mRNA, o mensageiro que combate a covid-19 e que se prepara para travar outras doenças

22 jan 2022, 08:00
A biotecnologia mRNA é uma arma contra a covid-19, mas pode também ser uma aliada no combate a outras doenças

Traduz informação genética em proteína e, com isso, consegue comandar as células do sistema imunitário para um combate concertado contra o agressor. É assim que funciona a biotecnologia mRNA, que não só é uma arma contra a covid-19, como pode também ser uma aliada no combate a outras doenças.

Com a chegada inesperada de uma pandemia, a investigação científica viu-se obrigada a meter o pé no acelerador e até a emancipar hipóteses que apenas despertavam o interesse de alguns, mas que ainda deixavam céticos outros. É o caso do papel do RNA na luta contra vírus e outros intrusos do sistema imunitário.

O RNA (sigla inglesa para ácido ribonucleico) é um ácido nucleico, tal como o ADN (ácido desoxirribonucleico). Trata-se de uma macromolécula de cadeia única e pode apresentar três funções distintas, mas todas elas essenciais para a vida humana: transmitir a mensagem genética, transportar aminoácidos ou produzir ribossomas (estruturas celulares onde se dá a produção de proteínas)

Na luta contra a covid-19 e na procura por uma solução rápida que travasse casos graves da doença, a biotecnologia mRNA (RNA mensageiro, cuja missão é transmitir a mensagem genética e, com isso, produzir proteínas) ganhou destaque e deu vida a duas vacinas, a da Pfizer/BioNTech e a da Moderna. Nestas vacinas, as chamadas de primeira geração e ao contrário do que acontece com as ‘convencionais’, em que é usada uma parte do vírus, usa-se o código genético do antigénio (da proteína), produzido laboratorialmente, que é traduzido em mRNA, podendo este executar ou modificar o que vem inscrito no ADN ao mesmo tempo que coordena a produção de proteínas, que servirão de arma de ataque contra o vírus. E é aqui que está a inovação que poderá fazer a diferença na medicina.

“Estas vacinas têm a particularidade, em termos de tecnologia, de ter um desenho feito por nós, uma tecnologia que é adaptada ao que nós queremos. É uma vacina orientada, quase como a medicina personalizada, em que essa orientação permite ajustar algum propósito para corrigir ou melhorar alguma função”, explica à CNN Portugal Nuno Vale, professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e investigador do CINTESIS -  Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde, que não hesita em dizer que o ano “2022 é muito importante para esta tecnologia mRNA”, que, assegura, “veio para ficar”.

As capacidades de ataque deste mensageiro vão muito além do combate ao SARS-CoV-2. As promessas de eficácia, aliadas a uma produção mais económica e célere, podem colocar o mRNA na linha da frente da luta contra outras doenças, sejam elas causadas por vírus, como o VIH, originadas pela pelo comportamento anormal das células, como o cancro, ou de origem genética. E isto são apenas alguns exemplos. “Chama-se a imunidade sobrehumana”, diz Nuno Vale, perspectivando o poder desta biotecnologia não só na covid-19, mas noutras doenças, embora reconheça que “a eficácia da tecnologia pode variar, depende de nós”.

A pandemia deu palco ao mensageiro até agora silenciado

O estudo do mRNA tem décadas. Anos e anos de investigação, teorias e suspeitas de uma descoberta que pudesse mudar o rumo da medicina. Tal como em 2018 a revista Nature disse numa revisão científica em que aponta o mRNA como a nova era da vacinologia. E ninguém sabia que isso aconteceria em apenas dois anos, à boleia de uma pandemia.

“Em 2018 estávamos no auge de discussão de que o mRNA em vacinas poderia revolucionar [a medicina], porque nesse mesmo ano tinha sido aprovado nos Estados Unidos uma forma de encapsular, de adaptar os métodos de entrega deste tipo de RNA mensageiro, usando pequenas bolhas de gordura, nanopartículas lipídicas com particularidade de incluir e aumentar a estabilidade [do mRNA]”, conta Nuno Vale.

