unidas, com os seus quase 200 países, assentam em dois princípios: o mundo único e a terra casa comum da humanidade. O que questiono neste livro é se esses princípios, que são princípios elaborados por mãos ocidentais e por cabeças ocidentais para um mundo que já não era ocidental, ainda mantêm atualidade. 

Esses princípios não são tão universais quanto se julgou?

Chego à conclusão, através das minhas leituras, de como os outros veem esses princípios - e quando digo os outros, são por exemplo os chineses, mas também os russos e os islâmicos - de que não há, neste momento, nem valores universais nem universalizantes. E, por isso, entendo que o mundo de múltiplas ordens é um mundo em que cada um dos centros de poder, acaba por definir os seus próprios interesses, os seus próprios princípios e os seus próprios valores. Atualmente identifico claramente três ordens.

E o que é que isso quer dizer?

Quer dizer que a visão ocidental de liberdade não é partilhada, por exemplo, por parte das outras ordens. Mesmo quando falam de liberdade, têm uma interpretação e uma conceção diferente do conceito. Na nossa ordem Liberal, a chamada ordem Ocidental, existem três gerações de direitos. Os direitos de primeira geração, que consistem, essencialmente nos direitos que se prendem com a liberdade e que são fundamentais em toda a ordem Liberal, em países como a China ou a Rússia, esses direitos não são a base da pirâmide. Para eles, importantes são os direitos de segunda geração e no que diz respeito ao elemento económico. Estes países sacrificam a liberdade em nome da melhoria das condições de vida da sua população, por exemplo. Isto é uma visão nova.

Porquê? 

Porque mostra claramente que não se reveem na Carta da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Logo quando foi elaborada, houve países que se abstiveram. E hoje há países que, mesmo quando a subscrevem, não a aplicam. 

Mostra o manpa mundi centrado na China na capa do seu livro. Essa escolha é "uma provocação" a uma "visão eurocêntrica" ? 

Ortega y Gasset [filósofo espanhol 1833-1955] disse que o homem é sempre um produto das suas circunstâncias e nós somos um produto da ordem Liberal. E, apesar de fazer investigação um pouco por todo o mundo, o que me acontece é que vejo o mundo ainda muito pelos olhos que a minha cultura me colocou. É uma visão monopolista centrada no Ocidente. As outras civilizações, as outras donas do mundo, as outras ordens não têm essa ideia. 

Habituamo-nos desde crianças a ver os mapas na escola e esses mapas mostram-nos que, no centro, temos a Europa, porque foi o continente que trouxe ao conhecimento da humanidade todos os outros continentes. Mas esquecemo-nos de que há muitos séculos o imperador chinês também mandou um jesuíta italiano desenhar o mapa, mas mandou desenhar o mapa pondo, evidentemente, a China no centro. Este mapa é uma provocação, sim.

Mapa chinês de 1852, centrado na região do indo-pacífico (Photo by: HUM Images/Universal Images Group via Getty Images)

Existe um choque de perspetivas?

E essa é a grande questão. É o mapa que eu encontrei em Xangai. Grosso modo, é o mapa que observei e pelo qual as crianças chinesas têm a sua mundividência, não centrada na Europa, mas no Indo-Pacífico. Para eles, a China é o centro do mundo. Esta questão faz toda a diferença porque, nas outras áreas do mundo, não têm uma visão eurocêntrica. 

Qual é a visão chinesa?

Comecei a escrever este livro devido a uma dissertação de mestrado que orientei sob a política externa da Rússia face à Ucrânia. Orientei-a já há bastantes anos e percebi nitidamente qual era a visão que a Rússia tinha da Ucrânia. Depois li, fui à China, a Xangai, e, num contacto com académicos, apercebi-me de qual é que era a visão que eles tinham do mundo ocidental e a visão que eles tinham da sua ordem. Lá existe o conceito do "mundo harmonioso", um mundo pós-hegemónico. Fiquei sem dúvidas de que a China estava a utilizar o seu soft power, transformando-o em sharp power, para iniciar um movimento expansionista. Por isso mesmo há aqui um movimento imenso da China que vai muito além do aspeto comercial. Repare que o investimento da China na nova Rota da Seda é superior àquele que foi o investimento do plano Marshall na reconstrução da Europa, e, por outro lado, a China entrou no Djibouti com um pretexto comercial e hoje já lá tem uma base militar. A China é uma das ordens e está num momento de clara expansão.

