É o tudo ou nada na V República em França: Macron pode ser forçado a nomear um PM da extrema-direita. Ou mesmo a demitir-se

28 jun, 22:00
Emmanuel Macron (EPA/Lusa)

Primeira volta das legislativas antecipadas marcada para este domingo. Sondagens apontam para vitória do Reagrupamento Nacional, de Le Pen e Jordan Bardella. No limite, e depois da enorme derrota que sofreu nas europeias, o mais jovem presidente francês enfrenta a real hipótese de ter de engolir a sua maior promessa de campanha

Já dizia João Pinto, defesa histórico do FC Porto – prognósticos só no final do jogo. O truísmo aplica-se também à política, sobretudo em época de eleições, como é agora o caso em França. Após o terramoto das europeias no início deste mês – na prática, um referendo a Emmanuel Macron, em que o presidente chumbou e que levou à ascensão meteórica do Reagrupamento Nacional (RN) de Marine Le Pen e Jordan Bardella –, o país prepara-se para umas legislativas antecipadas em que quase tudo está em jogo. Mas mesmo com tudo em jogo, há algumas garantias antes da ida às urnas, cuja primeira volta acontece já este domingo.

A primeira: Macron dificilmente conseguirá contornar um governo de extrema-direita se o RN ficar em primeiro lugar, como antecipam as sondagens. A segunda: consoante os resultados finais, e contabilizados os votos da segunda volta uma semana depois, França poderá acabar com uma espécie de governo de unidade nacional para travar a extrema-direita e manter o país à tona por algum tempo. Ou uma situação praticamente inédita na V República. Ou até com uma demissão que Macron está apostado em evitar a todo o custo.

“Penso que é muito difícil Emmanuel Macron evitar ter que dar posse a um governo de extrema-direita, são as consequências normais da decisão dele”, considera o embaixador Francisco Seixas da Costa, tendo em conta os inquéritos de opinião. “O presidente francês tinha perfeita consciência, ao fazer a dissolução parlamentar, de que este era um dos cenários possíveis. Obviamente, ele não é obrigado a nomear um primeiro-ministro sem maioria absoluta, mas digamos que seria muito difícil para Macron evitar nomear um primeiro-ministro vindo do RN.”

A três dias da primeira volta eleitoral, as sondagens continuam a prever uma vitória de Jordan Bardella, o jovem de 28 anos escolhido a dedo por Marine Le Pen para renovar a face da extrema-direita em França. De acordo com um inquérito de opinião do Ipsos, divulgado na quinta-feira, o RN parte para as urnas com mais de 35% das intenções de voto, contra 29% para a aliança de esquerda Nova Frente Popular (NFP) e cerca de 20% para o Ensemble!, a aliança centrista de Macron. A questão é quem vencerá a segunda volta eleitoral, marcada para 7 de julho – e com que maioria.

Com a jogada de risco que a todos surpreendeu, Macron e o seu jovem primeiro-ministro, Gabriel Attal, de 34 anos, tinham esperança de unir os franceses contra o fantasma da extrema-direita. Mas as três semanas de campanha eleitoral, referia há poucos dias o diretor do Ipsos, “não iam mudar completamente as grandes tendências” do eleitorado francês. Como resumiu Brice Teinturier ao Le Monde, “o bloco do RN é incrivelmente poderoso.”

Aos 27 anos, Bardella foi escolhido em 2022 para presidir ao RN , na primeira vez nos seus mais de 50 anos que o partido de extrema-direita deixou de ser liderado pela dinastia Le Pen (AP)

Jogadas furadas, cenários possíveis

Contas feitas, e se as sondagens não se tiverem desviado muito das verdadeiras intenções de voto, França enfrenta vários caminhos possíveis no pós-eleições: um modelo de “coabitação” entre um presidente centrista e um primeiro-ministro de extrema-direita; um governo de gestão que ajude Macron a ganhar mais tempo antes das presidenciais de 2027; um governo tecnocrata, como aconteceu em Itália com Mario Draghi há quatro anos; ou um governo de unidade nacional, com uma figura relativamente consensual ao leme, para impedir um executivo Bardella com pés-de-barro.

Para Seixas da Costa, como para a maioria dos analistas, a segunda alternativa é a mais remota. “Não me parece nada que haja uma hipótese de um governo de gestão, muito menos que pudesse ter Gabriel Attal à frente, porque isso seria premiar a coligação que tem as três formações que defendem a política do presidente e que foram chumbadas no referendo a Macron que foram as europeias”, diz o embaixador que, durante vários anos, deu a cara pela diplomacia portuguesa em Paris. 

