Caso das gémeas: a falta de memória, as contradições e as recordações de Lacerda Sales

6 jun, 15:58

António Lacerda Sales, um dos rostos do combate à pandemia, foi alvo de buscas e constituído arguido por abuso de poder no caso das gémeas luso-brasileiras. O ex-secretário de Estado Adjunto e da Saúde começou por dizer que não tinha memória e negar qualquer envolvimento mesmo perante os relatórios da IGAS e o testemunho algo contraditório de Carla Silva, sua secretária pessoal

Passados mais de sete meses desde a denúncia do caso das gémeas luso-brasileiras, feita pelo Exclusivo da TVI, do mesmo grupo da CNN Portugal, o antigo secretário de Estado Adjunto e da Saúde, António Lacerda Sales, foi constituído arguido. Ao longo destes 216 dias, o discurso de Sales variou entre falta de memória, contradições e desmentidos.

O deputado socialista repetidamente defendeu duas premissas: que não tinha marcado as consultas das menores no Hospital de Santa Maria e que não tinha memória de se ter reunido com Nuno Rebelo de Sousa, filho do Presidente da República. Dois dias após o caso ter vindo a público, Lacerda Sales, em declarações à Lusa a 5 de novembro, lembrou que "nenhum secretário de Estado, nem ninguém, tem poder para marcar consultas, nem para influenciar ou violar quer a consciência quer a autonomia de qualquer médico", frisando ainda que "seria muito mau até que qualquer médico, no seu compromisso ético, se deixasse influenciar por alguém exterior à instituição ou por qualquer entidade exterior à instituição".

Na mesma entrevista à Lusa, Lacerda Sales reiterou que, se fosse notificado, “obviamente” estaria disponível para responder às questões que lhe fossem colocadas em sede própria, referindo-se ao DIAP (Departamento de Investigação e Ação Penal) e à Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS). Contudo, o ainda secretário de Estado lembrou que tinham já passado quatro anos desde os acontecimentos e, como tal, e com uma pandemia pelo meio, tornava-se “muito difícil” relembrar tudo o que se passou, argumento que replicou várias vezes. “Além disso, não tenho acesso a quaisquer documentos e, portanto, não consigo reconstituir na fita do tempo todo este processo e espero tranquilamente por ter acesso a esses documentos” para o poder fazer, salientou.

O caso começou a ser investigado pelo IGAS e pelo MP a 24 de novembro. A partir desse momento, Lacerda Sales começou a abster-se de prestar esclarecimentos públicos. "Corre um inquérito em sede própria. Eu conheço os tempos da justiça, conheço os tempos do MP, os poderes da IGAS. Só responderei aos detalhes do processo em sede própria. Em sede própria é a IGAS e é o DIAP, respeitando aquilo que são os poderes e os tempos da Justiça", afirmou Lacerda Sales à CNN Portugal a 7 de dezembro.

Passados cinco dias, a 12 de dezembro, foi a Ordem dos Médicos a abrir um inquérito com o propósito de apurar a atuação de Lacerda Sales e de outros médicos envolvidos no caso das gémeas, com o bastonário Carlos Cortes a explicar à CNN Portugal que o propósito eram dois: apurar responsabilidades a nível “clínico e de tomada de decisão”. "Pedi, por isso, para que fosse apurado a intervenção dos médicos envolvidos, do diretor clínico, Luís Pinheiro, e também do então secretário de Estado da Saúde António Lacerda Sales, que também é médico", esclarecia na altura.

"Nunca falei com o Presidente"

A resposta do ex-secretário de Estado não demorou. No mesmo dia, Lacerda Sales deu uma entrevista à Rádio Renascença, onde acusou o bastonário de querer fama e palco mediático: “Relativamente ao processo de inquérito promovido pela Ordem dos Médicos, em que o bastonário Dr. Carlos Cortes pretende que seja apurada, entre outros, a minha atuação enquanto secretário de Estado, eu diria que mais me parece uma oportunidade para o dr. Carlos Cortes usufruir dos seus cinco minutos de atenção e fama por parte da comunicação social”, afirmou. António Lacerda Sales reafirmou que não se recordava de se ter encontrado com Nuno Rebelo de Sousa, justificando que continuava “sem acesso à documentação” que lhe permitiria “ir mais além” nas explicações e repetindo que marcar uma consulta no Serviço Nacional de Saúde está para lá do poder que tem um secretário de Estado. Aproveitou ainda o momento para assegurar: “Nunca falei com o senhor Presidente da República sobre este tema e o dr. António Costa não estará, com certeza, a par de tudo isto.”

