Obesidade, dietas e saúde mental, está tudo ligado. E o sabor doce tem um papel de destaque

4 fev 2023, 08:00
Bolos (imagem Getty)

Descoberta foi de uma investigação nacional da Fundação Champalimaud: pessoas com excesso de peso têm uma hipersensibilização do modo como percecionam o sabor doce

Mata, potencia outras doenças graves e está em clara expansão. A obesidade foi categorizada como a "doença do século XXI" pela revista Nature em 2002, mas, 20 anos depois, pouco mudou.

Em termos simplistas, a obesidade é uma doença provocada por um défice de calorias gastas face às calorias ingeridas durante um longo período, provocando um aumento gradual da gordura corporal. O relatório Health at a Glance da OCDE mostra que 56% da população adulta portuguesa tem excesso de peso.

Mas não podemos parar simplesmente de comer em excesso? Há outros fatores que levam as pessoas com obesidade a comer de mais?

O excesso de peso na população adulta europeia (Tabela retirada do Health at a Glance: Europe 2022 da OCDE)

"Prazer pela comida tenho sempre", confessa Albino Pinto de 49 anos, presidente da Associação Portuguesa de Obesos e Bariátricos (APOB), lembrando que chegou a pesar 125 quilos.

"Sempre fui de doces, sou obeso desde novo, aos 19 anos já pesava 100 quilos” e apesar do excesso de peso “estava sempre a comer”. Albino Pinto acredita que a patologia está diretamente ligada à saúde mental e não tem dúvidas que, no seu caso, o aumento da camada adiposa começou depois de um trauma: entre os seis e os 15 anos foi abusado sexualmente.

Certo é, que o açúcar e os doces parecem ser um dos principais inimigos de quem quer perder ou manter um peso saudável. O estudo recente da Fundação Champalimaud, publicado a 20 de dezembro de 2022, ajuda a perceber o papel da sacarose em toda esta equação de calorias, ansias e desejos alimentares. A investigação, com selo totalmente português, encontrou uma correlação entre a obesidade e um sentido aprimorado da sensação de como o sabor doce é percecionado por estes doentes. 

O estudo intitulado “Perceção do sabor do doce aumentado na obesidade: uma análise conjunta de dados gustativos de múltiplos estudos”, concluiu que pessoas com obesidade relatam maior classificações de intensidade do sabor doce do que os pacientes saudáveis.

A descoberta desta perceção exacerbada da intensidade de doce, a par dos comportamentos de índole psicológica e de padrões alimentares relacionados com um sentimento de recompensa, pode vir a representar uma nova dimensão em relação a esta patologia e é uma das partes da tese de doutoramento da nutricionista e professora da Nova Medical School, Gabriela Ribeiro.

Mas o que há de diferente neste sabor? "O sabor doce, classicamente, está associado com a recompensa alimentar. Se pensarmos em alimentos bons, em alimentos que dão prazer, pensamos muito rapidamente em bolos e alimentos doces, essas são as conhecidas 'coisas boas'", explica Gabriela Ribeiro. Perante a hipótese e os resultados da investigação, a nutricionista considera que o doce é "o sabor diferenciador" e que "se associa ao comportamento alimentar", realçando que foi o único sabor que mostrou "diferenças entre pessoas saudáveis e pessoas não saudáveis" durante todo o estudo.

Simplificando, e em termos meramente ilustrativos, pensemos numa banana como um seis, numa escala de doçura de 0 a 10. Esta nova descoberta indica que uma pessoa com obesidade percecionaria esta sensação de doce acima deste valor padrão, fixado pela média das pessoas saudáveis.

Perante isto, no relatório da investigação pode ler-se que "de acordo com nossa hipótese, encontrámos alteração na perceção do sabor doce numa amostra de participantes com obesidade, especificamente, um aumento nas avaliações da intensidade de doce". Os investigadores explicam que "este resultado foi encontrado em cada três das quatro concentrações de sacarose testadas, mostrando diferenças ​​nos estímulos doces consistentes entre os voluntários com obesidade e o grupo saudável", realçando que, no entanto, “não foram encontradas diferenças para os sabores azedo, salgado ou amargo, sugerindo especificidade para o sabor doce".

