Porta-voz da diplomacia russa lamentou que "as relações luso-russas vivam a crise mais profunda de toda a sua história". Isto numa altura em que Moscovo tem procurado reforçar a sua influência nas ex-colónias portuguesas em África e em que o chefe do Estado Maior da Armada deixou claro que os portugueses vão "morrer onde tivermos de morrer para defender a Europa"
"Não é só com Portugal", mas também é com Portugal. A Rússia está a intensificar uma narrativa contra os países do Ocidente e Lisboa parece não passar despercebida. A porta-voz do ministério russo dos Negócios Estrangeiros acusou Portugal de ser "hostil" para Moscovo, abrindo uma nova ferida diplomática entre os dois países.
O Kremlin "está a passar-nos um recado e a constatar um facto: as relações entre Portugal e Federação Russa estão no seu pior momento”, argumenta o major-general Agostinho Costa, concordando assim com as declarações de Maria Zakharova.
“Mas não é só com Portugal”, ressalva o especialista em estratégia militar, lembrando que a Federação Russa viu as suas relações externas deteriorarem-se em “praticamente toda a Europa Ocidental, à exceção da Eslováquia, da Hungria e da Áustria”, na sequência da invasão à Ucrânia.
Já para o comandante João Fonseca Ribeiro, oficial da Marinha com mais de 25 anos de serviço, o argumento do Kremlin “é pouco consistente” e “não tem sentido”. “As nossas relações com a Rússia já foram muito piores durante o período da Guerra Fria”, observa.
As declarações de Maria Zakharova não devem ser por isso interpretadas como “uma ameaça” dirigida a Portugal, argumenta o major-general Agostinho Costa, lembrando que, “em boa verdade, nós não estamos em guerra com ninguém”. “Estamos a assistir a um quadro de alteração geopolítica e geoestratégica global onde Portugal tem feito as suas opções”, diz, acrescentando, por isso, que as afirmações da porta-voz do Kremlin devem ser antes interpretadas como “um recado” de que o Estado português não deve “procurar inimigos”.
“O que Portugal deve preservar acima de tudo é não ter inimigos”, defende Agostinho Costa, advertindo para a vulnerabilidade nacional a ataques a navios, tendo em conta a dimensão da costa portuguesa, banhada pelo Atlântico.
Daí que o major-general defenda a necessidade de uma “estratégia de segurança nacional”, materializada num “documento matricial tanto para a nossa política externa como para a nossa política de segurança e de relações externas”. “Isso faz-nos falta”, diz, argumentando que “talvez não estejamos a analisar os fatores de rutura nas placas tectónicas que se estão a movimentar” no quadro geopolítico e geoestratégico.
Acordo entre a Rússia e São Tomé e visita da Guiné Bissau: "mais um tiro no porta-aviões"
Um exemplo dessas “ruturas” é o recente reforço de cooperação firmado entre a Rússia e São Tomé e Príncipe, mas também a viagem do presidente da Guiné-Bissau a Moscovo, onde Umaro Sissoco Embaló recebeu um convite semelhante e, de seguida, partiu para a Chechénia onde, segundo o major-general, visitou “o centro de formação de forças especiais que a Federação Russa tem na Chechénia e para onde canaliza os militares voluntários para a preparação de unidades que depois vão para o teatro de operações na Ucrânia”. “Cá está mais outro tiro no porta-aviões”, constata Agostinho Costa.
Um outro exemplo disso mesmo, segundo Agostinho Costa, são as recentes declarações do chefe do Estado-Maior da Armada, que, em entrevista à TSF e ao Diário de Notícias, indicou que as missões de acompanhamento de navios russos em águas portuguesas quadruplicou e que delas têm surgido ocorrências “que podem ser um escalar”. Na mesma entrevista, o almirante Gouveia e Melo abordou as ameaças que a Europa enfrenta agora, deixando uma garantia: “Podem ter certeza absoluta de que se a Europa for atacada e a NATO nos exigir, vamos morrer onde tivermos de morrer para defender a Europa, que é a nossa casa comum. Afinal, estamos a defender o nosso modo de vida, a democracia, os nossos sistemas, a nossa economia.”
Ora, para o major-general Agostinho Costa, são estas declarações que nos podem criar os tais “inimigos” que devemos evitar, uma vez que, diz, o chefe do Estado-Maior da Armada “está a interpretar mal” o artigo 5.º da NATO, que expressa que os países signatários concordam que um ataque armado contra um ou vários desses países será considerado um ataque a todos.
“O senhor almirante tem de ler o artigo 5.º da NATO. Ele não pode dizer que se a Europa for atacada e a NATO nos exigir, vamos morrer onde tivermos de morrer para defender a Europa”, diz, argumentando que “a NATO nos exige nada”, uma vez que “o artigo 5º não nos impõe entrar em guerra se a Rússia atacar um país da NATO”.
“Impõe-nos sim uma cláusula de solidariedade para entrarmos em consultas com o país e apoiarmos esse país no limite das nossas possibilidades e com base nos nossos interesses”, contrapõe.
Por isso, continua, “talvez alguém deva explicar ao senhor almirante que as forças armadas servem para defender o interesse nacional, não é o interesse da NATO nem o interesse da Europa, é o interesse de Portugal”, reforça, salientando a diferença entre a defesa e a segurança: enquanto a defesa se conduz “na fronteira do nosso país”, a segurança faz-se “na fronteira externa”. “E para a segurança mandam-se os profissionais, aqueles que optaram pela profissão militar; para a defesa vamos todos - homens, mulheres, novos e velhos, pegamos em armas e vamos combater.”
Oficialmente, o artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte determina que, caso se verifique um “ataque armado” contra um aliado, “cada uma” das partes, “no exercício do direito de legítima defesa, individual ou colectiva, reconhecido pelo artigo 51.° da Carta das Nações Unidas, prestará assistência à parte ou partes assim atacadas, praticando sem demora, individualmente e de acordo com as restantes partes, a ação que considerar necessária, inclusive o emprego da força armada, para restaurar e garantir a segurança na região do Atlântico Norte”.
Na perspetiva do comandante José Fonseca Ribeiro, Portugal “deve contribuir para a defesa do espaço coletivo da NATO e da UE”, daí que entenda que “caso o artigo 5.º da NATO venha a ser ativado, obviamente Portugal deve participar”, nos termos determinados pelo respetivo artigo.