No título do seu livro fala do fim da hegemonia norte-americana. O que é que dá início a este momento expansionista das ordens que pretendem desafiar o mundo unipolar?

Antes de escrever este livro, estava à espera de um ponto de viragem que me dissesse para começar a escrever. Esse momento aconteceu em julho de 2021, quando Vladimir Putin escreve um artigo com o título "On the Historical Unity of Russians and Ukrainians" e que, quando me chegou às mãos, deixou-me perfeitamente elucidado sobre o facto de a invasão russa da Ucrânia estar para breve. Este foi o ponto de viragem, o ano zero do mundo de múltiplas ordens. O mundo de múltiplas ordens já estava a fermentar, precisava de um empurrão e esse acontecimento foi claramente a invasão russa da Ucrânia. Nesse documento de junho de 2021, estava perfeitamente claro de que essa invasão seria natural, no conceito do Eurasianismo, para garantir à Rússia a sua segurança e simultaneamente defender os russos que viviam numa parte da Ucrânia. 

Qual é a perspetiva da ordem eurasiática?

Putin entende que a Rússia está destinada a liderar a ordem eurasiática. Desde o século XIX quem lê a obra de Dostoiévski [escritor russo 1821-1881] e nota nitidamente o que é a base do eurasianismo. O eurasianismo é uma doutrina que explica claramente que a Rússia não é a Europa e, mais do que isso, que quando a Rússia tenta integrar-se na Europa não são bem recebidos pelos europeus, que não os compreendiam. Dostoievski diz que o nosso futuro não passa pela Europa, que a Europa tem outros valores e não percebe e aceita a Rússia. Esse é o eurasianismo da primeira geração. Atualmente, a teoria que colhe junto de Putin é a de Alexander Dugin. Segundo essa teoria, a Ucrânia é o guardião da periferia do Rusky Mir (mundo russo). Para Dugin é fundamental recuperar todos os territórios que antigamente tinham estado na União Soviética e em que 50% da população era russa ou russófona. Para ele, estes países pertenciam ao mundo russo.

O eurasianismo é a doutrina que marca uma saída da Rússia do mundo ocidental e uma viragem para aquele que se chama o seu mundo, aquele que se chama muitas vezes o seu quintal. Isto engloba as zonas envolventes, como por exemplo a Bielorrússia que tem uma relação de dependência em relação à Rússia. Neste momento, o "mundo russo" contempla essencialmente uma parte grande da Ucrânia, mas também uma parte que hoje pertence à Estónia, a Crimea também e todas as repúblicas que da Ásia Central, como o Cazaquistão, Quirguistão, Turcomenistão e o Tajiquistão.

Presidente da Rússia, Vladimir Putin (Ramil Sitdikov, Sputnik, Kremlin Pool Photo via AP)

Mas não há um choque de interesses com a ordem da Rota da Seda nessa região?

Aí é o grande problema. Então como é que este mundo vai evoluir? Num primeiro momento, em nome daquilo que os chineses dizem que é um mundo pós-hegemónico, vamos ter uma espécie de uma guerra fria. Entre quem? Entre os Estados Unidos, como líderes da ordem Liberal, e a China e a Rússia do outro lado, que contestam essa ordem. Neste momento, há unidade entre eles, por isso, aparece a parceria estabelecida entre a Rússia e a China, com os chineses a não condenarem a Rússia pela invasão da Ucrânia. Neste momento, estão unidos para conseguir quebrar a hegemonia da ordem Liberal.

Num segundo momento, é evidente que vamos ter então o mundo de múltiplas ordens de que falo porque quando entrarmos na Ásia Central vamos ter um choque entre a China que tem imensos investimentos na região e a Rússia que vê a área como parte da Eurásia. Vai começar a haver um choque de interesses numa zona estratégica para uma e para outra. 