A emergência de uma pandemia e a informação que já existia sobre a capacidade de escolher, em laboratório, o rumo de ação de uma célula (o mRNA já estava a ser estudado para o cancro), levou a que se desenvolvessem de forma segura e eficaz, e em tempo recorde, vacinas mRNA para fazer frente ao impacto do SARS-CoV-2.

“No caso das vacinas de mRNA somos injetados como uma molécula de mRNA que contém instruções genéticas que ensinam as nossas células a produzirem elas próprias a proteína estranha. É esta produção local e temporária nas células que estimula o sistema imunitário a produzir anticorpos e células contra o agente infeccioso. Na eventualidade de ocorrer uma  infeção futura, o corpo responderá assim de forma muito mais rápida e vigorosa”, esclarece, por escrito, Miguel Prazeres, professor catedrático do Instituto Superior Técnico (IST). Na prática, após a inoculação com uma vacina mRNA, é como se o organismo recebesse um manual de instruções de como agir perante um ataque, mais concretamente, de como produzir uma proteína para aniquilar o vírus.

Uma vez que se trata de uma tecnologia adaptável, estão já em desenvolvimento e em estudo vacinas de segunda geração, que prometem um maior período de imunidade após a inoculação contra o novo coronavírus - um dos atuais calcanhares de Aquiles desta biotecnologia e que leva à necessidade de uma dose de reforço após o primeiro esquema vacina com duas doses. Mas não só. A forma como a própria vacina é administrada poderá mudar: espera-se que seja por via nasal ou oral, o que tornará o processo mais simples, eficaz e prático.

No entanto, há dois aspetos que pesam na balança dos contras desta biotecnologia promissora, considera Miguel Prazeres. Um deles é o desconhecimento de “eventuais efeitos a longo prazo”, uma vez que está em uso clínico há pouco tempo. “Outra desvantagem prende-se com o facto das vacinas de mRNA se degradarem facilmente se não forem refrigeradas a baixas temperaturas, o que complica muito a sua conservação, armazenamento e distribuição”, explica.

Cancro, a primeira ‘vítima’ do RNA mensageiro

Esta é a área de atuação do professor e investigador Nuno Vale e um dos primeiros campos de ação e estudo do mRNA. Esta biotecnologia já estava a ser aplicada em alguns tipos de cancro e o conhecimento existente permitiu não só impulsionar as vacinas contra a covid-19, como também abrir horizontes para outras doenças, como vamos ler mais à frente. 

O cancro dá-se quando as células perdem a capacidade de autocontrolar o seu próprio crescimento, proliferam-se de forma anormal e ganham ‘imortalidade’, perdendo a capacidade inata de nascer, crescer e morrer. Uma vez que o mRNA tem a capacidade de traçar novos rumos, é também por isso uma aposta no ataque a alguns tipos de cancro, e, mais uma vez, através de vacinas. No entanto, ao contrário das vacinas contra a covid-19, que, até agora, são preventivas, as vacinas contra o cancro são já curativas, mas não para todos os tipos de cancro.

“A vacina é mesmo no sentido literal”, explicou à CNN Portugal o investigador José Carlos Machado, a propósito dos avanços e inovações na luta contra o cancro. “[Com esta vacina] é inocular um doente com uma determinada proteína, um mRNA ou ADN, que estimula o sistema imunológico” e permite combater as células oncológicas.

Embora explique que “estão atualmente em curso ensaios clínicos de vacinas de mRNA” contra outros agentes infecciosos e cancros diversos, Miguel Prazeres diz que “importa referir que sendo o cancro uma doença complexa e muito de difícil de tratar, as expectativas de obter resultados espetaculares com a tecnologia mRNA como no caso da covid-19 são relativamente moderadas/baixas”. Já Nuno Vale vê muito potencial para esperar bons resultados. “Na área do cancro, há um sem número de estratégias que podem ser seguidas”, diz. Para o investigador do CINTESIS, “sem dúvida que o cancro” é uma área terapêutica “em que esta tecnologia terá um maior número de estudos e avanço superior” e dá um exemplo: “podemos desenvolver uma vacina específica para uma célula tumoral e isto tem uma grande vantagem e dá uma grande esperança”.