No dia 13 de dezembro, a CNN Portugal teve acesso a uma auditoria interna do Hospital de Santa Maria, onde era relatado que as consultas das gémeas tinham sido marcadas a pedido do gabinete de António Lacerda Sales. A presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN) confirmou ainda que este documento, onde António Lacerda Sales é referido três vezes, já estava nas mãos do Ministério da Saúde e do IGAS. A reação de Lacerda Sales surgiu, mais uma vez no mesmo dia, garantindo que não marcou qualquer consulta no SNS para as gémeas luso-brasileiras e acrescentando que todas as notícias continuavam a estar no “campo das suspeições e indefinições”.

“Não marquei nenhuma consulta no SNS e, por isso, estou perfeitamente tranquilo relativamente a esta questão. Começaram por dizer que teria sido eu a marcar uma consulta, já perceberam que eu não marquei uma consulta, depois haveria um email e não apareceu nenhum email. Já pedi os documentos várias vezes e não aparece nenhum email. Agora aparece um telefonema, gostaria de ter documentos que confirmassem e comprovassem isso, porque senão continuamos no campo das suspeições e indefinições”, reagiu António Lacerda Sales, em declarações à rádio Antena 1.

A 21 de dezembro, Lacerda Sales explica, em entrevista ao Expresso, que afinal já tinha memória do momento em que ficou a conhecer o caso das gémeas e que foi através do filho do Presidente da República. Lacerda Sales foi informado do caso no dia 7 de novembro de 2019, “numa reunião com Nuno Rebelo de Sousa, a seu pedido”, confirmando uma notícia avançada pela TVI há duas semanas.

“Fez a apresentação de cumprimentos, dado que não o conhecia, e falou-me, factualmente, das duas crianças. (…) Disse-me que conhecia duas crianças luso-brasileiras com AME, com perto de um ano e que seria importante fazerem um medicamento (Zolgensma) até cerca dos dois anos”, explicou o antigo governante, acrescentando: "É importante dizer que me apresentou o caso com muita generosidade e sentido humanista, de tal forma que me sensibilizou.”

Lacerda Sales relatou ainda um segundo encontro com Nuno Rebelo de Sousa, em que o filho de Marcelo se fez acompanhar de empresários de hospitais privados do Brasil, mas António Lacerda Sales sublinhou que se tratou de um assunto "completamente diferente". Apesar destas novas revelações, o ex-secretário de Estado continuou a garantir que não se recordava de ter dado qualquer indicação para um contacto com o Hospital de Santa Maria, mesmo depois da auditoria apontar em sentido contrário.

Ao quarto dia de janeiro, chega a primeira conclusão da IGAS: as gémeas luso-brasileiras tiveram acesso irregular ao tratamento no SNS. O relatório da IGAS foi encaminhado para o Ministério Público com a conclusão que de facto não foram cumpridas as regras de acesso ao SNS.

A 9 de janeiro, foi tornado público que Lacerda Sales iria ser ouvido pela IGAS. Segundo adiantou o próprio à CNN Portugal, o depoimento seria feito por escrito. "Era uma das prerrogativas que tinha e por isso pedi para ser ouvido por escrito", justificou, depois de, uma semana antes, ter visto a imunidade parlamentar ser-lhe levantada. António Lacerda Sales explicou ainda que no dia 28 de dezembro a 14.ª comissão parlamentar da Assembleia da República informou-o de que “tinha recebido um pedido da IGAS” para que ele e a Marta Temido, que era ministra da saúde à data dos fatos sob investigação, fossem ouvidos para prestar esclarecimento no caso das gémeas luso-brasileiras.