“Tudo vai depender, naturalmente, dos resultados e de uma série de variáveis. Mas há aqui uma coisa muito importante: Macron e Attal estavam convencidos de que a esquerda nunca iria unir-se e que, portanto, iriam buscar apoios ao setor mais moderado da esquerda, e também estavam convencidos de que iam conseguir deslocar para si uma parte substancial dos republicanos de direita. Ora, falharam as duas coisas.”

Em primeiro lugar, naquela que foi a maior das surpresas a seguir à surpreendente dissolução da Assembleia Nacional por Macron, a esquerda uniu-se mesmo, formando uma coligação “com base num programa mínimo que teve como parte mais surpreendente levar para esse programa personalidades como François Hollande, Lionel Jospin, Dominique Strauss-Kahn e até mesmo Raphaël Glucksmann, que foi quem conseguiu dar ao Partido Socialista alguma expressão moderada”, destaca Seixas da Costa.

Vale a pena dizê-lo agora com todas as palavras: o projeto de Macron significou a destruição da esquerda e da direita. Francisco Seixas da Costa

O resultado? “Macron ficou, de uma certa maneira, esmagado por não conseguir ir buscar nenhum voto à esquerda e pela circunstância de a direita republicana tradicional se ter partido” – com destaque para o facto de Eric Ciotti, líder d'Os Republicanos, ter apelado a uma aliança com o partido de Le Pen e Bardella, no que o presidente classificou de "pacto com o diabo". A sua jogada política de há sete anos também já lhe tinha saído pela culatra. “Vale a pena dizê-lo agora com todas as palavras: o projeto de Macron significou a destruição da esquerda e da direita, foi esse o seu projeto em 2017, ‘ni droit ni gauche’, até houve quem lhe chamasse o projeto ‘drauche’, e foi um projeto que deu cabo do Partido Socialista e que, de certa forma, deu cabo do Les Républicains de Sarkozy. Macron foi pescar aos dois lados, pensando que iria criar um centro poderoso”. E os resultados estão à vista. 

Por tudo isto, é improvável que, unida para equilibrar os radicais do França Insubmissa, de Jean-Luc Mélenchon, a esquerda consiga uma maioria para formar governo, como é igualmente improvável um cenário em que o macronismo, através de Attal, consiga sobrepor-se à vontade do povo. E para travar um governo de extrema-direita, resta apenas uma hipótese – avançada pelo próprio ex-presidente Hollande numa entrevista à BFMTV esta semana, “quase um governo de unidade nacional republicana”, nas palavras de Seixas da Costa, sustentado numa personalidade independente que desse a cara por esse executivo. O problema, adianta o diplomata português, é que “não há nenhum nome óbvio – o próprio Hollande auto-excluiu-se – e esse governo transitório só seria possível se houvesse uma reação muito forte contra a extrema-direita” nas urnas – outra aparente improbabilidade, pelo menos na primeira volta.

François Hollande, presidente de França entre 2012 e 2017, foi uma das várias personalidades de centro-esquerda que se juntaram à coligação Nova Frente Popular para contrariar o radicalismo de Jean-Luc Mélenchon -- mas isso pode não bastar para travar a vitória da extrema-direita (Antoine Antoniol/Getty Images)

A “questão judaica”

Há que olhar para o passado recente para perceber como França chegou onde chegou. “Temos de olhar para os últimos anos e perceber as manifestações na rua contra as reformas de Macron, o movimento dos coletes amarelos, o mal-estar profundo que atravessa França e que está encardado numa rejeição do presidente”, defende o embaixador – notória até entre os três partidos que integram o Ensemble! de Macron e Attal, de onde vêm alguns dos insultos e desilusões que o jovem chefe de Estado carrega às costas.

Além disso, há que ter em conta os fatores desestabilizantes que a esquerda enfrenta – não apenas o facto de Macron estar a diabolizá-la, segundo alguns até mais do que à extrema-direita, mas sobretudo um “ponto novo” que lhe veio roubar peso e influência junto do eleitorado: a “questão judaica” e o fator Gaza. 