Também abre a porta para o aparecimento de uma nova ordem: a ordem islâmica. Porque é que acredita que essa é uma possibilidade?

Quando estudei o populismo transnacional, na perspetiva do Islão, o que acontece é que a comunidade Umma não conhece fronteiras. Para eles as fronteiras são apontamentos administrativos traçados pelo homem e não por Alá. Por isso mesmo, apercebi-me de que há um populismo transnacional, que neste momento tem como sede a Turquia e que se está a espalhar a países vizinhos, através de séries e de novelas. Esta ordem também não se revê nos princípios da ordem Liberal, basta percebermos a posição da mulher nessa ordem. Basta pensarmos também no grupo terrorista islâmico Boko Haram, cujo nome significa tão simplesmente a educação ocidental é pecado.

Esta ordem, mais tarde ou mais cedo, vai também reivindicar o seu espaço próprio e vai ter também uma política expansionista que será ainda mais fácil porque é uma expansão ditada não por interesses económicos, não por interesses políticos, mas por interesses religiosos. 

Qual tem sido a maior dificuldade desta ordem para se estabelecer?  

Encontrar quem vai liderar porque temos os sunitas por um lado, que são maioria, e que têm como líder a Arábia Saudita, e temos os xiitas, por outro lado, que são liderados pelo Irão, que são a minoria. Há uma oposição histórica de séculos entre os sunitas e os xiitas. No bloco islâmico, temos três hipóteses de liderança: a Arábia Saudita, o Irão e a Turquia.

Com a recente vitória de Erdogan, dificilmente a Turquia se virará para o Ocidente e deve continuar mais preocupada com o Médio Oriente e as suas zonas de influência na Eurásia. Existem também problemas para resolver no Curdistão, mas é preciso encontrar uma fronteira entre os interesses turcos e os interesses russos e os interesses chineses. Se isso acontecer, a Turquia pode liderar a ordem islâmica. Apesar de tudo, neste momento, vejo a Arábia Saudita e o Irão com maior capacidade de liderança do que a Turquia, que ainda assim foi o berço do Império Otomano.

E qual é o papel da União Europeia no meio de toda a esta mudança?

A União Europeia tem uma fronteira de segurança que é NATO, onde estão também os Estados Unidos. O que acontece é que os Estados Unidos estão mais empenhados em concentrar os seus esforços em tudo que é a zona do Pacífico. Porquê? As costas dos Estados Unidos são banhadas por dois oceanos, o Atlântico e o Pacífico. E há nos Estados Unidos uma posição atlantista, mas também há quem olhe para o Pacífico como o seu destino manifesto. Daí o apoio que têm dado a Taiwan, daí a sua relação privilegiada com toda a região do Indo-Pacífico daí a questão de terem reanimado uma parceria que tinham que era o Quad com mais três países da zona do Indo-Pacífico.

Os Estados Unidos estão a servir-se da União Europeia para tentar controlar o avanço da ordem euroasiática, enquanto, no lado do Pacífico, estão a tentar evitar o avanço da ordem da Rota da Seda.  

Mas a União Europeia continua alinhada com a ordem Liberal ou forma a sua própria ordem? 

Dentro de pouco tempo vai alinhar com os Estados Unidos e com a ordem liberal no que diz respeito ao comércio. Ou seja, os mercados vão-se interligar ainda mais, mas podem não alinhar completamente no que toca aos direitos de 3.ª geração, que se prendem com as questões ecológicas. A Europa continua a pertencer à ordem Liberal, mas que vai ter um maior distanciamento em relação aos Estados Unidos até porque os Estados Unidos provavelmente vão também investir mais no Indo-Pacífico. A União Europeia não tem condições para liderar a sua própria ordem e deve tentar manter um relacionamento com as restantes ordens. 