A versão de Lacerda Sales

De acordo com a IGAS, no seu depoimento, Lacerda Sales disse que “teve conhecimento do caso das duas crianças gémeas após a reunião realizada no dia 7 de novembro de 2019 a pedido do Dr. Nuno Rebelo de Sousa, invocando o cargo de diretor de departamento da EDP no Brasil e presidente da Câmara de Comércio Brasileira, onde aquele solicitou a colaboração do Secretário de Estado da Saúde para a obtenção de tratamento com o medicamento Zolgensma”.  O ex-governante garantiu ainda que “informou o Dr. Nuno Rebelo de Sousa de que o caso seria tratado como todos os outros, sem qualquer privilégio, porque todos os processos que chegavam formalmente constituídos eram sinalizados para as respetivas instituições”.

A IGAS refere que Sales alegou que “no pedido de documentação que fez ao Ministério da Saúde não obteve quaisquer registos ou documentos que indiquem que ao seu Gabinete tenha chegado qualquer documento de formalização sobre este caso, nem quaisquer registos ou documentos que indiquem que a partir do seu Gabinete tenha sido enviada qualquer documentação ou mesmo feita qualquer diligência formal junto do Hospital de Santa Maria”.

Mas, conclui o relatório, a sua secretária pessoal fez esse mesmo contacto - que acabou por levar a que as gémeas conseguissem a marcação de uma consulta da especialidade que lhes deu acesso ao medicamento e que, foi, segundo a IGAS, marcada sem seguir as regras legais que são impostas a todos os cidadãos.

A versão da secretária 

De acordo com o documento, a secretária pessoal de Lacerda Sales, Carla Silva, admitiu que recebeu dados pessoais e clínicos das crianças por telefone, durante a conversa que teve com o filho do Presidente da República (e a seguir também por correio eletrónico), e que depois entrou em contato com a diretora do departamento de pediatria. Assim, notam os inspetores, no dia 20 de novembro de 2019, a secretária pessoal de António Sales enviou um email àquela diretora a “pedir ajuda para o agendamento de uma consulta e avaliação por neuropediatra”, solicitação que a médica neuropediatra Teresa Moreno que iria tratar as gémeas fez chegar “nesse mesmo dia” ao diretor clínico Luís Pinheiro.

No entanto, o antigo secretário de Estado da Saúde alega que não houve qualquer ordem sua ou diligência formal junto do Hospital de Santa Maria, negando assim as declarações da sua secretária pessoal. O que mereceu uma tomada de posição dos inspetores: “Apesar de o então Secretário de Estado da Saúde negar o seu envolvimento na obtenção de informação sobre as gémeas junto do Dr. Nuno Rebelo de Sousa e posterior encaminhamento para o Centro Hospitalar de Lisboa Norte E.P.E (CHULN) para marcação de consulta, não se descortina como a sua secretária pessoal, atento o seu grau de autonomia, poderia ter tido conhecimento do caso das duas crianças gémeas e da sua informação pessoal, e comunicado com o CHULN., que não fosse através do modo e contactos referidos” pela secretária, pode ler-se no relatório.

Os inspetores acrescentam ainda que questionaram “o então Secretário de Estado da Saúde e o seu chefe do gabinete quanto ao grau de autonomia de uma secretária pessoal para efetuar contactos junto de entidades hospitalares neste âmbito". E "ambos afirmaram que uma secretária não dispõe de tal autonomia, a menos que haja orientação superior, tendo os dois referido que não deram essa orientação”.

Para a IGAS, “desse modo, não se vislumbra como a secretária pessoal do SES poderia ter tido conhecimento do caso das duas crianças gémeas, dos seus dados pessoais e da informação quanto à disponibilidade dos pais para a realização de consulta, informação esta que não constava no ofício da Casa Civil do Presidente da República”.

O antigo secretário de Estado Adjunto e da Saúde deveria ter sido ouvido na comissão de inquérito ao caso das gémeas esta quinta-feira às 14:00, mas, na terça-feira, pediu para adiar a audição, alegando motivos profissionais para não estar presente, confirmou o presidente da comissão. Lacerda Sales deverá agora deslocar-se ao Parlamento no dia 17 de junho, agora com estatuto de arguido.

Esta quinta-feira, a Polícia Judiciária efetuou uma operação de buscas ao Ministério da Saúde e ao Hospital de Santa Maria, ao que a TVI e a CNN Portugal apuraram. António Lacerda Sales foi um dos alvos e, para além da busca domiciliária, o ex-governante foi constituído arguido por abuso de poder, ficando com termo de identidade e residência.

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