A liderar a equipa de investigadores esteve o diretor da unidade de neuropsiquiatria da Fundação Champalimaud e professor na Nova Medical School, Albino Maia. Este responsável explica que "o estudo foi feito com 420 pessoas, através de papéis de filtro, onde os estímulos [diferentes sabores] eram dissolvidos e depois eram colocados na boca da pessoa.” A partir daqui o químico dissolvia-se e estimulava as papilas gustativas na língua. O psiquiatra acredita que a descoberta dá "algumas indicações sobre o que é que poderá estar a contribuir para os mecanismos fisiológicos e, principalmente, os mecanismos neurobiológicos que se associem à mudança do comportamento".

No entanto, ainda não é possível identificar se esta hipersensibilidade ao sabor doce é provocada pela obesidade ou se ela própria é pré-existente e, assim sendo, um indicador de que alguém vai sofrer desta doença ou estar mais suscetível a desenvolver a patologia. O neuropsiquiatra da Champalimaud considera que "esta é uma questão muito importante", mas para a qual ainda existe "dificuldade em conseguir responder". Albino Maia esclarece que a atual dúvida é perceber se "as pessoas que sofrem de obesidade comem mais e têm um peso excessivo, porque têm esta maior sensibilidade, ou se será o contrário e que, por terem um determinado conjunto de comportamentos e alterações metabólicas associadas à obesidade, há modificações que levam a que tenham uma sensibilidade maior ao doce".

"A nossa hipótese era que a obesidade se relacionava com um sabor que é claramente associado à recompensa alimentar.  Em média, o que vemos é que as pessoas com um peso mais elevado deram classificações que são também elas mais elevadas em relação à intensidade do doce e isto não se verificou para outros sabores, nem se verificou para uma classificação do quão agradável o estímulo era", explica Albino Maia.

O estudo foi realizado na sua totalidade em Portugal e contou com a participação de 420 pessoas, separadas em 246 pacientes com obesidade e 174 voluntários sem qualquer patologia relacionada com comportamento alimentar, que teve por base um método validado para avaliação da perceção do paladar. 

Hipersensibilidade ao doce e a diminuição de peso após a cirurgia Bariátrica. Poderá ser um preditor?

A hipersensibilidade ao doce é descrita na segunda publicação do estudo, mas já existia um trabalho divulgado anteriormente referente à mesma investigação nacional, publicado em março de 2021, em que os inquiridos eram pacientes que foram submetidos a cirurgias bariátricas, uma operação vulgarmente conhecida como “redução do estômago”.

Aqui, pela primeira vez, mostrou-se que "a perceção da intensidade do doce pré-operatória é um indicador da perda de peso após a cirurgia e que as mudanças pós-cirúrgicas nesta variável ditam a quantidade de perda de peso em cada paciente". De modo sucinto, Gabriela Ribeiro refere que a investigação mostrou "que a perceção da intensidade do sabor doce é um preditor de perda de peso após a cirurgia bariátrica".

O primeiro projeto contou com 212 pessoas, 116 eram pacientes do grupo cirúrgico e 96 pertenciam ao grupo de controlo. A premissa era a mesma: perceber se existia uma sensação do sabor doce exacerbada que parece desvanecer-se à medida que o paciente perde o peso excessivo. O recrutamento de candidatos à cirurgia bariátrica (participantes com obesidade) decorreu consecutivamente em três centros ambulatórios terciários especializados no tratamento cirúrgico da obesidade em Portugal localizados no Hospital do Espírito Santo EPE, em Évora; no Hospital de São Bernardo, em Setúbal e no Centro Hospitalar Universitário de São João, no Porto.