No final de 2021, um estudo levado a cabo pela Mayo Clinic e publicado na revista Cancer Immunology Research, da Associação Americana para a Investigação do Cancro, revelou que os tratamentos à base de mRNA mostraram-se eficazes em pacientes oncológicos que já não estavam a responder a outras terapêuticas. Neste estudo, a aposta esteve na criação de uma estratégia de mRNA que ajudasse os glóbulos brancos (mais concretamente as células T) a responder a inibidores de checkpoint imunitário.

Atualmente, existem vários estudos e ensaios clínicos sobre o poder que o RNA mensageiro pode ter em determinados tipos de tumores oncológicos, como o cancro da mama e o melanoma (cancro de pele que começa nas células de pigmento da pele, os melanócitos). Um recente estudo publicado na revista Molecular Cancer analisou o lado promissor desta abordagem no cancro do pulmão de não-pequenas células (o mais comum e que representa entre 80 a 90% dos casos) e cancro do pulmão de pequenas células. Por seu turno, a vacina já se mostrou uma boa aliada, até quando combinada com outras terapêuticas, em casos de cancro gastrointestinal, como revelou este estudo de 2020.

“Ao desenhar de uma forma tão peculiar estas vacinas, usando uma parte de mRNA, podemos definir se queremos atacar um fator de crescimento do tumor, se queremos entregar um antigénio que vai dizer ao organismo uma resposta. Estamos a contornar a doença através da tecnologia”, diz Nuno Vale, que vai agora orientar uma tese de doutoramento cujo objetivo é estudar “potenciais variações de vacina mRNA para tratamento oncológico”.

mRNA a passar mensagens de esperança contra outros vírus

“O que foi feito em tempo recorde para a covid-19, com um histórico relativamente recente em [estudos e ensaios para o] cancro, está a impulsionar estas vacinas para outras doenças”, diz, entusiasmado, Nuno Vale, que vê na biotecnologia mRNA uma luz ao fundo do túnel para algumas patologias, mais não seja por oferecer um novo e diferente tratamento. 

Por não usarem organismos vivos, estas vacinas que fazem o mRNA protagonista são de produção rápida e apresentam uma flexibilidade de evolução e adaptação que pode fazer toda a diferença no combate de vírus, sobretudo perante mutações. 

A nível de vírus respiratórios, a Moderna, que tem neste momento mais de 30 pré-ensaios e ensaios clínicos com mRNA para vários tipos de patologias (víricas ou não), está a desenvolver, por exemplo, uma vacina contra o vírus sincicial respiratório (VSR), encontrando-se já na fase II de III dos ensaios clínicos. Já para o vírus Influenza, que causa a gripe, a Pfizer tem em fase I de ensaios clínicos uma vacina profilática com mRNA. 

O uso da tecnologia mRNA na procura de uma solução mais eficaz para o VIH está também já em estudo e esta é uma das principais expectativas associadas à biotecnologia. De acordo com uma recente investigação do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos EUA, a vacina com mRNA, além de segura, provocou as desejadas respostas imunitárias celulares e de anticorpos contra um vírus semelhante ao que provoca a sida. Também a Gilead e a Gritstone (empresas de biofarmacologia e biotecnologia, respetivamente) estão a desenvolver uma vacina terapêutica específica para o VIH. Para tal, vão recorrer a uma vacina com mRNA auto-amplificador (SAM) já produzida e ainda a vetores adenovirais, com antígenos desenvolvidos pela Gilead.

“O VIH é outra área que suscita interesse desta tecnologia”, afirma Nuno Vale, explicando que “mesmo que exista um avanço e os resultados sejam similares à farmacologia do VIH, que são muito prolongados e dispendiosos, a vacina pode acelerar o tratamento e reduzir os efeitos secundários”.

