Se Le Pen caça com Bardella, Macron caça com Attal – a jogada arriscada de um presidente a "caminhar para o fim"

10 jan, 18:00
Emmanuel Macron e Gabriel Attal (AP)

A sucessão de Emmanuel Macron é, cada vez mais, a grande sombra da presidência francesa, quando ainda faltam três anos para o presidente concluir o seu segundo e último mandato, mas apenas cinco meses para as eleições europeias. E é por esse prisma que devemos olhar para a nomeação de Gabriel Attal como novo primeiro-ministro de França, apontam analistas

O mais jovem presidente de França acaba de nomear o mais jovem primeiro-ministro da história do país. Juntos, Emmanuel Macron, 46 anos, e Gabriel Attal, 34, têm menos um ano de vida do que Joe Biden, que aos 81 anos vai tentar a reeleição para a presidência dos Estados Unidos da América numa disputada corrida contra Donald Trump em novembro.

Attal é o quarto primeiro-ministro de França em pouco mais de seis anos, desde que Macron foi eleito para um primeiro mandato no Eliseu. Noutros países europeus, o jogo das cadeiras seria preocupante, mas não é esse o caso no regime semipresidencialista francês – ou não seria, não fosse o facto de a sucessão de Macron estar em debate há bem mais do que um ano, praticamente desde que foi reeleito, em 2022.

“Macron não pode candidatar-se a um terceiro mandato e, apesar de ter acabado de começar o seu segundo, a corrida à sucessão já está a ser abertamente discutida nos corredores do poder em Paris”, escrevia o Politico há um ano, quando o ministro da Economia, Bruno Le Maire, se perfilava como um dos prováveis candidatos ao lugar. “Nas mentes de todos [no governo] está a necessidade de encontrar um candidato credível para se bater contra a extrema-direita de Marine Le Pen, que Macron conseguiu derrotar por duas vezes em segundas voltas presidenciais”, indicava a revista The Economist em setembro, num artigo intitulado “A corrida não-declarada para substituir Emmanuel Macron”. 

No mesmo mês, uma sondagem do instituto Elabe para a BFMTV indicava que 61% dos franceses acreditam que a líder do Reagrupamento Nacional (RN, ex-Frente Nacional) será a próxima presidente de França. Le Pen e o RN também continuam a liderar os inquéritos de opinião para as europeias de junho – segundo sondagens recentes, com uns estrondosos dez pontos percentuais à frente do Renascimento, o partido de Macron.

Attal vs. Bardella: duelo de (jovens) titãs

“O primeiro-ministro de França funciona como um fusível”, indicava ontem na CNN Portugal o embaixador Seixas da Costa – o primeiro a queimar-se quando há crises políticas no horizonte, como agora, em que “Macron está a caminhar para o fim” (pelo menos até 2032, quando terá 54 anos e poderá voltar a candidatar-se à presidência). Neste contexto, indica o diplomata português, “o novo primeiro-ministro pode dar um novo fôlego à minoria parlamentar” do governo – uma missão de peso face ao crescente desgaste do presidente, cujo derradeiro mandato “começou mal” e enfrenta “uma agenda cada vez mais difícil”.

Quando, há um mês, a Assembleia Nacional chumbou um controverso pacote de imigração sem sequer o debater, houve quem já falasse no “fim de um reinado”. A aprovação do pacote legislativo pela Assembleia Nacional uma semana depois, após cedências aos conservadores do partido de Sarkozy, Os Republicanos, não melhorou o prognóstico. Pelo contrário, gerou querelas internas tais que o porta-voz do governo se viu forçado a desmentir publicamente uma “rebelião em curso” contra Macron dentro da coligação liberal. 

Vários media invocaram um “beijo da morte”, na forma da dura reforma da imigração parcialmente inspirada no manifesto da extrema-direita dos Le Pen, e questionaram se o tiro do presidente não iria sair-lhe pela culatra. No rescaldo do voto, a pergunta mais ouvida entre os comentadores foi: até que ponto sacrificar as relações com as fileiras mais à esquerda da coligação para aprovar legislação popular junto de muitos eleitores vai traduzir-se em mais votos nas urnas?

Entra em cena Gabriel Attal, ministro da Educação desde julho, a quem em França já chamam de “bebé Macron” – uma versão (ainda) mais jovem do atual presidente, com uma carreira semelhante (a estreia de ambos foi no Partido Socialista, antes de se instalarem no centro-direita) e trunfos na manga para apelar aos eleitores da sua idade, como o facto de ter sido o primeiro político francês a assumir publicamente a sua homossexualidade.

“Gabriel Attal é o político mais popular de França e Macron joga aqui um rei de copas para ultrapassar a dama de copas que é Marine Le Pen”, indica a analista Helena Ferro Gouveia à CNN Portugal. À BFMTV, um especialista em sondagens do IFOP também faz uma analogia com um jogo de cartas, mas de olhos postos não nas presidenciais de 2027 mas nas eleições que vão marcar este ano, onde a dama de copas é, afinal, um rei de espadas. “[Nomear Attal] era a melhor cartada que o presidente tinha guardada na manga para contrariar a subida de Bardella, especialmente tendo em vista o grande evento político deste ano: as eleições europeias”, diz Jerome Fourquet. 