A questão judaica deixou de ser uma questão problemática para a direita radical, como sempre foi, e passou a ser uma questão problemática para a esquerda radical.” Francisco Seixas da Costa

“A história contrafactual é sempre chata de desenhar e este cenário de até poder haver uma plausibilidade de um governo de esquerda é um cenário que não tem sentido devido à questão de Gaza”, adianta Seixas da Costa. “Se não tivesse acontecido Gaza, a rejeição profunda que existe face a Mélenchon, ao França Insubmissa e por arrasto à Nova Frente Popular, não existiria. É um fator novo na política francesa – curiosamente, pela primeira vez na história francesa, a questão judaica deixou de ser uma questão problemática para a direita radical, como sempre foi, e passou a ser uma questão problemática para a esquerda radical.”

O fenómeno não é exclusivo de França – como o prova o afastamento de Jeremy Corbyn do Partido Trabalhista britânico em 2020 (que este ano culminou na sua expulsão por ter decidido candidatar-se contra o partido nas legislativas de julho próximo). Em França, Marine Le Pen conseguiu libertar-se desse fardo, que tal como no Reino Unido se transferiu para a esquerda radical, reduzindo as possibilidades políticas da esquerda como um todo.

“A questão judaica é muito importante em França. Fui embaixador em Paris e conheço bem a história, o antissemitismo está na cabeça dos franceses como uma espécie de sombra permanente, e as pessoas, por escandalizadas que estejam com o que se passa em Gaza, estão mais escandalizadas com o ataque do Hamas. Há uma culpabilidade em França que, naturalmente, não é igual à alemã, mas que existe.”

As acusações de antissemitismo a Jean-Luc Mélenchon e ao seu França Insubmissa são uma nódoa que a NFP não consegue tirar (AP)

Coabitação ou demissão?

Prognósticos só no final do jogo – mas não para Macron nem para Bardella. A semanas das eleições, cada um fez uma promessa que poderá ter de engolir quando chegar a hora de contar os votos. De um lado, o presidente a garantir que não se demite, qualquer que seja o resultado – “Houve uma eleição em 2022 que me atribuiu funções durante cinco anos e essa eleição foi clara. Tenho ouvido todo o tipo de rumores nos últimos dias e não me vou demitir, isso não passa de um rumor, é absurdo.”

Do outro lado, o líder da extrema-direita a garantir que não aceitará ser primeiro-ministro sem conquistar uma maioria confortável. “Tudo depende das condições que Bardella tiver para governar sem essa maioria”, diz Seixas da Costa. “Se tivesse no parlamento uma maioria contra ele, significaria uma espécie de vitória pífia, tomaria o poder e chegaria a primeiro-ministro, mas depois nenhuma medida passava, com um parlamento absolutamente contra ele e um presidente contra ele. E portanto o que Bardella está a querer dizer é que não governa para chegar ao poder e depois não ter maneira de o exercer.”

Voltamos às sondagens e à antevisão de uma vitória da extrema-direita sem maioria. “Se Bardella formar um governo sem condições para governar, pode criar um problema de falta de legitimidade e aí pode aparecer esta tentativa que Hollande desenhou”, indica Seixas da Costa. Mas para já o mais provável é o país acabar com uma coabitação entre um presidente de uma formação política e um primeiro-ministro de outra.

Após a IV República (1946-1958), durante a qual França teve 22 governos em 12 anos, o país tem sido avesso a coligações. E desde o fim da II Guerra Mundial, só enfrentou três vezes a chamada coabitação, espécie de casamento político forçado, sempre entre centro-direita e esquerda, o último deles entre o presidente centrista Jacques Chirac e o primeiro-ministro socialista Lionel Jospin (1997-2002). Uma coabitação Macron-Bardella antevê-se bem mais problemática, com impacto quer a nível interno, quer no campo da política externa, em que “Macron tem uma margem muito limitada e vai ter Bardella sempre ao seu lado”, refere Seixas da Costa.

Com tudo o que está em jogo, a extrema-direita e a coligação de esquerda apostaram as fichas todas na promessa de pressionar Macron a sair de cena, em vez da tradicional aposta num discurso mais moderado e do compromisso de trabalhar com o presidente para não deixar França em paralisia política, numa altura em que a economia enfrenta graves dificuldades. Le Pen, que tem pretensões de lhe suceder nas presidenciais de 2027, foi a mais contundente na ameaça: em caso de “crise política”, o presidente “não terá opção a não ser demitir-se”. Será mesmo assim?

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