Para o Vírus Epstein–Barr (que causa a mononucleose infecciosa e tem na sua origem o herpes-vírus humano tipo 4), a Moderna tem já em fase I de ensaios clínicos uma vacina e em fase de pré-ensaio uma vacina terapêutica. Ainda por parte da Moderna, em fase III de III dos ensaios clínicos, está a vacina para citomegalovírus, um vírus da família Herpesviridae, também conhecido por Herpesvirus 5. 

Ainda no que diz respeito ao herpes, a Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, começou a estudar o papel do mRNA na prevenção e silenciação do vírus do herpes há mais de dez anos. Após ensaios em ratos de laboratório, os investigadores defendem que uma vacina com mRNA poderá ajudar a prevenir doenças sexualmente transmissíveis, incluindo o herpes genital (HSV-2). 

Graças às promessas que o rMNA traz na capacidade de organismo atuar contra ameaças, estão também a ser desenvolvidas vacinas e tratamentos recorrendo a esta biotecnologia para fazer frente ao vírus Zika, estando a Moderna a levar a cabo um ensaio clínico com 800 participantes, que se encontra em fase II de III. “Há pormenores nesta tecnologia que faz com que possa ser aplicada em herpes, doenças infecciosas, doenças tropicais”, afirma Nuno Vale, que adianta que “há interesse no avanço da produção de uma vacina para a malária”.

Escudo-protetor contra doenças genéticas, autoimunes e cardíacas

Num ensaio realizado em ratos de laboratório, publicado na revista Nature Reviews Immunology, os cientistas detetaram uma eficácia promissora da tecnologia mRNA na esclerose múltipla, podendo este ser um primeiro passo para novas investigações e para outros estudos para outras doenças autoimunes.

À boleia da eficácia da vacina criada para combater a covid-19, a Moderna aliou-se à Vertex Pharmaceuticals no desenvolvimento de uma vacina com tecnologia mRNA para a fibrose quística (doença genética, hereditária e que afeta sobretudo os pulmões). Nesta parceria, a biotecnológica norte-americana pretende identificar e desenvolver nanopartículas lipídicas e mRNA para novas terapias de edição de genes para tratar a doença, que ainda não tem cura. “Na fibrose quística existe a perda de uma proteína nas células dos pulmões e a Moderna está a desenvolver um potencial tratamento para que o código do RNA mensageiro seja introduzido no organismo. A vacina é por inalação e irá corrigir essa proteína perdida nos pulmões. Isto leva a um avanço muito importante”, esclarece Nuno Vale.

Segundo Miguel Prazeres, “encontram-se em desenvolvimento fármacos baseados em mRNA destinados a tratar determinadas doenças hereditárias”, como é também o caso da distrofia muscular. “Estas doenças caracterizam-se pela existência de mutações genéticas que impedem as células de produzir uma determinada proteína. Isto origina os sintomas característicos da doença, que em muitos casos são extremamente debilitantes. O mRNA no fármaco é desenhado de modo a transportar a informação genética correta e instruir as células do paciente a produzir a proteína em falta, reduzindo assim a sintomatologia”, explica o docente do Instituto Superior Técnico. 

A reparação de tecidos do coração é também uma possibilidade com o mRNA, como mostrou este estudo da Universidade da Pensilvânia e a Moderna tem ainda outra parceria, desta vez com a farmacêutica AstraZeneca. Ambas estão a trabalhar numa terapia de mRNA para tratar doenças cardíacas através da reprogramação de células para que produzam uma proteína chamada fator de crescimento endotelial vascular, que impulsiona o crescimento dos vasos sanguíneos. “Os resultados são promissores, até pode ser introduzida a vacina em cirurgia”, diz Nuno Vale, que destaca a capacidade de “acelerar a cicatrização” que esta tecnologia pode oferecer.

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