Eleito para o Parlamento Europeu em 2019, Bardella saiu da sombra da mentora, Marine Le Pen, no final de 2022, quando foi eleito presidente do Reagrupamento Nacional. (Philippe Lopez/AFP via Getty Images)

Para as vencer, num prelúdio da presidência que almeja, Le Pen apostou as fichas em Jordan Bardella, estrela em ascensão na extrema-direita francesa, ainda mais jovem do que o próximo primeiro-ministro do país (tem 28 anos) e que está a liderar a campanha do RN para o Parlamento Europeu.

A nomeação de Attal surge face a crescentes preocupações dos estrategos de Macron, que nas últimas semanas aumentaram a pressão para se encontrar um rival à altura do eurodeputado e presidente da extrema-direita francesa, após assistirem a um vídeo gravado no final de novembro, que mostra Bardella recebido num mercado de rua como uma celebridade, rodeado de fãs a pedirem-lhe selfies. “O presidente disse que precisávamos urgentemente de encontrar alguém para enfrentar Bardella”, assume fonte próxima da presidência à Reuters

Um cálice envenenado?

Resta saber se Attal vai ter um mandato tão fluido como em anteriores cargos políticos. Apesar de sondagens indicarem que é o ministro mais popular do governo Macron, o caminho que ambos têm pela frente não se afigura fácil. “Com as suas principais reformas aprovadas, Macron vai tentar implementar políticas mais sociais e atmosféricas, e provavelmente menos divisivas”, antecipa o analista Mujtaba Rahman à agência Reuters. “[Macron e Attal] vão tentar responder às ansiedades populares quanto à democracia francesa, à criminalidade e aos comportamentos anti-sociais.”

Estas ansiedades surgem ao final de um ano duro em França, marcado por motins nas ruas de várias cidades durante o verão, na sequência da morte de Nahel Merzouk numa operação STOP. De ascendência argelina e marroquina, a morte do jovem de 17 anos às mãos da polícia pôs a descoberto o racismo latente das autoridades francesas e conduziu a semanas de protestos que se alastraram também às vizinhas Bélgica e Suíça. 

Macron classificou de “inexplicável” e “imperdoável” o tiroteio que vitimou Nahel e, num raro passo, dirigiu críticas à polícia, cujos sindicatos ocuparam o rescaldo da morte do jovem a defender publicamente a sua luta contra “vermes” e “hordas de selvagens”. Logo a seguir, a agência da ONU para os Direitos Humanos veio pedir a França que “aborde seriamente as profundas questões de racismo e discriminação das autoridades policiais”, num ano em que 13 pessoas, na sua maioria de ascendência africana ou árabe, foram mortas pela polícia, num país profundamente marcado por ataques islamitas desde o surgimento do autoproclamado Estado Islâmico.

Estes acontecimentos alumiaram o discurso de final de ano de Macron, no qual o presidente focou a necessidade de um “rearmamento cívico”, uma restauração da autoridade contra o que diz ser o colapso do civismo e a fragmentação da sociedade francesa, também na sequência de outro grande movimento popular contra a sua reforma das pensões. Sob as leis que o governo em minoria aplicou sem o aval do parlamento, a idade da reforma subiu para os 64 anos, sob o pré-requisito de pelo menos 43 anos de trabalho cumpridos, na tentativa de garantir a sustentabilidade da Segurança Social.

Em conjunto, a morte de Nahel e a reforma da previdência conduziram ao maior movimento de protesto do último século em França e aos piores motins do país em quase duas décadas, um cenário que piorou, pelo menos junto do eleitorado mais à esquerda, com a reforma da imigração aprovada em dezembro. E como indica o cientista político Bruno Cautrès, o presente ano arrancou com uma grande dúvida. “2023 não nos deu respostas claras nem inteligíveis à maior das questões: para onde se dirige o segundo mandato de Macron? Não há direção. Continuamos sem saber quais são as suas prioridades e objetivos.”

Com a nomeação de Attal, aquele que foi o primeiro presidente a conseguir a reeleição desde Jacques Chirac, 20 anos antes, pretende sinalizar uma renovação política e injetar energia e juventude num governo estagnado. Mas até que ponto vai conseguir roubar votos à extrema-direita é outra questão sem resposta para já. E Le Pen e Bardella não vão facilitar-lhes a vida.

Quando falou à nação, a 31 de dezembro, Macron fez questão de terminar o discurso numa nota positiva, invocando dois grandes momentos que vão ter lugar em França, um deles a reabertura da Catedral de Notre Dame, quase totalmente consumida num incêndio em 2019. "Só uma vez por século é que se é anfitrião dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos, apenas uma vez por milénio é que se reconstrói uma catedral", disse o presidente. "2024: um ano de determinação, decisões, cicatrização e orgulho. De facto, um ano de esperança."

Entre a extrema-direita, a esperança é outra. Assim que Macron anunciou o seu novo primeiro-ministro ontem, a coqueluche da RN não perdeu tempo a reagir na rede social X: “Ao nomear Gabriel Attal", escreveu Jordan Bardella, "Emmanuel Macron quer agarrar-se à popularidade [do jovem político] e suavizar a dor deste interminável fim de reinado. Arrisca-se a arrastar consigo na queda o ministro da Educação de pouca dura."

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