Papa não queria ofender quando falou em "bichas" na Igreja, acreditam gays católicos de Portugal. Fica a "mágoa" perante o "retrocesso"

28 mai, 22:16
Papa Francisco no Centro Paroquial da Serafina, 4 de agosto de 2023 (Lusa)

As mensagens do Papa Francisco sobre a comunidade homossexual podem parecer contraditórias. É a prova de que existem pressões em sentidos diferentes dentro da própria Igreja. Aqueles que são homossexuais e católicos desculpam o “momento infeliz”. Daqui em diante, é com ações que o líder da Igreja Católica tem de provar o caminho que quer traçar

“Frociaggine”, bichas. A palavra usada pelo Papa Francisco caiu como um raio na opinião pública. O líder da Igreja Católica, entretanto, pediu desculpas e garantiu que não queria ofender. Contudo, entre aqueles que são católicos e homossexuais, este episódio deixa “mágoa”.

Os católicos assumidamente homossexuais ouvidos pela CNN Portugal consideram que o Papa Francisco não teve intenção de ofender - uma posição partilhada por um especialista em Ciência das Religiões. Todos concordam que o que aconteceu evidencia as pressões sentidas dentro do Vaticano sobre esta matéria.

“É dar uma no cravo, outra na ferradura”, resume Aníbal Neves, porta-voz do movimento CaDiv-Caminhar na Diversidade. As declarações de Francisco, classifica, foram sentidas como um “retrocesso”. Mas encontra uma explicação: “O Papa dá um bombom à cúria romana para se calar. E depois segue com a sua agenda.”

No mesmo sentido segue José Brissos-Lino, especialista em Ciência das Religiões, ao explicar que “o Papa é um vértice de uma pirâmide, a Igreja Católica, com forças muito contraditórias entre si”. Os outros vértices são aqueles que “concordam com a abertura que ele tem vindo a dar” e aqueles que se opõem a esse caminho.

Brissos-Lino aponta o “lóbi gay no Vaticano” como uma das “pressões” que o Papa Francisco tem de gerir e insiste que o líder da Igreja Católica tem tido “uma linha de coerência” na sua mensagem em relação à comunidade homossexual.

Um erro na escolha da palavra, dada as origens argentinas do Papa, é visto como uma possível justificação para o que se passou. “Acredito que tenha havido qualquer problema. Não estou a ver o Papa, quando tem tido várias intervenções públicas de uma certa abertura para os homossexuais, agora a querer insultá-los.”

(Lusa)

"Momentos infelizes todos temos"

“Não tinha a intenção de ofender. Sou fã do Papa, não acredito que tivesse intenção de magoar ou de segregar”, insiste Aníbal Neves.

Ainda assim, fica uma “mágoa”. É também essa a palavra escolhida por Ana Carvalho, que tem estado ligada a vários movimentos de homossexuais católicos, como por exemplo o Centro Arco-Íris na Jornada Mundial da Juventude em Lisboa no verão passado, acolhendo os peregrinos com uma orientação sexual ou identidade de género nem sempre compreendida pela religião que professam.

“Momentos infelizes todos temos”, insiste Ana Carvalho, lembrando que as declarações do Papa Francisco “parecem um pouco desenquadradas ou descontextualizadas”. Estas tiveram lugar num encontro à porta fechada com 200 bispos. Alguns deles confirmaram à imprensa italiana o choque no momento em que o Papa usou a expressão “frociaggine”.

Ana Carvalho insiste que o caminho de aceitação dos homossexuais na Igreja é feito de “avanços e recuos”. “Não é um avanço ou um recuo que é vinculativo do sentido”, resume. A partir de agora, diz, serão as “ações concretas” a ditar o que o Papa Francisco pensa realmente sobre este assunto.

Até porque têm sido “imensas” as declarações do Papa Francisco que revelam a “abertura a esta comunidade” e ao seu “acolhimento” na Igreja.

Os "avanços e recuos" de Francisco

Se têm sido muitas as vezes em que o Papa Francisco tem mostrado esta “abertura”. “Quem sou eu para julgar os homossexuais?”, questionou em julho do ano passado. No mês seguinte, em Lisboa, na Jornada Mundial da Juventude, insistia que a Igreja é para “todos, todos, todos”. Já na viragem do ano, viria a defender a bênção a casais do mesmo sexo.

Contudo, muitas foram também as declarações em sentido contrário. Em 2015, disse que o casamento entre pessoas do mesmo sexo era uma “ameaça à família”. Em vários momentos comparou as teorias sobre o género como “ideologia” ou “perigo feio”.

Em 2018, o Papa Francisco recebeu um homem chileno que tinha sido vítima de abusos sexuais na Igreja. Esse homem, Juan Carlos Cruz, contou ao líder da Igreja Católica que era gay. “Não importa. Deus fez-te como és. Deus ama-te como és.” Contudo, nesse mesmo ano, num encontro com bispos, havia de mostrar a oposição à entrada de homossexuais nos seminários, tal como aconteceu na semana passada. “Na dúvida, é melhor não deixá-los entrar”, disse na altura.

Mais recentemente, em 2023, apesar de criticar as leis que criminalizam a homossexualidade, considerou que ser-se gay é “pecado”. No final do ano, havia de afirmar que as pessoas transgénero podiam ser batizadas e apadrinhar, desde que não “haja risco de gerar escândalo público ou desorientação entre os fiéis”.

(AP Photo)

O impacto psicológico de uma declaração

São declarações do Papa Francisco que vão alimentando a tal “mágoa” e que podem dificultar o processo de descoberta da identidade de género. Exemplo concreto: se um jovem católico, na dúvida sobre a sua homossexualidade, ouvir este tipo de afirmações, poderá acabar por reprimir a sua verdadeira sexualidade.

João Ricardo Costa, psicólogo clínico com experiência de trabalho com a comunidade homossexual, compara a declaração do Papa Francisco às “mensagens contraditórias” que alguns homossexuais recebem das suas famílias, dizendo que aceitam a sua orientação sexual, mas não as demonstrações públicas.

Embora cada reação e eventual processo terapêutico seja pessoal, o psicólogo aponta para a necessidade de pesar estas duas dimensões da personalidade que podem ser contrastantes: a religião e a sexualidade.

O caminho passa por “clarificar aquilo que é contraditório”, sem desvalorizar. “Não temos de estar a tentar moldar-nos à visão do correto. Temos de tomar consciência se vale a pena continuar nessa batalha de encaixar no que o outro seja correto”, diz. 

Mesmo que o outro seja o Papa.

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