Nós europeus, somos herdeiros da Europa sangrenta que provocou mais de dez milhões de mortos numa guerra e 50 milhões noutra. A União Europeia tem de permanecer unida como um bloco para conseguir relacionar-se com as outras áreas do mundo, mas sem uma perspetiva hegemónica. Foi a Europa que deu novos mundos ao mundo, mas esta Europa que deu novos mundos ao mundo, deu leis ao mundo, mas esse mundo começa a questioná-las. Se os Estados Unidos se virarem para o Indo-pacífico, a União europeia vai ter de assumir a sua maioridade, não apenas no eixo normativo, mas também é preciso assumir a sua maioridade em termos económicos e em termos de defesa.

Mas há um gigante que se recusa a tomar partido. Como é que olha para a Índia no meio de tudo isto?

Essa é uma questão fundamental. Há várias posições no seio da sociedade indiana. Em breve, será o país mais populoso do mundo e há, na elite indiana, quem acredita que o país deve reclamar para si a sua posição de grande potência na arena internacional. Por outro lado, há quem acredite que o país deve desenvolver uma relação com todas as outras ordens, particularmente a ordem liberal liderada pelos Estados Unidos, com a ordem da Rota da Seda e com a Euroasiática.

Em 2001, tanto a China como a Índia aderiram à Organização Mundial do Comércio. E o que é que aconteceu? A China mergulhou profundamente na globalização e assumiu-se como grande potência, com o desenvolvimento económico a abrir portas ao desenvolvimento militar. Milhões de chineses abandonaram a pobreza extrema. Ao ver isto, a elite indiana procura encontrar o seu espaço no mundo.

Presidente norte-americano, Joe Biden, encontra-se com o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi (AP Photo/Evan Vucci)

E o Brasil ou a África do Sul?

Esses países vão apostar muito na tentativa de reconfiguração do Conselho de Segurança das Nações Unidas, no sentido de o integrarem como membros permanentes e vão tentar ser, pelo menos, potências regionais e estabelecer relações comerciais com várias ordens.

Isto remete-nos tudo ao fim da hegemonia norte-americana. Esse declínio é inevitável?

O declínio é inevitável, já começou e não pode ser parado. É um declínio que está em curso e que não vai conhecer um travão. Desaparece a hegemonia americana, mas não a ordem liberal, são coisas diferentes. O declínio norte-americano terá reflexos também em nós, mas vai também dar-nos uma margem de manobra mais ampla. Vamos tomar mais conta de nós e perceber que não são os outros que nos têm de resolver os problemas. 

Esta recomposição da ordem mundial poderá levar a um choque de civilizações?

Não lhe chamaria um choque de civilizações. É possível que as civilizações vão ter de aprender a conviver umas com as outras. Esse era o princípio do mundo único e da terra casa com a humanidade. A situação agora é completamente diferente. Não vamos ter um choque de civilizações porque é evidente que hoje nenhuma ordem se consegue fechar sobre si mesma, mas qualquer uma destas ordens vai também ela tomar medidas protecionistas. As grandes potências terão pontos de conflito nas suas periferias, mas também existirá momentos de cooperação e de acordo entre ordens.

É um mundo de muitos mundos, mas o mundo fica melhor ou fica pior?

Mais do que melhor ou pior, fica mais inseguro. Entendo que será um mundo mais previsível, mas em que o imprevisto está sempre à espera de uma oportunidade, o que pode levar a conflitos em qualquer situação O que me parece é que nunca mais vamos ter uma visão do mundo como um todo. 

A minha esperança era de que a ONU se assumisse como a casa comum da humanidade, mas já percebemos que cada um dos cinco membros permanentes das Nações Unidas, entre os quais a China, a Rússia e os Estados Unidos, tomam decisões de acordo com os seus interesses. Voltamos a um personagem do livro A República de Platão, Trasímaco, que é um sofista que diz que a justiça nada mais é do que a conveniência do mais forte. O que aqui temos é que a justiça vai ser a conveniência do mais forte. Por isso, não vejo um futuro muito risonho no que diz respeito à ordem mundial e às grandes decisões, no que diz respeito à humanidade.

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