Albino Pinto da APOB foi operado a 15 de maio de 2015, tinha 41 anos e 116 quilos. Passados cinco meses já tinha perdido 33 quilos, chegou aos 76 e hoje está na "casa dos 80". Ao contrário do que apontam as conclusões, garante que lhe apetece cada vez “mais doces" e que se numa semana todos os dias comer "uma guloseima", depois, quando consegue parar, "sente que falta alguma coisa" e "não consegue ficar saciado".

"Voltar a ser obeso? É possível. As pessoas pensam que esta cirurgia é a ferramenta ideal para o resto da vida, mas não é. E contra mim falo. Esta é uma boa ferramenta, mas temos de saber lidar bem com ela e temos de nos adaptar. Há muita gente que, infelizmente, não se adapta e abusa. Não vou dizer que, neste momento já como mais do que aquilo que comia, mas tento-me controlar", admite Albino Pinto.

Certo é que após a intervenção cirúrgica tudo muda, a nível físico e psicológico. Albino conta que tudo ficou diferente, desde a capacidade de movimentos, ao frio que sente constantemente, passando pela quantidade de álcool que passou a aguentar. "Dois shots e um copo de 20 centilitros de sangria, e fiquei super, super alegre", exemplifica. Contudo, a mudança é rápida e o reflexo no espelho sofre alterações a que por vezes a psique não se consegue adaptar em tão curto período e "o apoio médico da parte da psicologia é zero".

O presidente da APOB explica que criou a associação por perceber que "havia muita falha de ajuda" e apela à tutela por "mais apoio, quer na parte da psicologia quer na psiquiatria”.

"O meu corpo reagiu muito bem. Nem fiquei com peles, mas, por vezes, não é o corpo que reage mal. Às vezes, o que reage mal é a nossa mentalidade, a nossa cabeça. Não nos conseguimos ver após a mudança. O apoio que temos após cirurgia bariátrica é muito, muito pouco, infelizmente", relata Aníbal Pinto.

A depressão ou a obesidade? Qual é a verdadeira doença do século?

O psiquiatra da Champalimaud foi também o responsável que coordenou um estudo internacional sobre os efeitos de uma substância presente nos cogumelos alucinógenicos, a psilocibina, no tratamento da depressão resistente. Questionado sobre qual destas patologias representaria maior perigo para a raça humana neste século, Albino Maia diz que as doenças "não se distinguem totalmente".

"Não quero dizer, nem estou a dizer que a obesidade é uma doença mental. Não acho que seja, mas joga-se nos seus determinantes, muito nos mesmos domínios, que são essencialmente o comportamento e a tomada de decisão", ressalva o diretor da unidade de neuropsiquiatria da Fundação Champalimaud. "Há um comportamento, um elemento comum, que é a forma como o sistema nervoso central está a contribuir para tomarmos decisões num sentido ou outro em cada momento: aqui em relação ao comportamento alimentar, se calhar noutros domínios, será em relação às emoções", explica o mesmo responsável.

O estudo da Champalimaud revela também que das variáveis ​​psicométricas testadas as que foram significativamente associadas à probabilidade de alguém vir a sofrer de obesidade foram o aumento da fome hedónica - comportamento alimentar motivado pelas emoções -, o aumento do número de sintomas de comportamento alimentar semelhante a um vício e uma maior restrição alimentar.

Ao olhar para o passado, Albino Pinto da APOB identifica o acontecimento da sua vida a partir do qual foi sempre ganhando peso: foi abusado quando ainda era menor. A ascensão do ponteiro foi rápida depois do crime. "Estava sempre a comer", confessa.

"Muitas vezes a depressão faz com que uma pessoa coma. São as tais duas doenças que andam sempre ligadas. E, por vezes, não percebemos... Sabemos de uma, mas não sabemos da segunda, porque a segunda está sempre escondida”, explica Albino Pinto, sublinhando que mesmo que alguém aponte a depressão como causa de se estar sempre a comer, a resposta é sempre negativa.

Gabriela Ribeiro lembra mesmo que "a fome hedónica é uma variável psicológica que consiste na nossa sensibilidade à recompensa alimentar" e explica que este comportamento, de forma simplista, passa pela vontade de "comer alimentos sem ter fome". Seria o que se chama comer por gula e isso, garante Gabriela, é transversal a "todas as pessoas em algum momento da vida". No entanto, para as pessoas com obesidade "este comportamento pode tornar-se patológico e pode acontecer em níveis que está associado com um comportamento alimentar mal adaptativo".

Dieting, a dieta sempre planeada e nunca começada

Outro traço comportamental comum às pessoas com obesidade é o fenómeno do dieting. "Tenho de começar a fazer dieta" ou "este ano vou ter cuidado e perder peso". São frases comuns a este conceito, cujo objetivo acaba por nunca se concretizar.

A nutricionista da Nova Medical School explica que a restrição cognitiva da ingestão, o termo médico para definir esta atitude, “é a tentativa de fazer dieta, mas que não se reflete necessariamente numa restrição alimentar. É aquilo que chamamos de dieting", lembra Gabriela Ribeiro.

Albino Pinto descreve este conceito na sua própria experiência. O presidente da APOB reconhece que usualmente a tendência mostra que "as pessoas dizem que vão fazer uma dieta e até a conseguem começar, mas depois nunca conseguem levá-la até ao fim".

Albino, que só conseguiu perder peso após a cirurgia bariátrica, lembra que "muitas vezes a pessoa obesa não tem força de vontade, falta o clique" para dar início à mudança e reconhece que passou por isso. Chegou a "fazer mil e uma dietas", mas nunca conseguiu ir até ao fim, lembrando que há um outro cenário comum que são "pessoas que conseguem fazer dieta e chegam a perder 10 ou 20 quilos", mas depois param e passado algum tempo atingiram um peso maior ao “que tinham inicialmente".

Apesar do avanço, são precisos mais estudos

Para já, a descoberta da equipa de Albino Maia e Gabriela Ribeiro não tem uma "utilidade prática em termos de intervenção imediata", como alerta o próprio diretor da unidade de neuropsiquiatria da Champalimaud. Todavia, acredita-se que este estudo poderá ser a base para que um dia venha a ser possível identificar de modo preciso as pessoas que têm maior risco de sofrer de obesidade ou até quanto peso irá um determinado paciente perder após ser submetido à cirurgia bariátrica, tendo por base os seus índices de sensibilidade ao sabor doce. Este avanço clínico permitiria ao paciente e ao médico prevenir em vez de reagir à doença, como acontece atualmente.

Para já, Albino Maia reitera que "toda a conclusão que simplifique um problema complexo como este, é uma conclusão atrevida", explicando que o objetivo do estudo foi compreender melhor de que "forma é que um fenómeno que interessa do ponto de vista científico e fisiológico poderá ser relevante para uma condição clínica, muito relevante do ponto de vista da saúde pública".

Gabriela Ribeiro sublinha, por seu lado, que é importante referir que a "obesidade é uma doença multifatorial, que existem diferentes fenótipos de obesidade e que eles ainda não estão muito bem descritos. Portanto, é sempre muito difícil dizer que há um fator que vai dizer quantos quilos a pessoa vai perder ou quantos quilos a pessoa vai aumentar, porque aquilo que temos vindo a perceber é que dentro de obesidade existem muitas obesidades."

A investigação esclarece, todavia, que são necessários estudos ainda mais aprofundados para definir com maiores certezas este impacto da perceção do doce na obesidade. A título de exemplo, falta ainda precisar questões como se esta sensação aumentada se desenvolve juntamente com a obesidade ou se as pessoas que sofrem de obesidade já apresentavam esta sensibilidade extraordinária ao açúcar antes da doença.

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